Capítulo 38 - "Quebra"
Narrado por Aisha
O pátio da arena estava silencioso. As tochas queimavam devagar, lançando sombras que dançavam sobre as colunas de pedra. O ar frio de Altheria me fez apertar o casaco, mas Ian parecia não sentir nada. Ele estava parado no centro, as mãos nos bolsos do sobretudo branco, me observando com aquele olhar que parecia que estava observando um problema que ele precisava resolver.
— Vamos começar do início. — disse ele, sem rodeios. — Se você pretende lutar, precisa entender o terreno em que está entrando.
Assenti, tentando não demonstrar o frio na barriga.
— Vamos do início. As tribos originárias. — Ian começou a andar em círculos lentos, como se o movimento ajudasse a organizar as palavras. — Seis delas eu conheci pessoalmente. Cada uma com sua força, suas manias… e seus problemas.
Ele levantou um dedo.
— Os Gel’Varel. Basicamente Gelo e cristal. São Elfos pálidos como a neve, de olhos que brilham como pedras lapidadas. Sabem guardar conhecimento como ninguém, e se acham mais sábios que o resto do mundo. — Uma pausa curta, o canto da boca dele ergueu. — E, para ser justo, às vezes são mesmo.
Outro dedo.
— Pyrr’Khal. Draconianos. Escamas, fogo, orgulho. Eles não apenas forjam armas… eles praticamente as tornam vivas. Nunca lute contra um Pyrr’Khal achando que sua espada vai aguentar até o fim, confiar cegamente no seu equipamento contra um deles é quase suicídio.
Ergueu outro dedo.
— Três. — Murmurei, acompanhando a contagem nos dedos.
Ian me lançou um olhar rápido, aprovando meu foco.
— Rumbrath. Terra viva. Ou como Thamir gosta de chamar, Homens-planta, possuem uma conexão estranha com a lua e a regeneração deles é realmente um problema em um combate. Não se engane com a calma deles, quando decidem se mover, levam florestas inteiras junto.
Mais um dedo.
— Or’Karron. Gigantes de puro músculo. levam muito a sério a Honra, resistência e juramentos. Se um Or’Karron promete proteger você… pode acreditar, nem a morte arranca essa promessa.
Ele ergueu o quinto dedo.
— Kenzaru. — A voz dele ficou um pouco mais baixa, e por um instante me pareceu ver algo nos olhos dele… lembrança, talvez. — Raposas humanoides. São Astutos, ágeis, instáveis como o vento. Mestres em ilusão e em usar a mana crua. Quase foram extintos, mas… — olhou para o lado, suspirando. — Bom… ainda existem representantes.
Por último, o sexto dedo.
— Nymerhal. Seres de água. Misteriosos. Nunca subestime o silêncio deles é no silêncio que planejam tudo, e de preferência não compre briga com um deles. Podem ser bem irritantes de lidar.
Fiquei imóvel, absorvendo cada palavra. O tom de Ian não era de um professor comum, era o de alguém que tinha estado lá, que tinha visto.
Ele então parou. Baixou a mão.
— E dizem… que havia uma sétima. — Murmurou. — Os Sae’Lun. Energia pura, instáveis, perigosos demais até para os outros. Nunca vi um, só ouvi histórias sussurradas de alguns Rumbra.
Me arrepiei.
— Você acredita que eles existem? — perguntei.
Ian deu de ombros.
— Já vi coisas piores. — Um meio sorriso cruzou seu rosto. — Então não duvido de nada.
O silêncio voltou a reinar, quebrado apenas pelo crepitar das tochas.
Ele então se virou para mim, com aquele olhar cortante.
— Agora que você conhece as tribos, chegou a hora de descobrir se tem algo mais aí dentro.
Meu coração disparou.
— Vai… vai conseguir saber?
— Vou tentar. — Ian respirou fundo. — Mas aviso… não vai ser agradável.
E, ao redor, senti o ar mudar. A mana respondeu ao tom dele, rodopiando como vento em volta de uma chama.
Era o início do meu verdadeiro teste.
Humilhante para não dizer vergonhoso, era a melhor forma que eu podia descrever meu desempenho, o chão da arena estava frio sob meus pés, mas o suor escorria pelo meu rosto. A respiração já vinha curta, como se meus pulmões estivessem sendo comprimidos a cada movimento. Ian não estava pegando leve não havia qualquer compaixão em seus golpes ou desvios.
