Capítulo 9 – Sob o Gelo
A arena estava vazia.
O silêncio era tão pesado que parecia ecoar. Não era o mesmo silêncio da expectativa antes da batalha. Era o silêncio de um homem que repensava seriamente o que iria fazer.
A neve havia parado, mas não havia paz no ar. O céu, antes limpo, agora se tingia de um cinza pálido, como se o mundo hesitasse entre o dia e a noite. Ao longe, nuvens densas se acumulavam, prenúncio de uma nevasca que em breve cairia.
O Guardião permanecia diante do pilar de gelo, como se não sentisse o frio ou simplesmente não percebesse a mudança no tempo. Com um gesto sutil, a mana ao redor do pilar se concentrou em sua mão. O pilar reagiu como se fosse parte dele. O gelo não se quebrou de forma violenta, mas se desfez em camadas finas, obedientes, como se derretesse não ao calor, mas à vontade de alguém que apenas o compreendia.
Aisha caiu de joelhos, ofegante. O ar frio rasgava seus pulmões como lâminas. A armadura havia desaparecido. Seus músculos tremiam tanto pelo frio quanto pelo choque. A mana em seu corpo estava desordenada, vibrando como se tivesse perdido completamente a harmonia.
Mais do que a dor, era incredulidade. Sua mente não parecia aceitar que ainda estivesse viva.
O Guardião se aproximou sem pressa. Retirou o sobretudo branco, um tecido espesso e limpo, e o envolveu ao redor dela.
— Vista isso. Vai ajudar a manter o calor — disse em voz baixa.
Aisha ergueu os olhos, surpresa.
Ele agora usava apenas uma blusa simples de gola em V, fina demais para o frio que os cercava. Qualquer outro homem já estaria tremendo, mas ele parecia indiferente.
— Você vai congelar… — murmurou, lutando contra os tremores do corpo.
Ele sorriu brevemente.
— Eu não congelo. Não mais.
Sem mais explicações, caminhou até a borda da arena.
Do chão de gelo, moldou placas curvas e blocos grossos. Em poucos minutos, havia erguido uma cúpula improvisada, um abrigo com paredes espessas e teto arqueado, sólido o bastante para suportar a tempestade que se aproximava.
O som do vento começou a mudar, uivando quando passava pelos pilares da arena de gelo. O abrigo parecia resistir, mas Aisha sabia que se ficasse ali do lado de fora, logo não conseguiria resistir ao frio.
— Por que… isso tudo? — perguntou, tentando se erguer, mas seu corpo não obedecia. Suas pernas pareciam mortas, e ao tocá-las não sentiu nada além de dormência.
— Porque você está viva. E porque o corpo precisa de tempo para se adaptar ao frio depois de ser invadido pela mana. — Ele se aproximou dela. — O abrigo vai manter a temperatura estável.
Ela não respondeu. Apenas observou quando ele a ergueu nos braços como se fosse leve, e a levou até dentro da cúpula.
O gelo da porta se fechou atrás deles, abafando o som do vento. Lá dentro, o ar parecia mais quente. Ele havia deixado uma abertura no topo, e por ela a luz azulada do céu filtrava suavemente. Ian se afastou, ajeitando o sobretudo sobre ela.
— Fique aqui. Vou buscar algumas ervas. Não são mágicas, mas ajudam a estabilizar o corpo. — Sorriu de canto. — E servem para chá. O chá é importante.
Aisha arqueou a sobrancelha.
— …Você faz chá?
— Faço muitas coisas. — Ele a olhou de canto de olho.
— Por quê? Não gosta?
— Não é isso. Eu… gosto, sim.
— Então já volto.
Ela o observou desaparecer entre os pilares de gelo. Mas não relaxou.
Desde criança, ouvira os contos sobre o Guardião do Norte. O formador de reis, o executor de lendas, o homem que moldava destinos. E agora ele estava ali, diante dela, usando uma blusa leve, preparando chá como se fosse um ancião da aldeia.
Parecia… apenas um homem.
Um pouco mais velho que ela.
Mas seus olhos não combinavam com juventude.
“Por que ele me salvou?”
“Por que me protegeu?”
“E o que ele quer de mim?”
Ela puxou o sobretudo para mais perto. O calor era reconfortante. O tecido cheirava a cedro, um aroma inesperadamente familiar, como se viesse de outro tempo.
Era bom… mas perturbador.
O que a incomodava não era o frio.
Era o fato de que ele parecia não querer nada em troca.
E isso… não fazia sentido.
Minutos depois, ele retornou carregando lenha, ervas e uma pequena bolsa de couro. Sem cerimônia, sentou-se ao lado dela. Acendeu o fogo com um simples encantamento, um estalo que transformou fagulhas em chama, e usou um velho capacete deformado como bule improvisado.
— Você está ferida — disse, sem olhar diretamente. — Posso tratar?
Ela hesitou. O orgulho pulsava. Mas a dor era insistente e os tremores que vinham do corte eram estranhos demais para ignorar. Ela Assentiu.
Ele se aproximou, puxou o sobretudo e examinou a ferida na lateral de sua cintura, o mesmo corte que ele havia causado. Aisha sentiu o sangue aquecer de vergonha, mas não recuou.
— Foi superficial. Mas a lâmina de gelo… é traiçoeira. — Pegou algumas ervas e preparou uma pasta. — Se não tratar, pode acabar virando uma verdadeira dor de cabeça.
Com cuidado, aplicou o remédio, pressionando de leve. O toque era frio, mas firme.
Ela prendeu a respiração, mas não pela dor. Pela estranheza.
Ele não a tratava como inimiga, mesmo considerando que eles haviam acabado de lutar até a morte,
— Você luta bem — disse, enquanto trabalhava. — Mas ainda hesita quando deveria confiar no instinto.
Aisha apertou os dentes.
— E você? Nunca hesita?
Ele deu um sorriso curto, sem humor.
— Hesito o tempo todo. Só aprendi a disfarçar.
Ela desviou o olhar, mordendo o lábio.
O Guardião hesitava.
Essa ideia parecia impossível.
— Você disse para não confiar no inimigo — ela murmurou, com um fio de ironia. — Mas está aqui… recompensando a confiança que depositei em você.
Ele parou por um instante, os olhos fixos nos dela.
— Talvez… eu também esteja tentando encontrar esperança em lugares onde ela nunca chegou.
O silêncio se prolongou. O fogo estalava, lançando sombras dançantes no interior do abrigo. Aisha não soube o que responder.
Ela baixou os olhos para as mãos.
E pela primeira vez… percebeu que o Guardião era humano.
Ele terminou de aplicar a pasta, cobriu a ferida e se afastou um pouco.
Serviu o chá com calma, estendendo o recipiente improvisado para ela.
— Beba devagar. Vai ajudar.
Aisha segurou com as duas mãos. O calor do líquido a surpreendeu. O sabor era amargo, mas reconfortante.
Eles beberam em silêncio por longos minutos.
Do lado de fora, a tempestade rugia. Mas dentro do abrigo, havia apenas o som do fogo, da respiração e dos goles discretos.
Aisha olhou para ele mais uma vez.
Não o Guardião das histórias.
Não o mito.
Mas o homem que fazia chá… em um capacete amassado.
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