Capítulo 14 — Interrogatório?
A gargalhada da guarda ainda ecoava na mente de Ian enquanto ele e Aisha eram escoltados por um dos caminhos escavados na pedra.
A trilha antiga, antes abandonada, agora levava a um posto avançado firme, com estruturas que pareciam ter brotado da rocha ao longo dos anos.
— “Guardião do Norte”… — murmurou a sentinela que os acompanhava. — Esse povo está ficando cada vez mais criativo.
Ian apenas manteve o olhar à frente, ignorando os comentários. Seu passo era calmo, quase relaxado. Aisha, por outro lado, estava ficando visivelmente irritada, talvez fosse com os guardas, ou com Ian ou com o frio cortante que ali mesmo sem neve, ainda parecia sussurrar memórias do inverno.
Seguiram até uma ala de contenção, Três celas reforçadas com runas e circuitos mágicos em constante fluxo. O lugar era mais avançado do que Ian lembrava, claro, da última vez havia apenas tendas e vigias mal organizados.
Um guarda se aproximou com um livro em mãos.
— Separar os dois. Vamos interrogar a mulher primeiro.
Ian ergueu a sobrancelha, sem humor.
— Péssima escolha.
Um sopro de energia percorreu o ar. Antes que alguém pudesse reagir, uma fina camada de gelo selou os lábios de Aisha. Ela levou as mãos à boca, os olhos arregalados.
— Mas o que… — começou a protestar uma das guardas.
— Calma — disse Ian. — Estou economizando o tempo de vocês.
Aisha o encarava com confusão. Ela recuou um passo. Tentou soltar um grunhido abafado, depois cruzou os braços, ainda firme, mas o olhar cortava como navalha.
Ian sustentou o olhar por um segundo… depois desviou.
— Nada permanente — disse em tom mais seco. — A boca dela volta ao normal em algumas horas. Se quiserem ajudar, podem tentar quebrar a magia, mas duvido que consigam.
A guarda bufou e deu ordens curtas. Aisha foi levada para outro cômodo, ainda lançando olhares furiosos por sobre o ombro.
Ian foi trancado numa cela que parecia mais decorativa do que funcional. Pelo menos à primeira vista.
— Runas — murmurou, ao observar os entalhes nas paredes. — Contenção e drenagem?
Ele se sentou, encostado na pedra. Observou as runas com um pouco de interesse.
— Parece que eles avançaram no uso das runas…
A guarda retornou momentos depois, sozinha, cruzando os braços do lado de fora da cela.
— Se você é mesmo o tal “Guardião”, por que raios viria por um caminho abandonado, escondido, e congelaria a própria companheira?
— Porque se fosse pela inteligência dos guardas do posto, estaríamos mortos há dois dias — respondeu Ian, sem mover a cabeça.
— Está me chamando de incompetente?
— Estou chamando você de afortunada. Porque até agora só enfrentei monstros, e eles costumam escutar melhor.
A mulher deu um passo à frente, irritada.
— Você tem língua afiada para um prisioneiro.
— E você tem muita confiança para quem está a três metros de um Varel com as duas linhagens despertas.
Silêncio.
— O quê?
Ela cerrou os punhos.
— Vou chamar a comandante.
— Já estava demorando.
Após alguns minutos em espera a porta se abriu com um som áspero. A mulher que entrou usava um manto azul-petróleo com detalhes prateados. O rosto era marcado, duro, mas os olhos eram inteligentes. Havia uma presença firme nela, como quem estava acostumada a comandar.
— Então, você é o motivo da agitação — disse, observando Ian.
— Imagino que causei coisa pior, anos atrás. — Ele respondeu coçando a cabeça.
— Anos atrás?
— É, de quando precisei parar aquela grande besta que parecia um dragão de duas cabeças, imagino que tenha dado para ver a luta de daqui.
Ela não respondeu. Apenas consultou um pequeno artefato que flutuava em sua mão, um prisma giratório que pulsava em tons azulados.
— Sem registros recentes. Nenhuma identificação. Nenhum selo de acesso às trilhas antigas. Nenhum sinal… compatível com os cidadãos de Altheria.
— De fato. Eu não sou exatamente… um “cidadão”.
— Então, quem é você?
Ian ergueu o olhar, os olhos cintilando com um tom gélido o que contrastava com a sua postura relaxada.
— Ian, Guardião do Norte.
A mulher ergueu uma sobrancelha. A sombra de um sorriso surgiu, mas era mais desprezo do que graça.
— Claro. E eu sou a Rainha da Névoa.
Ela se virou para sair.
— Você tem um dom para mentir, “Guardião”. E vai precisar de muito mais do que bravatas congeladas pra sair dessa cela.
— Ah, é? — O azul dos seus olhos se tornou mais profundo, como se tentassem engolir a sala.
Foi quando ela sentiu.
A temperatura caiu de forma súbita. O som da cela sumiu, e os cristais das paredes tremeram.
Runas começaram a se apagar.
Uma por uma.
A comandante girou o prisma para frente, tentando reativar o selo. Nada. As luzes mágicas falhavam.
Dentro da cela, Ian continuava sentado.
Estalactites de gelo brotaram do teto, crescendo em espiral pelas paredes. As grades começaram a ranger, pressionadas por uma força invisível.
A comandante deu um passo atrás.
Ian a olhou nos olhos.
— Eu não preciso de bravatas… Comandante.
Ele então levantou o dedo.
