Narrado por Aisha

    A carruagem parou diante de uma das alfaiatarias mais requintadas de Altheria. A fachada de pedra clara exibia grandes janelas de vidro onde manequins se apresentavam em posturas altivas, vestidos com capas pesadas, túnicas bordadas em ouro e tecidos tão finos que refletiam a luz da manhã. Um brasão azul com agulhas cruzadas pendia acima da porta.

    Quando descemos, Ian ajeitou o sobretudo branco que sempre usava. Não parecia nervoso, mas… também não parecia confortável.

    — Então é aqui que vocês decidem como vou parecer respeitável? — ele perguntou, em um tom que soava leve, mas carregava aquele humor seco que eu já começava a reconhecer.

    — Respeitável, não. — Lys respondeu, caminhando na frente. — É aqui que decidimos como você vai parecer parte da comitiva real de Altheria.

    Ele arqueou uma sobrancelha. — Diferença sutil.

    Lys abriu a porta, e um sino tilintou. O cheiro de tecido novo, misturado com incenso suave, encheu o ar. Lá dentro, prateleiras repletas de rolos de seda, linho e veludo formavam corredores coloridos. Manequins exibiam trajes elaborados, dignos de corte.

    O alfaiate logo surgiu. Um homem baixo, de cabelos grisalhos penteados para trás, com fita métrica pendurada no pescoço e olhos atentos demais para o gosto de Ian.

    — Alteza Lysvallis! — ele disse, fazendo uma reverência exagerada. — Que honra receber-vos novamente.

    — Bom dia, Halber. — Lys respondeu com um sorriso polido, então estendeu uma mão em direção a Ian. — Este é Ian, o Guard…

    — Cliente. — Ian a interrompeu rápido, com um meio sorriso. — Apenas cliente.

    O alfaiate piscou, confuso, mas logo retomou o entusiasmo. — Claro, claro! O senhor vai precisar de algo digno, imponente. Azul e prata, as cores de Altheria, talvez?

    — Ele gosta de sobretudos. — Lys comentou, já como quem ditava as regras.

    — Ótimo, ótimo! — Halber se aproximou com fita métrica em mãos. — Se puder esticar os braços…

    Ian lançou um olhar rápido para Lys, como se dissesse “isso é mesmo necessário?”, mas obedeceu.

    — Estrutura firme, porte militar…, mas a escolha de traje… — ele puxou uma dobra do sobretudo branco. — Digamos que é funcional, mas… pouco expressiva.

    — Nunca tive a intenção de ser expressivo. — Ele respondeu seco… — Hm, ombros largos, … difícil errar aqui.

    O alfaiate aproximou-se de uma mesa coberta de papéis e penas.
    — Posso sugerir que mantenhamos a ideia do sobretudo, mas adaptado para realçar a presença dele. Algo que não o transforme em um nobre…, mas em alguém que não pode ser ignorado.

    Ian olhou de canto para Lys.
    — Se sair parecido com uma cortina de teatro, vou culpar você.

    — Confie nele. — Ela respondeu, sem alterar o tom.

    O alfaiate gesticulou para que ele o seguisse até a mesa de desenhos.
    — Então, Guardião, vamos começar.

    Enquanto Ian era levado até o fundo da loja com Halber para escolher tecidos, Lys e eu ficamos aguardando. Eu não sabia se devia puxar assunto, mas Lys me olhou de relance e disse:

    — Você está quieta, Aisha. — disse de repente, quebrando meu silêncio.

    — Não quero atrapalhar.

    Ela riu baixo, um som breve. — Conversar nunca atrapalha. O silêncio, sim.

    Engoli em seco, tentando organizar as palavras. — Eu só… não sei se deveria estar aqui. Com vocês. Com ele.

    Lys virou-se para mim, os olhos azuis brilhando de forma que intimidavam e confortavam ao mesmo tempo.

    — Você acha que precisa ser alguém diferente para isso?

    — Não é isso… só… — olhei para os tecidos para evitar encará-la — eu não tenho a força e a confiança que vocês têm. O jeito que vocês falam, que decidem, que ocupam o espaço.

    Ela caminhou até mim, os passos suaves, mas firmes.

    — A confiança não vem antes, Aisha. Ela vem depois. Depois de errar, depois de tropeçar, depois de se levantar. — Pousou a mão em meu ombro, leve, mas ao mesmo tempo… pesada — Não espere se sentir pronta.

    — Eu… não estou acostumada com esse tipo de ambiente. — Respondi, talvez rápido demais.

    — Não parece que é o ambiente. — ela corrigiu, sem desviar os olhos dos manequins. — Parece mais que é você mesma.

    As palavras dela atingiram mais fundo do que eu gostaria. Respirei fundo, tentando esconder a reação.