Ele se movia com a calma de alguém que tinha todo o tempo do mundo, me forçando a atacar e recuar sem cessar. Eu já sentia os braços pesados, o corpo pedindo descanso.
Parece que no nosso primeiro duelo eu estava completamente errada… ele nunca tinha lutado a sério.
— Continue. — A voz dele era seca, cortante. — Não pare até que eu mande.
Avancei de novo, tentando acertá-lo. Ele desviou como se fosse nada, o olhar fixo em mim, me analisando como um predador faz com a presa.
— Você está segurando. — Ele disse. — Quer aprender ou não?
Cerrei os dentes, a mana pulsando dentro de mim. Concentrei-a nas pernas, depois nos braços, e ainda assim era como tentar acertar o vento que sabia exatamente onde eu ia me mover.
Cada falha me deixava mais irritada. Cada golpe frustrado, mais pesada. Até que minha visão começou a embaçar. o que eu deveria fazer? eu já havia lutado tantos duelos que havia perdido a conta, mas nada que eu vivi chegou perto da experiência de lutar contra Ian.
— Mais — Ian avançou, a ponta dos dedos encostando no meu ombro, e a força da mana dele atravessou meu corpo como um choque. — Você não já sobreviveu ao campo de batalha? Me mostre como!
Tentei recuar, mas percebi que já não estava apenas lutando contra ele. Estava lutando contra mim mesma. O corpo gritava para parar, meus pulmões ardiam, minhas pernas falhavam eu queria apenas parar, mas a voz dele se repetia na minha mente como um comando absoluto.
Reuni o que restava de força levantei minha espada e foquei tentando acompanhar os movimentos dele… ao menos um golpe eu o faria defender ao menos.
Foi quando senti, a mana dele de repente forçou a entrar pela minha pele, em um segundo parecia que eu havia caído em um lago congelado.
A minha visão se expandiu. As linhas do corpo de Ian, as sombras da arena, até a poeira suspensa no ar… tudo ficou mais nítido, como se o mundo tivesse ganhado um novo contorno.
Ian parou de se mover. Seus olhos se fixaram em mim, atentos.
— Or’Karron… e Pyrr’khal? — Ian murmurou, como se falasse consigo mesmo.
— O que? — perguntei enquanto parava para tentar respirar um pouco.
Ele não falou nada apenas indicou para que eu olhasse para a espada, foi quando eu vi o meu reflexo e…
…Minha íris… cintilava em tons cinzentos, mas havia também um lampejo vermelho profundo, quase sufocado.
— Or’Karron… e Pyrr’khal — Ian murmurou.
A luz vacilou e sumiu tão rápido quanto veio. Minha respiração falhou, o corpo cedeu, e caí de joelhos.
Ian se aproximou devagar, sem me ajudar de imediato. Apenas observava, depois começou a falar, baixo, como se pesasse cada palavra:
— As duas linhagens estão aí…, mas estão dormentes. — Ele respirou fundo. — Para despertar a primeira, você teria que chegar à beira da exaustão, sentir que está prestes a quebrar, acreditar que pode morrer e ainda assim lutar. É esse tipo de pressão que arranca a mana mais profunda.
Engoli em seco, tentando entender o que ele queria dizer.
— E a segunda? — perguntei, hesitante.
O olhar dele mudou. Não era apenas seriedade, havia dor ali.
— A segunda… é diferente. — Ian desviou o rosto por um instante. — Só desperta quando alguém é destruído por dentro. Quando a dor, a perda ou a impotência são grandes o suficiente para dilacerar tudo que você é.
Ele ficou em silêncio, mas eu percebi. Aquilo não era teoria. Ele falava da própria experiência.
— Você… passou por isso? — arrisquei perguntar.
Os olhos de Ian se estreitaram, e por um momento a mana ao redor se agitou, pesada, como se o ar tivesse se tornado mais denso. Mas logo ele respirou fundo e se recompôs.
— Sim. — respondeu, seco. — E não desejo isso para você, claro possa ser que tenha outra forma, mas como até o momento sou o único com duas linhagens ativas que tenho conhecimento, não faço ideia de como fazer isso de outra forma.
Meus olhos se arregalaram. — Então… você não vai me despertar?
— Não. — A resposta veio firme. — Forçar isso seria covardia da minha parte. E seria arrancar algo de você que não poderia ser devolvido.
Silêncio. Só meu coração batendo acelerado.
