Índice de Capítulo

    O sol se punha devagar, tingindo de laranja as nuvens que repousavam sobre a vila. O cheiro de fumaça das fogueiras misturava-se ao das comidas sendo preparadas, e o cansaço estava gravado no rosto de cada soldado e aldeão. Afinal o dia foi exaustivo mentalmente e fisicamente mas as muralhas estavam prontas graças a ajuda de Naira, no centro do vilarejo um conjunto de tendas podia ser visto .Mas naquela tenda central, erguida às pressas para servir de sala de conselho, as coisas estavam complicadas.

    Haviam sete cadeiras dispostas em circulo ao redor de uma mesa, Ian era um dos presentes, ele observava. O jeito como Elenys e Alexia sentaram-se próximas, formando um pequeno muro político. O modo como Lysvallis mantinha a postura ereta, mas os dedos inquietos denunciavam tensão para Ian. Naira, recostada, com os braços cruzados, parecia medir cada respiração da sala. Aisha, por sua vez, mantinha o queixo erguido, mas os olhos atentos demais para alguém tão jovem. E ao lado dela, Thamir ainda carregava no olhar um traço da escuridão que havia enfrentado.

    Foi Thamir quem quebrou o silêncio:
    — Não eram bestas comuns. — disse, firme, olhando para as matriarcas. — Elas estavam presas em uma ilusão. alguém usou a fúria delas como uma arma.

    O murmúrio foi imediato. Elenys se endireitou, Alexia estreitou os olhos, e até Lys, que raramente deixava a máscara cair, pareceu vacilar por um instante.

    — Uma ilusão? — Alexia repetiu, quase em descrença. — Como tem certeza guardião?

    — Porque ele me colocou em uma ilusão quando toquei a mana dele que ainda estava presente na besta, e pode me chamar de Thamir Matriarca Alexia.

    Elenys estreitou os olhos de forma breve antes de Alexia fazer uma breve confirmação antes de seguir com a pergunta. — Como você conseguiu sair dela?

    Thamir deu de ombros, como se a pergunta fosse menor do que parecia.
    — Não foi difícil.

    — Não foi… difícil? — Elenys arqueou as sobrancelhas. — Ilusões desse tipo… nem magos veteranos escapam com facilidade.

    Thamir apoiou os braços sobre a mesa, inclinando-se para frente.
    — Eu saí porque não era feita para mim. — disse, baixo. — Era uma ilusão construída para a besta. Eu apenas… vi por acidente. mas ele foi rápido o suficiente para perceber e tentar atacar.

    O silêncio que seguiu foi mais pesado do que antes. Ian percebeu o ar se comprimir na tenda. Não eram apenas bestas. Não era azar. Alguém estava mexendo as peças.

    — Isso… — Naira começou, antes de respirar fundo. — Isso torna tudo mais perigoso. Algum de vocês já lidou com magos mentais?

    Elenys e Alexia trocaram olhares breves antes de negar com a cabeça.
    — Nunca. São raros, mesmo em Kaer-Thal. — disse Elenys.

    Lys levantou o queixo um pouco.
    — Eu já passei por um teste simples. Mas nada comparável ao que ouvimos aqui.

    A resposta seguinte não veio de onde esperavam.
    — Eu já tive contato. — disse Aisha, a voz firme, os olhos fixos em Naira. — Não saí ilesa, mas aprendi algumas formas de me defender.

    Ian notou a mudança imediata em Naira: o olhar dela suavizou, e havia aprovação genuína em sua voz.
    — Amanhã você e eu vamos treinar juntas. — decretou. — Vai precisar disso.

    Aisha assentiu, quase ansiosa, e Ian percebeu que, para ela, aquele reconhecimento valia mais que ouro.

    Mas Naira não parou.
    — Se vamos continuar, precisamos de alguma precauções. — disse. — Magos mentais não consegue atacar mais de um alvo por vez. Eu, Thamir e Ian devemos nos dividir. Cada um fica de olho em uma matriarca. Elas são as mais fortes, mas também as mais despreparadas para resistir a um mago mental. Se caírem em ilusão… não vou poder garantir a segurança da caravana.

    As palavras pairaram no ar como uma sentença. Alexia, Elenys e Lysvallis se entreolharam.

    — Podemos ficar juntas nós três — Elenys falou um pouco desconfortável.

    — Vocês não tem experiência para lidar ou tirar a outra de uma ilusão — Naira falou de forma mais rígida.

    Elas hesitaram mas acabaram concordando. Lys também concordou, embora o desconforto fosse evidente.

    Então, Elenys ergueu o olhar diretamente para Ian.
    — Se posso escolher, Prefiro a proteção do Guardião do Norte ou da Guardiã Rumbra comigo.

    Um murmúrio atravessou a sala. Até Ian arqueou uma sobrancelha, mas permaneceu em silêncio.

    Foi Lys quem reagiu.
    — Nesse caso, eu escolho Thamir.

    Alexia levantou a sobrancelha tentando capitar a subtrama dessas falas.

