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    O saguão da hospedaria era amplo, iluminado por janelas altas que deixavam entrar a luz clara da manhã. O cheiro de madeira polida e ervas secas penduradas em cordões criava um ambiente agradável e acolhedor para uma tropa em missão.

    O escrivão abriu um sorriso largo cumprimentando os primeiros membros da fila que estava se formando.

    — Vamos com calma, senhores. Todos terão seu nome registrado. — Ele ajeitou os óculos redondos no rosto e bateu a pena na borda da prancheta. — Nada mais prático do que ordem.

    Era um homem que parecia ter sido moldado para parecer simpático: postura relaxada, voz leve, comentários casuais. Um bom anfitrião, se alguém estivesse com disposição para notar.

    Mas Naira… notava outras coisas.

    Ela ficou observando enquanto Thamir era registrado.

    — Nome? — perguntou o escrivão, rápido.

    — Thamir. Guerreiro de Altheria.

    — Guerreiro de qual casa?

    — Até o momento da Casa Soren.

    — Até o momento? — O escrivão retirou os olhos da prancheta, encarando Thamir.

    — Estou em processo de transição entre as casas Soren e Seryn.

    — Perfeito. — O homem escrevia com rapidez suave. — E como foi a viagem? A caravana teve algum problema no caminho? — Ele ergueu os olhos, sorrindo. — Imagino que viajar com o Guardião do Norte deve ter suas particularidades, não?

    Pergunta suave. Normal. Irrelevante.

    Mas já era a terceira vez que ele tocava no mesmo assunto com diferentes pessoas.

    Naira cruzou os braços, aproximando-se mais um passo. O escrivão continuou registrando soldados e servos, sempre com o mesmo padrão: nome, função, uma pergunta direta… e outra pergunta indireta sobre Ian.

    — Ele costuma cavalgar à frente ou prefere permanecer com a comitiva?
    — Ele interagiu muito com vocês durante o trajeto?
    — Notaram algum movimento suspeito na estrada? Afinal… proteger alguém tão importante exige cuidado dobrado.

    Falava como se fosse apenas curiosidade. Talvez fosse. Talvez não.

    Os olhos dele, porém… eram vazios. Gentis na boca, mortos no olhar.

    Algo que arrepiava a nuca de Naira toda vez que ele levantava o rosto.

    — Nome?

    — Serena. Administradora da casa Seryn.

    — Olha só uma administradora — ele falou abrindo um sorriso — que coisa boa encontrar uma administradora aqui, achei que todas as administradoras tinham ido para o castelo, posso te cumprimentar?

    O escrivão estendeu a mão que foi aceita por Serena, em um cumprimento cordial.

    Enquanto o registro seguia, o barulho do lado de fora começou a aumentar.

    Vozes. Passos acelerados. Murmúrios excitados.

    Quando Naira espiou pela porta principal, viu a causa: as carruagens marcadas com os brasões de Altheria haviam chamado a atenção da população local. Gente de todos os tipos se apertava na frente da hospedaria curiosos, comerciantes, crianças empoleiradas nos ombros dos pais. Alguns erguiam o pescoço tentando ver através das janelas.

    — O Guardião do Norte está aqui? Onde está ele?
    — Dizem que ele congela um homem só com o olhar!
    — Será que ele pode ajudar minha familia?

    O escrivão suspirou teatralmente, calmamente ele se dirigiu para a porta da hospedaria e ergueu a voz com firmeza educação:

    — Atenção, senhores e senhoras! — disse, aproximando-se da porta. — O Guardião já está reunido com o rei no castelo. Não há motivo para tumulto aqui.

    A multidão murmurou, dividida entre frustração e excitação.

    — Vamos conseguir ver o guardião? — alguém no fundo da multidão gritou

    — Em breve irá ocorrer o conselho dos três reinos, acredito que vocês conseguiram vê-lo no festival das vozes.— o escrivão respondeu sinalizando para os guardas controlarem o tumulto.

    Aos pouco a multidão começou a se dispersar. Algumas crianças ainda tentaram espiar pela porta, mas foram puxadas pelos pais.

    O escrivão voltou ao registro como se nada tivesse acontecido.


    Assim que o último nome foi anotado, ele fechou a prancheta com um clique leve.

    — Todos devidamente registrados. — Ele sorriu. — Se precisarem de algo, enviem um recado ao castelo. Como sempre, estamos à disposição de Altheria.

    Naira observou atentamente o rosto dele. Nada. Nem um traço de falsidade aparente, nenhum comportamento anormal.

    Exceto pelos olhos, que não refletiam emoção alguma.

    Kael aproximou-se para conversar sobre os suprimentos, e o escrivão se juntou a ele com naturalidade. Logo, partiram juntos, seguidos por alguns soldados que foram ajudar no transporte das caixas restantes da caravana.

    Em pouco tempo o saguão se esvaziou. sobrando apenas Thamir e Naira.

    — Vamos ver os quartos — sugeriu Thamir.

    Naira concordou, e os dois subiram a escada de madeira que levava ao segundo andar. Cada degrau rangia, mas o corredor acima era limpo e bem cuidado. Quando abriram a porta do quarto que lhes fora destinado, Naira parou por um instante.