Ian então estendeu a mão. — Levante. Esse foi só um teste.
Peguei sua mão e me coloquei de pé, ainda sentindo as pernas tremerem.
— O que acontece agora? — perguntei, a voz fraca.
Ele me encarou, sério. — Agora… vá descansar, amanhã você começa do zero.
Eu não queria admitir, mas estava muito empolgada, parecia que havia voltado a ser só uma criança. Um Guardião lendário iria me treinar pessoalmente, justo eu que nunca recebi um treinamento adequado… eu mal podia esperar pelo próximo dia.
Eu já havia perdido a noção de tempo e de quantas surras já havia levado de Ian.
— Que coisa horrível você lutando — Ele falou agachando do meu lado.
— M-Mas você falou… — Falei lutando para recuperar o folego — que eu lutava bem…
— Para uma ninguém sim, você luta bem, mas para a minha discípula…. — Ele me olhou nos olhos jogando o cabelo para trás — Você tem que fazer muito esforço pra horrível.
O que? se eu tivesse folego ia xingar muito ele, como assim horrível? eu nunca iria admitir, mas essas palavras doeram. mas ele não parou por aí.
— A sua única vantagem é que você aprende rápido. Então levanta — ele falou se afastando, Reuni o que restava das minhas forças e me levantei.
…
— Você tem certeza que não vai liberar minha linhagem? — perguntei, ainda ofegante, depois de mais uma sequência que terminou comigo no chão da arena.
Ian me olhou em silêncio por alguns segundos, sério, como se medisse não só minhas palavras.
— Já disse que não.
— Mas se eu tivesse a linhagem ativa, poderia acompanhar seus movimentos. Poderia… poderia ser útil de verdade.
— Você ainda não é útil . — A resposta dele veio seca, quase ríspida. — Essa é a dica, “Ainda”
Eu abaixei os olhos, apertando os punhos contra as pernas. — Não parece. Quando estou com vocês, parece que sou só um peso morto.
— Porquê de fato você ainda é! — ele falou dando de ombros — Não compare o seu começo com alguém já que faz isso a muito tempo.
Por um momento o silêncio me esmagou mais do que o treino. Mas então Ian se aproximou, se ajoelhando para ficar na minha altura.
— Escuta. Você acha que os mais fortes que já enfrentei eram todos abençoados por linhagens ativas? — ele arqueou a sobrancelha, esperando minha resposta.
— … Eram?
— Não. — Ele balançou a cabeça. — Os guerreiros que mais deram trabalho para Thamir, para Naira… até mesmo para mim e para Kael no passado… foram aqueles sem linhagem ativa.
Levantei os olhos, confusa. — Mas… como isso é possível?
— Simples. — Ele se levantou, começou a andar em círculos, como se organizasse os pensamentos em voz alta. — Uma linhagem te dá vantagens. Força, velocidade, resistência, habilidades únicas. Mas também te dá fraquezas. Dependência. Pode te deixar cego. Com a ilusão de que você é invencível porque nasceu com um dom.
Ele parou e olhou diretamente para mim.
— Os que não têm nada disso… aprendem a sobreviver com disciplina, astúcia e suor. Cada passo, cada técnica, cada golpe é conquistado. E quando eles enfrentam alguém com linhagem… muitas vezes vencem. Porque não dependem dela.
Engoli em seco, surpresa pela firmeza daquilo.
— Então… você está dizendo que eu posso ser forte mesmo assim?
Ian respirou fundo, desviando os olhos por um instante, antes de voltar a encarar os meus.
— Não estou dizendo que pode. Estou dizendo que vai. — O tom dele era calmo, mas havia uma convicção inquebrável ali. — Desde que não desperdice tempo esperando milagres da sua linhagem.
Senti uma estranha mistura de esperança e desafio se agitar dentro de mim.
— Então… o que eu faço?
Ele sorriu de leve, quase imperceptível, mas ainda assim um sorriso.
— Faz o que todo guerreiro de verdade faz. Treina. Sangra. Cai e levanta. Até o mundo perceber que você não precisa de um brilho nos olhos para ser perigosa.
Fiquei em silêncio, tentando absorver cada palavra. Ele havia me deixado sem respostas, mas não sem direção.
Quando percebi, Ian já caminhava para o centro da arena outra vez. Os ombros estavam rígidos, como se carregassem algo mais pesado do que qualquer treino comigo.
