Narrado por Lys

    O alfaiate recolheu as anotações finais com uma reverência quase exagerada. Eu deixei as moedas sobre o balcão, o suficiente para cobrir não apenas as peças de Ian, mas também as de Aisha. Ele parecia satisfeito, talvez mais pelo prestígio de vestir um guardião do que pelo pagamento em si.

    — Foi caro — Ian comentou atrás de mim, em voz baixa.

    — Vestir-se bem sempre é — respondi, sem sequer olhá-lo. — Mas alguns preços valem a imagem.

    Senti o leve bufar dele, seco, quase divertido, e por um instante pensei em sorrir. Não sorri.

    Quando deixamos a loja, o sol já tingia as ruas com um dourado suave. Aisha, com os olhos atentos, pediu para seguir junto da guia, curiosa para ver mais da cidade. Ian não protestou na verdade, parecia até aliviado.

    Assim, acabamos sozinhos na carruagem.

    Ele ajeitou o sobretudo no banco, como se ainda tentasse se livrar da sensação das roupas que o alfaiate o obrigou a experimentar. Eu não resisti.

    — Admito… ficou bem melhor do que eu esperava.

    — Olha só, finalmente um elogio — ele arqueou a sobrancelha. — Melhor anotar no diário, pode não se repetir.

    O silêncio seguinte não foi pesado. Pelo contrário, tinha algo quase confortável nele. O tipo de silêncio que só existe quando não há necessidade de provar nada.

    Mas havia algo que eu precisava saber… decidi arriscar.

    — Ian… — deixei o nome dele pairar no ar. — Por que continua treinando até tão tarde?

    Ele desviou o olhar para a janela.

    — É melhor do que contar carneiros.

    — Eu não perguntei se é para dormir melhor. Perguntei o motivo real.

    Um leve sorriso seco surgiu nos lábios dele, mas não chegou aos olhos.
    — Você é sempre assim?

    — Assim como?

    — Persistente.

    — Apenas quando acho que a resposta importa.

    — Porque você acha?. — respondeu sem hesitar. — Preciso recuperar meu poder o quanto antes.

    A resposta veio seca, mas não ríspida. Decidi arriscar mais.

    — Deve ser exaustivo viver assim.

    Ele finalmente voltou os olhos para mim. Havia uma calma estranha ali, a calma de quem carrega cicatrizes que não precisam ser exibidas.

    — Exaustivo é viver com as consequências de não estar pronto.

    O silêncio voltou, mais denso desta vez. Eu o estudei, tentando encontrar fissuras nesse muro que ele erguia com frases curtas. E encontrei. Bastou uma pergunta.

    — Me ajude a entender uma coisa, Como você lida com as memórias que teve com ela?

    Foi instantâneo. A atmosfera mudou. A mana do ar oscilou como se tivesse sido arrancada do equilíbrio. O espaço pareceu se estreitar, a temperatura caiu, e por um breve momento minha pele se arrepiou como se tivesse tocado gelo.

    Os olhos dele não mudaram. Mas o mundo ao redor, sim.

    E então ele fechou os olhos e de repente, tudo cessou. Ele retomou o controle, voltando à mesma postura contida, como se nada tivesse acontecido.

    Inclinei-me levemente para frente, a voz baixa, firme, mas suave:
    — Ian. — deixei a formalidade de lado. — Em Cervalhion, não vai poder se dar a esse luxo. Cada olhar vai estar sobre você. Se perder o controle… nem todos serão tão compreensivos quanto eu.

    Ele abriu os olhos e me encarou. Não havia ironia, só aquele silêncio incômodo de quem foi visto além do que gostaria. Por fim, respondeu:
    — Vou me lembrar disso.

    A carruagem balançava com o caminho irregular, mas o que me incomodava era o silêncio que se seguiu. Ian observava pela janela, os olhos perdidos na névoa. Então quebrou o vazio:
    — Me fale mais sobre Cervalhion. Só sei que vivem da agricultura.

    Sorri de leve.
    — Sempre reduzindo tudo ao essencial, não é?