    — Isso… é mais do que eu esperava — murmurou Thamir.

    E era.

    Camas largas, lençóis limpos, lamparinas novas, janelas com vista para a rua principal. Até uma bacia de metal polido com água fresca havia sido deixada em cima de um móvel.

    Eles se sentaram nas beiradas das camas opostas.

    — A cidade é bonita — comentou Thamir, olhando para a janela. — Mas não sei… as pessoas parecem inquietas. Ou animada demais.

    — Concordo — falou Naira. — Mas é bom ficarmos com a guarda alta.

    Ele virou o rosto para ela.

    — Por que? por causa do escrivão?

    Naira apoiou os cotovelos nos joelhos.

    — Não sei explicar, mas parece ter algo errado com ele…

    Thamir pensou por um momento e respirou fundo.

    — Sei não hen, não percebi nada de estranho, mas vou ficar de olho.

    Thamir passou a mão no queixo pensativo.

    — Vamos ter que explorar, Sem levantar suspeitas.

    — O que vai ser difícil sem autorização, vamos ter que esperar a reunião dos reinos para só depois ver o que da para fazer. — Naira falou se levantando da cama — Até lá nos temos que nos misturar e colher informações.

    — Com Kael aqui? — Thamir bufou. — Ele se mistura tão rápido que daqui a pouco tá cobrando imposto no lugar do governante.

    Naira ergueu o olhar para a janela.

    E lá estava ele.

    Kael caminhava entre a população como se fosse parte da cidade havia anos, parando para cumprimentar vendedores, aceitando um pedaço de pão oferecido por uma senhora, tirando uma criança do caminho de um carro de carga.

    Misturado. Inserido. Invisível.

    — Ele é bom nisso demais — murmurou Naira.

    Thamir riu.

    — É. Esse desgraçado faz parecer fácil. Dá até raiva.

    Naira ainda observava Kael quando percebeu, pelo canto do olho, que Thamir não estava mais olhando para a janela.

    Ele encarava o chão. Mandíbula tensa. Mãos entrelaçadas.

    Quieto demais para o normal dele.

    — Thamir? — ela chamou.

    Ele demorou um segundo antes de responder.

    — Tem… uma coisa me incomodando — disse, enfim. A voz baixa, mas firme. — E não é sobre o escrivão. Quer dizer… não só sobre ele.

    Naira virou o corpo na direção dele, o olhar atento.

    — Fala.

    Thamir inspirou fundo, como alguém que já sabia que a própria frase soaria errada, mas precisava dizer mesmo assim.

    — Freddy, o espectro. Aquele que foi pra cima de mim lá atrás.
    — O que tem ele?
    — Aparentemente ele só tentou me atacar. Só a mim. — Thamir ergueu o olhar, sério. — E desde então… nada. Não tentou ir atrás de ninguém. Não apareceu de novo. Não deu sinal. Os Emblemas de Kael são poderosos mas um mago como aquele deveria conseguir passar por eles sem muitos problemas.

    Naira franziu o cenho, o desconforto se instalando imediato.

    — Talvez tenha sido coincidência — ela sugeriu, sem muita convicção.

    Thamir balançou a cabeça.

    — Ou ele desistiu… o que não faz sentido nenhum. era um mago poderoso demais e com ego demais.. gente assim não desiste.
    Ele se inclinou para frente.
    — Ou… ele conseguiu o que queria.

    A frase caiu no quarto como pedra.

    Naira não respondeu de imediato. Só ficou ali, olhando para ele como se tentasse mapear a ideia, ou o medo por trás dela.

    — Você acha que ele te marcou? ou que marcou outra pessoa? — ela perguntou por fim, quieta.

    Thamir deu um meio sorriso sem humor.

    — Não sei. Não sinto nada de diferente. Mas também… não sei o que eu deveria sentir se tivesse acontecido.

    Ela fechou a porta devagar, como se de repente o corredor pudesse ouvir.

    — Isso é realmente problematico — murmurou Naira. — E não podemos falar disso com Ian ou Kael. Não até termos certeza.

    — Eu sei — Thamir concordou. — Se Kael souber. E aí estamos ferrados antes mesmo de entender o que está acontecendo.

    — A luta contra Tyr… não gosto nem de lembrar.

    Silêncio. Aquele tipo de silêncio pesado que parece puxar o ar.

    Naira cruzou os braços.

    — Vamos ter que descobrir se esse espectro deixou alguma marca. Algum rastro. Alguma coisa que indique intenção.

    Thamir assentiu, mas o olhar dele se desviou para a janela de novo.

    — E tudo isso enquanto fingimos que somos só uma comitiva diplomática.

    — Bem-vindos à missão — Naira disse, seca.

    Mas a preocupação no rosto dela era nítida.

    — Thamir… se ele conseguiu o que queria — ela continuou — então você está no topo da lista de problemas.

    — É — ele respondeu. — E pior: sem saber qual é o problema.

    Os dois ficaram ali, quietos, olhando Kael trabalhando o charme dele lá embaixo como se o mundo fosse simples.

    Mas agora, para eles dois, não era mais.

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