— Por hoje basta. — disse, a voz firme, mas distante. — Amanhã continuaremos.
— Amanhã? — repeti, confusa.
Ele não respondeu. Apenas olhou para entrada da arena, onde três pessoas já caminhavam na nossa direção com armas em punho.
“Não compare o seu começo com alguém já que faz isso a muito tempo…”
As palavras de Ian ainda ecoavam na minha mente. Eu ainda não havia entendido exatamente o que ele quis dizer…
A arena estava silenciosa quando ouvi passos firmes ecoando na nossa direção. Não eram passos comuns. Eram compassados, seguros, carregados de uma presença que fazia até a mana ao redor vibrar.
Olhei na direção do som
Três figuras que não precisavam de apresentação: Thamir, Naira e Kael.
Naquele instante, tive certeza do que Ian quis dizer.
O ar pareceu mudar, denso, pesado. Até os guardas que vigiavam a arena se endireitaram instintivamente, como se não ousassem relaxar diante deles. Eu me senti pequena, quase uma intrusa no meio deles.
Kael foi o primeiro a se aproximar, postura ereta, olhar firme e um leve sorriso que, em qualquer outro, pareceria arrogante nele, soava natural.
— Boa tarde Aisha — ele falou com um sorriso largo.
— Boa Tarde… — Respondi um pouco sem jeito.
Venha comigo. — Ele gesticulou em minha direção, a voz educada, mas carregada de firmeza. — Da arquibancada terá uma visão melhor… e aprenderá mais do que imagina.
Engoli em seco e assenti, subindo os degraus de pedra. Sentei-me na beira da arquibancada, de onde podia ver Ian no centro da arena. Ele estava de braços cruzados, o olhar atento, sério… e, de certo modo, desconfiado. eu não fazia Ideia do que iria acontecer mas a tensão já estava me fazendo suar.
Kael não perdeu tempo.
— Thamir, em prontidão.
Thamir apenas acenou com a cabeça. No instante seguinte… desapareceu.
Pisquei várias vezes, confusa. Ele estava ali um segundo antes e, no outro, nada. Nenhum movimento. Apenas o vazio onde ele estivera. Um frio percorreu minha espinha só de imaginar o que significava enfrentar alguém assim.
Kael então girou os ombros, como quem aquece os músculos antes da luta, e lançou um olhar quase desafiador para Ian.
— Vamos começar. Quero ver a linhagem Varel em movimento.
Ian estreitou os olhos.
— Não é uma boa ideia.
— Você precisa, Ian. — Kael rebateu, mas sem perder a calma. Sua voz era grave, firme, como quem simplesmente afirmava um fato. — Se não fizer aqui, com a gente, como vai conseguir fazer lá fora, quando for necessário?
O silêncio pairou por alguns segundos. Eu quase achei que Ian recusaria. Mas então ele respirou fundo, descruzou os braços e se endireitou.
A mana ao redor se agitou de imediato, densa, fria e cortante.
Seus traços mudaram. O cabelo escurecido clareou até se tornar branco como neve, as orelhas se alongaram em pontas sutis e seus olhos brilharam em tons de cristal azulado. Sua postura parecia maior, imponente, como se o próprio ar fosse forçado a reconhecê-lo.
Eu prendi a respiração. Não era apenas Ian. Era algo mais.
Kael arqueou uma sobrancelha, esboçando um raro sorriso de aprovação.
— Nada mal. Conseguiu manter a razão na primeira tentativa.
Um elogio sincero, percebi.
Mas então Naira avançou alguns passos. Sua voz, firme e cortante, quebrou o breve silêncio.
— Agora libere a forma Kenzaru.
Ian girou o rosto para ela, o olhar endurecendo.
— Não. Não é o momento.
— É exatamente o momento. — respondeu Naira, sem hesitar. — Ou pretende fugir disso para sempre?
Ele fechou os punhos, os olhos gelados fixos nela.
— Você não entende…
— Entendo, sim. Você realmente acha que é o único indignado com o que aconteceu com Jyn?— Ela cortou, a voz afiada como lâmina. — A fraqueza que você mostrou naquele dia matou ela.
O mundo pareceu parar.
A mana explodiu em ondas, selvagem, densa, sufocante. A arena inteira pareceu estremecer sob a pressão daquilo.
E, do alto da arquibancada, percebi que algo terrível havia mudado dentro dele.
Algo que ninguém ali poderia controlar facilmente.
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