    — É mais fácil de memorizar. — Ele ergueu uma sobrancelha. — Então, o que estou esquecendo?

    — Quase tudo. — Apoiei as mãos no colo. — Cervalhion não é só campo fértil. É a cidade mais populosa do continente. Cada festival, cada colheita, cada promessa… tudo vira moeda política.

    Ele recostou-se, o olhar desconfiado.
    — Soa tedioso. Aposto que nunca faltam discursos.

    — Discursos, banquetes, alianças… — Suspirei. — Até o “Evento do Herdeiro”.

    Isso chamou a atenção dele.
    — Evento do quê?

    — Uma cerimônia para apresentar ao continente o sucessor da coroa. Um desfile de poder disfarçado de tradição.

    Ele soltou um riso breve.
    — Imagino que serviam vinho caro.

    — Mais caras eram as alianças costuradas. — A voz me saiu mais firme. — Mas o que ficou marcado foi outra coisa.

    A carruagem pareceu silenciar com minhas próximas palavras.
    — O príncipe herdeiro foi executado em praça pública.

    O sorriso dele desapareceu.
    — Executado?

    Assenti. — Quando descobriram as atrocidades que ele cometera. Empregadas do castelo… mortas, abusadas. Aedin reuniu as provas, os nobres o julgaram, e o próprio pai ordenou a execução.

    Ian respirou fundo.
    — Agora entendo porque até as guardas de Altheria falam dele como sendo justo.

    — Houve uma verdadeira caça às bruxas depois. Durante dois anos, sangue correu em Cervalhion… e ao mesmo tempo, a popularidade de Aedin só cresceu.

    — Imagino que os crimes tenham diminuído. — Ele ajeitou-se no banco. — E os impostos também. Mas… e você? O que mudou para você?

    As palavras me pesaram na boca. Olhei para fora antes de responder.
    — Eu tinha um noivado arranjado. Com o segundo príncipe.

    O silêncio que se seguiu foi diferente: pesado, mas sem julgamento. Apenas espera.

    — Eu gostava dele, Ian. — confessei, mais baixo. — Para mim não foi apenas política.

    Ele soltou um riso breve, descrente.
    — Então a Rainha Lysvallis já foi uma dama prometida? Não esperava por essa.

    Revirei os olhos. — A antiga rainha rompeu o acordo depois da execução. Disse que Cervalhion precisava se reorganizar. Nunca mais o vi.

    Ele ficou calado por alguns instantes.
    — E você teria se casado mesmo?

    — Teria. — admiti, respirando fundo. — Não por dever. Porque acreditava que poderia ser feliz com ele.

    Os olhos dele endureceram, mas não havia frieza, só reflexão.
    — E ainda pensa nele?

    — Penso no que poderia ter sido. — Senti a voz embargar levemente. — E em tudo que perdi sem ter escolha.

    Ele desviou o olhar, apoiando o braço na janela.
    — Sinto muito. Mas olhe pelo lado bom… talvez seja um recomeço.

    Soltei um riso seco. — Improvável.

    — Por quê?

    — Porque Altheria já não é igual a Cervalhion. Aedin é agora o mago de terra mais poderoso de que temos registro. E em combate físico… só perde para o antigo capitão da guarda. — Foi difícil admitir. pincipalmente porque eu quem deveria ser o contraponto dele.

    Ian ficou quieto por um tempo, então deixou escapar um meio sorriso.
    — Entendi. Bom… sempre pode treinar comigo.

    O silêncio que veio depois não foi desconfortável. Era… humano. Por um instante, não havia Rainha nem Guardião. Apenas duas pessoas presas a passados que não podiam mudar.

    Sorri, pequeno, quase imperceptível.
    — Você ainda tem essa mania de reduzir tragédias a frases simples.

    — Funciona. — ele retrucou, com um olhar cansado mas sincero. — Mas se quiser, posso fazer um discurso.

    Balancei a cabeça. — Não. Prefiro assim.

    E antes de perceber, já tinha aceitado:
    — Acho que vou aceitar seu convite.

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