Capítulo 68 - Estrondo
A casa ainda cheirava a mofo quando Karl e Laura arrumavam os mantimentos do mercado. Entre sacos de arroz, raízes secas e tecidos dobrados, havia uma rara sensação de alívio. Laura testava os grãos com a ponta dos dedos, enquanto Karl ajeitava as ferramentas novas no canto.
— Dessa vez a troca valeu. — disse ela, quase sorrindo.
— Até parece milagre. — Karl respondeu, batendo na sacola com orgulho.
Mas o milagre durou poucos instantes.
Uma vibração começou pelo chão. Primeiro como um estremecimento leve, depois como um rugido vindo das profundezas. Karl congelou, tentando identificar. Mas Laura não esperou. Empurrou o armário pesado contra a porta e puxou o filho para o chão, no canto da casa.
— Mãe, o que—
A onda de choque veio como um punho invisível. A madeira da porta estourou para dentro, mas o armário segurou o impacto. O ar vibrou, uma pressão cortante que arrancou o fôlego dos dois. Logo em seguida, a explosão. O som não parecia som, mas algo que atravessava ossos e carne. Karl tapou os ouvidos, mas ainda assim o corpo inteiro vibrava como corda esticada.
A escuridão sacudiu a casa. Poeira caiu do teto. O silêncio que se seguiu foi pior, como se o ar tivesse sido sugado para longe.
Quando o mundo parou de tremer, Karl cambaleou. O chão ainda parecia se mover debaixo dos pés. Laura se apoiava na parede, o lado esquerdo do rosto marcado por um fio de sangue que descia do ouvido.
— Mãe!
Ela apenas gesticulou, apontando para a sacola com os mantimentos. Eles não discutiram. Recolheram o essencial os cristais, as sementes, um pouco de comida.
Laura estava com o ouvido esquerdo sangrando. Ela não falou nada, apenas agarrou a sacola dos cristais e apontou para a saída. Karl pegou o resto e a seguiu.
Os túneis eram um inferno.
Pedras e lascas de ferro haviam sido arremessados pela onda. As paredes ainda tremiam, cuspindo areia e estalidos. Famílias inteiras saíam correndo, algumas carregando crianças no colo, outras apenas os próprios gritos.
Na primeira curva, uma mulher estava presa sob uma viga caída, o corpo ainda vivo mas esmagado até a cintura. Os olhos dela imploravam ajuda:
— Por favor… me tira daqui…
Karl deu um passo, mas Laura puxou o braço dele com força.
— Corre.
Mais adiante, um garoto com metade do rosto coberto de sangue estendia a mão para quem passava. Ninguém parava. O fluxo da multidão o engolia como água.
— Mãe… — Karl tentou, o peito travado.
— CORRE! — a voz dela cortou como aço.
Eles correram. Passaram por gente caída, gemendo, por famílias que tentavam carregar mais do que deviam e acabavam ficando para trás. O cheiro de fumaça e poeira queimava os pulmões, cada respiração era uma luta.
O tempo perdeu medida. O que restava era apenas correr em meio a tragédia.
Depois do que pareceu horas de corrida e caminhada, os túneis finalmente começaram a se abrir, deixando entrar a claridade distante do Jardim Inferior.
O ar mudou quando os túneis enfim se abriram. A escuridão úmida deu lugar a uma claridade azulada que parecia quase irreal. A enorme caverna do Jardim Inferior se estendia diante deles, um vazio de pedra aberto ao céu por uma fenda colossal. A lua banhava o espaço, e no chão flores rasteiras cresciam em manchas coloridas, resultado dos poucos moradores que insistiam em plantar mesmo em terras instáveis.
Karl e Laura saíram tropeçando, os pulmões queimando. Caíram de joelhos na beira da clareira, respirando como se nunca tivessem sentido ar de verdade. O som dos gritos e da correria nos túneis ainda ecoava atrás deles com pessoas saindo das entranhas da montanha como um verdadeiro formigueiro humano.
Laura apertava a têmpora, o ouvido esquerdo estava sangrando mais forte. Karl tentou falar, mas a mãe ergueu a mão para silenciá-lo. Primeiro respirar, depois pensar.