    O peso do olhar de Lys não deixou dúvidas, era mais que tática. Era pessoal.

    Ian soltou o ar devagar. Encontrou os olhos de Thamir, e bastou um instante de silêncio para que ambos chegassem à mesma conclusão. eles voltaram a olhar para as matriarcas, e falaram em sincronia.

    — Me nego.

    — Me nego.


    O jantar foi servido em uma mesa pequena, afastada das tendas principais. A chama da lamparina iluminava as bordas douradas das taças e criava reflexos suaves sobre a garrafa de vinho recém-aberta. Ian comia em silêncio, a expressão distante, enquanto Lys mantinha o olhar fixo no prato, embora não tivesse tocado na comida direito.

    O clima estava pesado. Não pelo que havia sido dito na reunião, mas pelo que não havia sido.

    Foram longos minutos de silêncio até que Lys, finalmente, suspirou e quebrou a barreira invisível entre eles.
    — Eu… sinto muito. — disse, firme mas baixa, como quem não queria repetir. — Entendi o que você quis dizer, Ian.

    Ele ergueu os olhos devagar, sustentando o olhar dela por alguns segundos antes de responder. Havia algo ali, quase uma sombra em seus olhos, que fez Lys franzir o cenho.
    — O que foi? — ela perguntou, inclinando-se levemente, como se buscasse ler o que ele escondia.

    Ian soltou o ar, desviando por um instante antes de voltar a encará-la.
    — Também sinto muito. — disse, a voz mais grave do que pretendia. — Estava pensando em como me desculpar… Ver pessoas morrerem de novo, de tão perto… — ele girou a taça com suco em uma das mãos, observando o liquido escuro. — …acho que me afetou mais do que eu gostaria.

    Lys não respondeu de imediato. Ficou apenas olhando, como se buscasse a rachadura naquela couraça dele. Quando falou, sua voz estava mais suave do que o habitual:
    — É mais humano do que eu imaginava.

    Um silêncio breve pairou, mas não pesado. Aos poucos, a tensão foi se dissolvendo, substituída por um diálogo mais leve, quase íntimo.

    Ian arqueou uma sobrancelha, quebrando a seriedade.
    — Confesso que não esperava ouvir um pedido de desculpas de Vossa Majestade.

    Lys ergueu o queixo, provocando de volta.
    — Confesso que não esperava que o Guardião do Norte admitisse ser afetado por alguma coisa. Achei que só gelo corria nas suas veias.

    Ele sorriu de canto.
    — Isso só rola as vezes.

    O vinho começou circular na taça de Lys, e com ele as barreiras que a prendiam iam se soltando. Lys girava a taça entre os dedos quando deixou escapar, quase num sussurro:
    — Eu tinha medo de você.

    Ian inclinou a cabeça, surpreso pela franqueza.
    — Medo?

    — Não de você, mas… do que representa. — Ela respirou fundo. — Pensei em usá-lo apenas como uma arma. Fria, certeira, previsível.

    Ele riu baixo, mas não com deboche.
    — Uma rainha pragmática. Que surpresa. Mas não se culpe tanto, eu já tinha percebido.

    Lys sorriu de leve, mas logo devolveu.
    — E você? O que pensava de mim?

    Ian não hesitou.
    — Uma mimada.

    Ela arqueou as sobrancelhas, fingindo indignação, mas os olhos brilhavam com a provocação.
    — Atrevido.

    — Realista. — Ian rebateu, a voz carregada de ironia.

    Entre provocações e taças esvaziadas, as horas passaram sem que percebessem. O peso inicial dera lugar a algo mais leve, um jogo de verdades veladas que apenas reforçava o quanto cada um estava disposto a se arriscar diante do outro.

    Lys apoiou o braço na mesa, o olhar fixo em Ian. Já mais solta pelo vinho… talvez até demais.
    — Então me diga, caro protetor de ilusões… por que você e Thamir se negaram tão prontamente, naquela reunião?

    Ian girou a taça, pensativo, desconfiando que havia algo a mais naquele suco de uva, mas logo respondeu:
    — Porque Thamir claramente queria trocar a ordem. Eu já conheço o olhar dele há tempo suficiente para saber quando está tentando manipular a mesa.

    Lys inclinou-se, estreitando os olhos.
    — Apenas por isso? — a pergunta soou como um desafio, quase uma armadilha.

    Ian ergueu uma sobrancelha.
    — …Acho que a rainha bebeu demais.

    — Não foge da pergunta… — ela rebateu, inclinando-se ainda mais para perto. Os olhos oscilavam, ora firmes, ora suavizados pelo álcool. — Lembre-se, Guardião… — o dedo dela tocou o peito dele, como um lembrete arrogante e ao mesmo tempo vulnerável. — Você está aqui para me impedir de ser pega em uma ilusão… não para me colocar em uma.

    A mana vibrou no ar, sutil, reagindo ao contato e ao peso não dito das palavras. Mas Lys não recuou.

    — E então, Guardião… qual a sua resposta?

    Foi a última frase que Lys lembraria daquela noite.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota