Capítulo 41 - Dorminhoco
Narrado por Thamir
O peso do corpo de Ian finalmente cedeu, enquanto a minha mana elétrica finalmente saia do seu corpo. e eu continuei sentado em cima dele como se fosse um troféu maldito que nunca pedi para ganhar.
O gelo que o protegia como uma armadura se dissolvia em poças que escorriam até as rachaduras da arena. A pelagem branca recuava, escondendo a besta, devolvendo pouco a pouco meu irmão. Até que só restava o rosto humano… cansado, inconsciente, o mesmo idiota de sempre.
Suspirei e passei a mão pelo cabelo.
— Você sempre arruma um jeito de me dar trabalho, não é, irmãozinho? — murmurei baixo, sabendo que ele não podia ouvir.
Era difícil tentar imaginar tudo o que ele teve que carregar nesses anos. Difícil demais. E agora, em vez de lidar no próprio tempo, ele estava sendo forçado a enfrentar na marra. Talvez fosse necessário. Talvez fosse cruel. Eu não sabia dizer. Só sabia que doía olhar para ele assim.
O silêncio da arena foi quebrado por passos firmes, determinados.
Quando a figura de Lys surgiu no limiar, o ar mudou outra vez.
Ela avançou entre poeira e escombros como uma tempestade que se recusa a ser ignorada. Os olhos dela procuraram, ansiosos, e quando encontraram Ian, vi. Vi o choque humano antes da máscara da Rainha voltar ao lugar. Foi um segundo só, mas eu vi.
Talvez estivesse vendo coisa demais. Talvez não.
Mas logo veio o endurecimento. A coroa invisível voltou a pesar sobre o semblante dela.
— O que diabos aconteceu aqui? — A voz dela não era só séria. Era aço batido. Não pedia resposta, cobrava culpados.
Naira, claro, foi a primeira a abrir a boca.
— Fui eu. Eu o provoquei.
Ah, maravilha.
Lys virou o rosto devagar, como se cada grau fosse uma lâmina afiada. O silêncio que se seguiu foi pior que qualquer grito. Eu até senti pena. Quase.
— Pro-vocou? — repetiu, sílaba por sílaba. — Você tem noção do risco que trouxe para esta cidade? Para o povo que jurei proteger?
Naira não recuou nem um centímetro. Claro que não. Tão teimosa quanto o próprio Ian.
— Não era brincadeira, Majestade. — A voz dela soava grave como um deslizamento de pedras. — Era necessário. Ian precisa enfrentar isso, ou nunca vai aprender. Fingir que ele pode manter o controle em combate é a pior das ilusões.
— E destruir metade da arena é sua ideia de disciplina? — retrucou Lys, o tom subindo como navalha. — Quantas vidas você estaria disposta a sacrificar nessa sua “lição”?
A arena, com as colunas rachadas e pedras partidas, parecia responder à acusação. Poeira caía em flocos, como se o próprio local estivesse com medo de desmoronar.
Do alto da arquibancada, Aisha mancava entre os destroços. Os punhos cerrados, mas o rosto… o rosto dela era dúvida.
— Ele está bem? — perguntou para mim, engolindo em seco. — Ele…
— Só tirando uma soneca. — respondi, me levantando devagar. — Precisaria de muito mais que isso pra machucar esse idiota.
O olhar dela brilhou por um instante — alívio, talvez. Lys também a observava, mas o dela era mais calculado.
— Aisha — disse, fria mas não cruel. — Vá tratar suas feridas. Eu cuido dele.
Olha só. Ela mesma? Pessoalmente? Hum. Tem coisa aí.
Aisha crispou o maxilar, engolindo qualquer resposta. Orgulho e dever brigavam dentro dela. Mas obedeceu, mesmo que a contragosto.
Kael, até então sombra silenciosa, deu um passo à frente. A voz dele cortou como lâmina reta, sem ornamento.
— A discussão não apaga o que já aconteceu. O dano está feito. — Ele olhou primeiro para Naira, depois para Lys. — O importante agora é como impedimos que se repita.
— Impedir? — Naira deixou escapar uma risada sem humor. — Vocês falam como se fosse possível engaiolar uma tempestade. Ele precisa aprender a liberar, a sobreviver a si mesmo.
— Não. — Lys a cortou no ato. — Ele precisa aprender a controlar. Há diferença entre domínio e carnificina. Se você não enxerga, é mais imprudente do que imaginei.
Silêncio.
Mas não era vazio. Era pesado, cheio de mana vibrando no ar. Lys e Naira não trocavam só palavras, trocavam pressão. Duas forças batendo uma contra a outra, como lâminas invisíveis que ameaçavam partir o espaço entre elas.
Eu já conhecia esse jogo. Mulheres orgulhosas e poderosas que não cedem um palmo, alguém iria precisar intervir. Se não fosse trágico, eu comprava pipoca porque definitivamente esse alguém não seria eu.
Kael se interpôs outra vez, a paciência dele finalmente afiada:
— Basta. — Não precisou gritar. Só a firmeza bastou. — A Rainha esta certa Naira, Ian não devia ser forçado dessa forma.
Naira recuou, mesmo que não de bom grado. Lys ergueu o queixo, sem mover mais nada. A tensão recuou devagar, mas ficou, como fumaça depois do fogo.
Eu, ainda parado ao lado de Ian, observava como quem vê um jogo antigo cujo resultado eu já conhecia, mas ainda assim gostava das jogadas.
Lys respirou fundo e virou-se para mim.
— Obrigada. Se você não tivesse contido Ian a tempo… estaríamos enterrando gente agora.
— De nada. — respondi de forma preguiçosa. — Mas da próxima vez, manda ele com uma Focinheira e coleira. Vai poupar esforço.
O canto da boca dela quase se moveu. Não sei se queria me bater ou se concordava comigo. Talvez os dois.
Kael se abaixou, puxando Ian pelo braço com calma e o colocando sobre o ombro.
— Ele precisa descansar. — disse, prático. — Em dois dias partimos para Cervalhion.
Aisha desceu rápido, preocupada, ajudando Kael a carregá-lo.
Fiquei sentado na borda da arena, olhando os três se afastarem.
Meu irmão inconsciente nos braços, a aprendiz com os olhos cheios de preocupação, e Lys… ah, Lys.
Talvez fosse impressão minha, mas havia algo diferente no olhar dela.
Não era só medo. Não era só dever. Era… mais complicado que isso.
Cruzei os braços e deixei escapar um riso seco, baixo demais para que ouvissem:
— Vai dar problema… um grande problema.
E, pela primeira vez em muito tempo, eu não sabia se Ian teria forças ou disposição para escapar dessa batalha. Não que isso fosse mudar algo, afinal ele teria que passar por isso do mesmo jeito, e era minha função ajudar um pouco… só um pouco… e bom nada impedia que eu me divertisse um pouco no caminho.
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