Quando ergueu o olhar, Karl percebeu que não estavam sozinhos.
Grupos de exploradores e moradores já se reuniam ali. As armaduras e as tochas refletiam na pedra, criando vultos que se moviam rápido, em formação. Alguns carregavam lanças, outros pacotes com medicamentos. No meio deles, símbolos bordados em mantos denunciavam o impossível, emblemas das grandes Casas.
Karl franziu o cenho.
— Eles aqui…?
Laura assentiu devagar, o rosto sério.
— Se mandaram gente da superfície até o Jardim… é porque a coisa foi grande.
Entre os grupos, Karl reconheceu um rosto.
— Gustav.
O amigo estava junto de outros exploradores, visivelmente tensos. Havia uma mulher mais à frente, provavelmente a líder do grupo. A postura dela não deixava dúvidas, era alguém acostumada a mandar.
Eles não conseguiam ouvir tudo, mas algumas palavras atravessavam o ar cheio de falas e choro da clareira: “resgate… soterrados… selar as entradas… investigar o epicentro…”
Laura apertou o braço de Karl.
— Fica atento. Se eles falam em selar, ninguém daqui volta pra baixo tão cedo.
O clima era de urgência, mas também de medo. Até os veteranos olhavam para a fenda escura do túnel com desconfiança, como se a própria pedra pudesse rugir a qualquer instante.
Foi então que clima já caótico da clareira foi silenciado.
Um grito.
Longo, rouco, vindo das entranhas dos túneis. Era um pedido de socorro que fez todos os corpos se voltarem ao mesmo tempo.
Karl sentiu a espinha gelar. A voz se arrastava, quebrada, como se cada palavra custasse sangue e algo mais.
O som ficou mais forte. E da escuridão, um vulto cambaleante surgiu, iluminado pela lua e pelas tochas.
O silêncio da clareira que seguiu ao grito foi sufocante. Até o vento pareceu parar quando a figura saiu dos túneis.
Era um homem. Ou o que restava dele.
O lado esquerdo do rosto estava carbonizado até o osso, a pele derretida em placas negras. O braço direito simplesmente não existia, só uma torrente de sangue contida por um torniquete mal amarrado. As roupas estavam em farrapos queimados, e nas costas se abria um corte profundo, cada passo deixando uma trilha vermelha atrás de si.
Alguns exploradores recuaram instintivamente. Outros ergueram armas, como se aquilo que se arrastava fosse um monstro, não um homem.
— Pelos Deuses… — murmurou alguém.
Gustav foi o primeiro a reagir. Reconheceu o rosto por baixo das queimaduras, e seu corpo disparou para frente sem pensar.
— Rellen!
O amigo tombou nos braços dele, a respiração arfante, o olhar perdido. Tentava falar, mas só saía um borbulhar rouco. Karl correu na direção do amigo com Laura o seguindo de perto. Gustav segurou a cabeça de Rellen com cuidado.
— Ei, ei, estou aqui. Aguenta firme, você vai ficar bem.
Os olhos de Rellen se encheram de lágrimas. Ele balbuciou, cuspindo sangue.
— De-desculpa… desculpa…
— Do que você está falando? — Gustav apertou mais forte. — Você vai sair dessa, me ouve!
Rellen sacudiu a cabeça, tremendo. As palavras vieram em soluços, arranhadas, como se o ar cortasse sua garganta:
— O… baú… nós vimos… um pilar aberto… havia um baú…
Karl sentiu o estômago gelar.
Rellen tossiu sangue no ombro de Gustav, as mãos trêmulas tentando segurar algo que não estava ali.
— Nós abrimos… — engasgou. — Uma luz… depois só fogo. Ele… — a voz falhou, os olhos se viraram, procurando alguém que não estava mais lá. — Ele virou cinzas na minha frente. Nem gritou… só desapareceu…
A clareira inteira ficou em silêncio, o som dos gritos e do sangue dos sobreviventes nos túneis soando mais alto que qualquer palavra.