    — Você cresceu em uma corte, não? — ela continuou. — Sabe que roupas formais nunca são só roupas. Podem ser até mesmo armas. Aprendi isso cedo.

    — Armas? — repeti, curiosa.

    — Porque revelam ou escondem. Aproximam ou afastam. — Ela pousou os olhos em mim, e por um instante senti que via mais do que eu mesma queria mostrar. — Mas de nada serve uma roupa bem-feita se você mesma não acredita que pode usá-la.

    Não tive resposta imediata. Apenas fiquei em silêncio, digerindo aquilo.

    Pouco depois, Ian reapareceu com Halber, segurando alguns tecidos azul-escuros e prata, ainda de expressão neutra.

    — Estamos chegando a algo. — o alfaiate disse animado. — Um sobretudo mais ajustado, talvez com colete interno. Preciso desenhar.

    Ian deu de ombros.

    Lys ergueu os olhos para ele. — Não se preocupe, Ian. Vamos nos esforçar para deixar o foco de Cervalhion em você…

    Ele riu baixo, seco — …Quando você fala tenho ainda mais certeza — ele falou olhando para baixo — que essa foi uma péssima ideia…

    E seguiu o alfaiate até a sala dos desenhos, desaparecendo de vista.

    Ficamos eu e Lys ali, em silêncio por um momento. E pela primeira vez desde que entrei naquela loja… percebi que talvez eu pudesse aprender mais com ela do que jamais imaginei.

    A alfaiataria parecia maior por dentro do que a fachada deixava imaginar. Tecidos pendiam das paredes como estandartes de guerra, azuis, dourados, negros, bordados com fios que brilhavam sob a luz das lamparinas. O cheiro de couro novo e incenso amadeirado deixava o ar denso.

    Ian caminhava pelo salão como quem inspeciona um campo de batalha, não uma loja. Ele passava os olhos de um tecido para outro sem demonstrar nada além de um silêncio calculado.

    — Não gosta de escolher? — Lys perguntou, com a leveza de quem já sabia a resposta.

    — Escolher não é o problema. — Ele respondeu seco. — O problema é me colocarem em algo que me faça parecer um pavão.

    Lys arqueou a sobrancelha, um sorriso discreto escapando.

    — Acredite, Ian, pavão seria o último animal em que eu pensaria ao olhar para você.

    Eu quase sorri também. Havia algo na troca deles, um jogo que parecia natural, como se já estivessem acostumados a presença do outro.

    O alfaiate, por sua vez, surgia animado demais para o humor de Ian. Carregava blocos de desenho, fitas de medida e uma fala rápida, como se não quisesse perder tempo nem dar espaço para recusas.

    — Senhor Guardião, com sua estatura e ombros largos, penso em algo clássico, tradicional de Altheria: túnica longa, capa azul com brasões, detalhes em prata…

    Ian cruzou os braços. — E se eu disser que capas longas atrapalham na hora de correr?

    O alfaiate piscou, sem resposta imediata.

    Lys, ao lado, inclinou a cabeça. — Ele tem um ponto. Querendo ou não ele estará lá como meu guarda pessoal.

    Ela não o contrariou. Pelo contrário, parecia gostar de segui-lo no jogo, mesmo que de forma discreta.

    — Podemos adaptar. — O alfaiate se recompôs. — Talvez um sobretudo, sim? Ajustado ao corpo, sem perder a formalidade.

    — Isso já soa melhor. — Ian respondeu, com aquele meio sorriso seco que raramente aparecia.

    Ele foi conduzido para os fundos da loja para experimentar o primeiro modelo. O silêncio momentâneo deixou apenas eu e Lys diante de tecidos dobrados novamente.

    Lys se virou para mim com um olhar curioso.

    — Aisha, o que você acha? Será que ele vai se acostumar com as roupas formais?

    Eu sorri, sabendo que Lys estava se divertindo com a situação.
    — Acho que ele vai se acostumar, mas não sem reclamar um pouco.

    Lys deixou escapar um riso.
    — Na verdade estou contando com isso.

    Antes que eu respondesse, Ian retornou. O sobretudo azul-marinho ajustado ao corpo, colete por baixo, gola alta com detalhes prateados. Ele parecia outro homem, um que poderia tanto atravessar um campo de batalha quanto entrar em um salão real sem destoar.

    Fiquei sem palavras. Lys também demorou um segundo para responder.

    — Admito… — ela disse, lenta — ficou melhor do que eu esperava.

    Ian ergueu uma sobrancelha. — Isso foi um elogio?

    — Talvez — Lys rebateu, um sorriso discreto surgindo. — Mas não vamos nos precipitar… acho interessante avaliar mais opções — ela falou enquanto se sentava em uma poltrona olhando em direção a Halber que pareceu entender perfeitamente o que ela queria dizer.

