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    Era o fim de tarde naquela praia congelada. 

    Embora chamar aquilo de “praia” fosse quase uma piada cruel. Não havia calor, risos ou ondas quebrando na areia. O mar, se é que ainda podia ser chamado assim, era um manto branco de gelo espesso, sólido como pedra, estendendo-se até onde a vista alcançava. Nenhum som de gaivotas, nenhum cheiro de maresia. Apenas o silêncio um silêncio tão denso que parecia pesar.

    Árvores petrificadas pelo frio contornavam a paisagem, seus galhos retorcidos como mãos enfeitavam a paisagem dando um toque tanto belo quanto macabro a aquela tarde. Até a areia, normalmente viva sob o sol, estava endurecida, transformada numa crosta gélida que rangia sob os passos como vidro prestes a se partir.

    Curiosamente, o céu estava limpo. Sem nuvens. Sem névoa. Um azul suave se estendia até o horizonte, revelando uma visão deslumbrante, quase irônica, considerando a falta de vida que reinava abaixo. Era como se o mundo tivesse congelado no instante mais belo do dia. Mas não havia ninguém ali para apreciá-la.

    Ninguém… exceto o Guardião do Norte.

    Ele permanecia sobre uma pedra elevada, a silhueta recortada contra o céu, imóvel como se fosse parte da própria paisagem. Seus olhos, atentos, observavam uma barreira translúcida que se erguia no vazio, separando aquele território de tudo o que havia além. Durante a noite, ela refletia as estrelas como um espelho celestial; de dia, brilhava com timidez, suas cores mudando em ondas suaves, como se respirasse.

    Com um salto preciso, o Guardião desceu da rocha. Seus pés tocaram o chão sem ruído, e ele caminhou lentamente até um ponto da barreira que agora começava a se tingir de vermelho.

    Seu sobretudo branco flutuava atrás de si com o vento leve. Forte e imponente, seu rosto revelava juventude incomum pele clara, cabelos cacheados caindo sob os olhos castanhos profundos. Vestia calças e blusa brancas, o sobretudo aberto como se ignorasse o frio absoluto. 

    Ao se aproximar da barreira, ela pulsava com um vermelho vibrante… quase vivo. Ele encostou a palma da mão na superfície mágica e soltou um suspiro. 

    — Está mais instável… 

    Ao se afastar, algo estranho aconteceu. A neve ao seu redor começou a se erguer, transformando-se em água líquida suspensa no ar. Fluidos cristalinos se reuniram em pontos específicos e se moldaram em uma armadura leve, brilhante e firme. O Guardião ajustou a manopla em seu braço, colocou o elmo e desapareceu por trás da couraça de gelo. Tudo que se via era a névoa quente de sua respiração escapando por frestas do elmo. 

    A barreira, antes vermelha, tornava-se agora cor de sangue. No centro, manchas escuras se aprofundavam. 

    Então, uma ponta prateada atravessou a superfície. Um som abafado de vozes ecoou, seguido pelo rasgo completo a barreira foi cortada de cima a baixo. Dela emergiu uma comitiva de vinte pessoas. 

    Dez deles trajavam armaduras de placa no estilo medieval europeu. Dois erguiam estandartes onde tremulava o símbolo de uma mão segurando um martelo. Os demais usavam mantos simples e empunhavam cajados mágicos. 

    — Esses caras de novo… — murmurou o Guardião, suspirando com irritação. Ele já havia perdido a conta. Seria a vigésima vez que esse reino cruzava a barreira? Era exaustivo. 

    — Quantas vezes esse reino vai precisar cruzar a barreira?

    A comitiva se espalhou em posição de combate, os olhos varrendo o ambiente até encontrarem o Guardião. Tensão. Troca de olhares. Finalmente, o líder removeu o capacete e gritou:

    — VOCÊ É O CHAMADO GUARDIÃO DO NORTE?

    O Guardião suspirou e respondeu com desdém:

    — Por que está gritando? Não há necessidade de tanto barulho.

    Surpresa. O grupo se entreolhou.

    — Estou a menos de cinco metros. Não há vento. Não tenho problema de audição. Pode falar normalmente — acrescentou o Guardião, com um tom de irritação.

    O líder, Dravis, se aproximou, revelando seu rosto.

    — Peço desculpas, Guardião. Sou o comandante Dravis, do Reino de Forndal. Estes são meus homens. Estamos aqui para realizar o Desafio do Guardião, como meus antepassados fizeram — disse Dravis, batendo o punho no peito em saudação militar.

    Os olhos do Guardião brilharam em azul sutil.

    — Comandante Dravis… você entende o que me pede?

    A temperatura pareceu cair ainda mais. Dravis manteve a postura, seus olhos agora brilhando num tom cinza metálico.

    — Entendo perfeitamente — respondeu Dravis, firme.

    — Nesse caso… me siga — disse o Guardião, virando-se e começando a caminhar.

    Dravis fez um sinal para seu grupo, e eles seguiram em silêncio. Um dos soldados se aproximou e murmurou:

    — Ele… ele realmente é o Guardião das lendas?

    Dravis não desviou os olhos.

    — Volte para a sua posição. De um jeito ou de outro… vamos descobrir em breve — respondeu Dravis, sua voz baixa e firme.

    Enquanto caminhavam, o Guardião perguntou:

    — Você realmente sabe o que acontece com aqueles que não conseguem superar o desafio?

    Dravis hesitou por um momento antes de responder:

    — Sim, sabemos. Mas estamos preparados para enfrentar qualquer desafio que você nos apresente.

    O Guardião sorriu levemente, um sorriso que não chegou aos olhos.

    — Veremos — disse ele, continuando a caminhar.

    A paisagem ao redor deles mudou, e logo chegaram à entrada de um desfiladeiro. À primeira vista, parecia comum… rochas cobertas por neve. Exceto pelas estátuas de gelo. Humanoides esculpidos com perfeição, retratando representantes das cinco raças principais. Soldados humanos com armaduras variadas. Todos eternizados na forma de gelo puro.

    Quanto mais se aproximavam do centro do desfiladeiro, mais figuras apareciam. Guerreiros, magos, reis. A tensão crescia como se as estátuas observassem. 

    Por fim, chegaram a uma colina de neve espessa. O Guardião parou, olhou em volta com serenidade e disse: 

    — Chegamos. 

    Subiu lentamente a colina, e ao alcançar o topo, estendeu a mão. 

    — Este é o local do desafio — disse o Guardião, parando diante das estátuas. — Aqui, vocês serão testados. Aqui, vocês descobrirão se são dignos de serem chamados de guerreiros do norte.

    Dravis olhou para as estátuas, sua expressão determinada.

    — Estamos prontos — disse ele, firme. — Vamos começar.

    — Agora… deixe-me preparar este lugar. 

    O que aconteceu em seguida faria Dravis ter certeza: aquele homem à sua frente… não era só uma lenda. 

    Era o Guardião. 

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