Gustav tentava manter a calma, mas o desespero transbordava nos olhos.
— Não fala, não gasta forças, Rellen!
Mas o amigo não parava. Não podia. Cada palavra parecia um peso arrancado de dentro.
— Eu… eu fui jogado contra a parede… arrastado túnel acima… não deveria… ter sobrevivido…vae..lith — Seus olhos se voltaram para Gustav, fixos, suplicantes. — Diz a eles… diz a todos… que eu… sinto muito.
O corpo dele relaxou de repente, pesado, e o silêncio voltou como uma pedra esmagando o peito de todos.
Ninguém se moveu. Ninguém soube o que dizer.
O cheiro de queimado e ferro pairava no ar. Os exploradores recuaram em respeito, alguns desviando o olhar, outros engolindo em seco. Um deles sussurrou, a voz trêmula:
— Se aquilo foi só uma armadilha… o que mais ainda está lá dentro?
Laura apertou o ombro de Karl. Não precisou falar. Ele já sabia.
A imagem do pilar rachado, os cristais brilhando, e o pequeno baú ornamentado voltaram com força. Ele havia visto. Estava lá antes. Se tivesse escondido, talvez ninguém tivesse encontrado. Talvez Rellen ainda estivesse vivo.
Ele fechou os punhos, os olhos fixos no corpo caído. O peso do silêncio parecia esmagá-lo mais que qualquer pedra.
Não conseguia tirar os olhos do corpo caído. A pergunta queimava dentro dele.
“Como Rellen tinha conseguido chegar até ali?” Ele e a mãe não estavam perto da explosão e, mesmo assim, quase não haviam alcançado a superfície. Foram ao menos dois quilômetros de túneis, pedras soltas, o ar denso queimando nos pulmões… Como alguém sem metade do rosto e um braço poderia ter percorrido tudo isso?
O silêncio da clareira se rompeu de forma sutil.
Um tremor. Pequeno. Como se o corpo tivesse dado um espasmo involuntário.
Alguns recuaram, murmurando em voz baixa. Gustav se inclinou, ainda segurando o amigo, os olhos arregalados.
— …Rellen?
Foi então que viram.
Dos cortes queimados e das feridas abertas, uma luz branca começou a vazar. Não era natural, não era chama, não era reflexo. Era como uma energia bruta tentando escapar, cintilando e pulsando em fios irregulares.
O corpo estremeceu. As pernas moveram-se em falso. E, com um estalo grotesco, Rellen se ergueu com seu corpo ganhando volume e o sangue voltando a cair como se acabasse de ser ferido.
Não havia consciência nos olhos dele. Apenas um reflexo vazio, perdido. Mas a boca se mexeu.
— D…desculpa… nós vimos… um pilar aberto… havia um baú… depois fogo… ele… virou cinzas… Vae.lith
Era a mesma fala. Palavra por palavra. A mesma confissão, repetida, sem pausa, como um eco quebrado.
— O… o que é isso?! — alguém murmurou, recuando com pressa.
Os exploradores começaram a se mover, alguns puxando armas, outros simplesmente tropeçando para trás, apavorados. Não havia lógica naquilo. Um homem morto não deveria se levantar. Um homem morto não deveria falar.
Karl sentiu o coração disparar. Aquilo não era vida. Não era morte. Era algo no meio.
— Afasta! — gritou uma voz feminina.
Uma das exploradoras, mais próxima, reagiu antes que o pânico do local se tornasse uma fuga descontrolada. Com um grito, ela cravou a lança direto através da cabeça de Rellen. O corpo estremeceu, a luz branca explodiu em fios desordenados e, por um instante, toda a clareira escura foi tomada por aquele brilho branco tímido.
Depois, silêncio.
O corpo caiu pesado, imóvel dessa vez. A energia se dissipou no ar como fumaça fria.
Ninguém se mexeu. Ninguém respirou fundo.
E foi nesse vazio que o pensamento se firmou na mente de todos ali: aquilo não era apenas uma explosão. Não era apenas uma armadilha. Algo havia escapado das ruínas.
Algo que não deveria existir.
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