    —Bom… Senhor Guardião, temos outras opções que creio que serão do seu agrado…

    E, pela primeira vez, eu vi a Rainha de Altheria deixar escapar algo próximo de diversão.

    O segundo traje era prateado, com ombreiras e bordados detalhados. Ian saiu do provador com a expressão de alguém que tinha sido obrigado a mergulhar em água gelada.

    — … pareço uma prataria ambulante.

    — Esse até combina com a cor dos seus olhos. — disse Lys, avaliando.

    — … estou começando a achar que esses seus olhos só servem de enfeite — ele retrucou.

    — Olha só — Lys falou se inclinando para frente com um sorriso curto — isso foi um elogio?

    — Quando eu for elogiar… você vai notar a diferença.

    Eu tive que esconder um riso, levando a mão aos lábios. O alfaiate parecia nervoso, mas Lys apenas inclinou a cabeça, ainda se divertindo.

    Veio o terceiro traje, vermelho-escuro, com um corte mais justo.
    Ian se olhou no espelho, depois para Lys:

    — Isso parece mais um uniforme de mordomo do que uma roupa para o guardião…

    — Um mordomo confiável sempre é essencial — respondeu ela sem titubear de forma séria.

    — Você está se divertindo…
    — Muito por sinal — ela falou tomando uma xicara de chá sem desviar os olhos dele.

    O quarto traje era o mais tradicional de Altheria, branco com detalhes azuis, pesadas camadas de tecido e bordados carregados.

    Ian saiu do provador com passos arrastados.
    — Isso pesa mais que minha armadura. — Reclamou, erguendo um dos braços com esforço exagerado.

    — É um traje que impõe respeito. — disse Lys.

    Nesse momento Ian soltou um suspiro profundo e olhou para ela.
    — Não precisa mentir desse jeito…

    Lys manteve o olhar firme, mas seu tom foi mais calculado:
    — Os nobres de Cervalhion podem ser… inconvenientes. Quero ter certeza de que você saberá lidar com isso.

    — Inconvenientes?

    Ela confirmou com a cabeça.

    O clima ficou estranho com os dois se olhando, mas curiosamente Ian simplesmente voltou ao provador.


    O quinto traje era um cinza escuro, parecido com o estilo que ele se vestia normalmente com e aparentemente ele havia gostado pois entrou bem mais confiante e olhou para Lys.

    — Esse é mais confortável — ele falou enquanto parava de frente ao espelho.

    Aparentemente Lys também gostou ja que ela o estava observando por tempo demais sem falar nada. Somente quando ele a olhou novamente ela falou.

    — É aceitável…

    — O que foi isso?

    Curiosamente Lys não respondeu apenas o encarou por alguns instantes.

    — E o que você acha? — ele me perguntou

    Eu congelei um pouco, mas respondi:

    — Caiu bem…

    — Viu? — ele disse, apontando para mim e encarando Lys. — Até a aprendiz sabe fazer um elogio.

    — Ela só quer agradar um pouco o seu tutor — respondeu Lys, com um sorriso pequeno, mas que carregava um estranho brilho nos olhos.

    Sorri sem graça, mas dentro de mim crescia outra sensação: aquela troca entre ele e Lys tinha algo diferente. Não era só ironia. Era como se ela estivesse se divertindo por ver Ian fora do lugar comum… e ele, mesmo desconfortável, deixava.

    Foi então que o alfaiate trouxe o último traje.

    Negro, elegante, com detalhes prateados sutis e um corte que realçava a postura dele. O tecido parecia moldar o corpo sem pesar.
    Quando Ian saiu, o silêncio tomou a sala.

    Ele mesmo parecia diferente, não zombava, não fazia piada. Apenas ajeitou o colarinho e ficou ali, imóvel, olhando para Lys.

    E, dessa vez, ela não disse nada por alguns segundos. Apenas observou.

    — Esse… — ela começou, mas sua voz perdeu a habitual firmeza por um instante. — Esse servirá, para caso tenha um baile.

    — E quem seria a parceira?

    — Acha que pode me acompanhar?

    Ele arqueou a sobrancelha.
    — Está tão confiante assim?
    — Sempre. — respondeu ela, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

    Ele ergueu o canto dos lábios num meio sorriso.
    — Então espero que saiba dançar melhor do que escolhe roupas.

    Lys não respondeu, apenas o encarou, como se estivesse guardando aquela provocação para depois.

    O alfaiate, por sua vez, parecia satisfeito. Mas eu percebi que não era apenas a roupa. Era o olhar de Lys, fixo em Ian, como se o visse pela primeira vez de outro modo.

    Enquanto o alfaiate anotava medidas e preparava os tecidos, fiquei em silêncio, refletindo.
    Eu sempre pensei que minha falta de força era o problema, mas as palavras de Lys ainda ressoavam na minha mente.

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