E todas as defesas da cela, encantamentos de drenagem, escudos antimagia, bloqueios de amplificação, quebraram. Uma a uma. congelando por dentro.
As luzes da prisão piscavam. As guardas, do lado de fora, já corriam para chamar reforços.
Ian apenas olhou para a comandante, agora parada a poucos metros da cela. Se estava com medo ou impressionada não demostrou.
— Eu vim até aqui por escolha Comandante. Eu podia ter passado por cima disso tudo.
Ele fez uma pausa.
— Mas achei educado bater antes de entrar.
A comandante engoliu em seco, mas não disse nada. Ian se levantou, e as runas da cela ainda tentava conte-lo, como se tentando se adaptar à sua presença.
— Você sabe quem eu sou — disse Ian, com um tom calmo. — E sabe o que posso fazer. Então, vamos conversar?
A comandante hesitou por um momento, antes de assentir.
— Sim, vamos conversar.
Ian sorriu, um sorriso frio e calculista.
— Excelente. Vamos começar.
O silêncio que seguiu a quebra das runas era quase absoluto.
As estalactites de gelo ainda pendiam das paredes da cela como garras prestes a fechar, mas Ian não se movia. Apenas observava.
Do lado de fora, a comandante permanecia firme, embora seus olhos agora carregassem algo além do desprezo: cautela.
Ela ergueu uma das mãos, e com um gesto sutil, as guardas recuaram, fechando a porta atrás de si. Ficaram a sós: Ian e a Capitã de Altheria.
— Se é verdade que é o Guardião do Norte, então responda três perguntas. — A voz dela soou cortante. — Responda certo, e eu mesma o levarei ao Círculo. Minta… e não vai sair vivo deste posto.
Ian inclinou levemente a cabeça.
— Justo. Pergunte.
A comandante aproximou-se um passo da cela agora desativada.
— Primeira pergunta: como morreu o dragão que estava aprisionado sob Nivarin?
Os olhos de Ian perderam o foco por um instante, como se olhassem muito além da comandante.
— Seiryu. Ele não morreu sob Nivarin… ele foi libertado. Por mim.
Ela cruzou os braços, expressão indecifrável.
— Libertado?
— Era um dos quatro guardiões que mantinham a estabilidade da barreira. Foi preso para conter sua influência, e para evitar que soubessem a verdade sobre como o equilíbrio realmente era mantido.
— E você quebrou esse equilíbrio?
— Não. O equilíbrio já estava quebrado. Eu apenas… escolhi não ignorar. Seiryu lutou ao meu lado. E morreu pelas minhas mãos. Foi o preço da verdade.
A comandante apertou os lábios. Não respondeu.
— Próxima pergunta?
— Nos últimos vinte anos — ela disse, aproximando-se mais — três grandes bestas romperam a barreira ao norte e foram abatidas. Eventos raríssimos, visíveis apenas aqui, do posto avançado ou de alguém que estivesse mais ao norte. Descreva-as.
Ian respirou fundo. Quando respondeu, sua voz estava mais grave.
— A primeira foi há o que?… dezessete invernos. Um colosso de garras espessas, cego e coberto de ossos cristalizados. Tinha um fôlego que corroía até o pedra. Cruzou a barreira por entre as geleiras de Var-Kun.
— Isso foi durante o eclipse… — murmurou a comandante.
— Sim. As auroras ficaram vermelhas naquela noite. Ele matou sete caçadores antes que eu pudesse chegar. Usei as próprias Geleiras contra ele. Demorou horas para os tremores cessarem.
Ela hesitou por um momento.
— E a segunda?
— Treze anos atrás. Um tipo de Serpente alada ou seja lá o que era aquilo. Transparente, rastejava pelo ar, deixando rastros de névoa venenosa. Quando gritava, paralisava qualquer coisa viva. Eu precisei usar uma armadilha, três cristais alinhados para redirecionar a frequência do grito e ainda assim não deu certo. O estrondo dela sacudiu tudo, imagino que deve ter dado para ouvir daqui.
— Continue. — A comandante franziu o cenho.
—A criatura havia absorvido feitiços dos humanos que atravessaram a primeira fenda. Então precisei apelar um pouco, mas no fim ela morreu.
Ela assentiu lentamente.
— E a terceira?
Ian fechou os olhos por um segundo.
— Cinco anos atrás. Uma criatura que já fora um dragão. Ou algo próximo. Mas estava… deformado. A carne fervia por dentro, os ossos pareciam ocos. Dois crânios. Um deles pendurado por veias como um sino.
— Eu me lembro do rastro no céu — murmurou ela. — Chamas negras em uma nevasca.
— Eu e… ela — ele disse, num tom quase inaudível — lutamos por dois dias. A criatura resistia à mana. Acabou que caímos em alguns picos afiados eu consegui desviar, mas o dragão era grande demais. Ele não resistiu aos ferimentos.
A comandante se calou.
Os dois ficaram imóveis por um instante.
Então a comandante deu um passo para trás, respirou fundo e se recompôs.
— Você descreveu cada criatura.
Ela fez um gesto com a mão. A porta da cela rangeu, abrindo-se.
— O Círculo vai julgá-lo. Não sei se com justiça…, mas pelo menos com contexto. Isso já é mais do que recebi nos últimos vinte anos — ela caminhou até as outras guardas que lhe entregaram o sobretudo que estava com Aisha —Não abuse da minha boa vontade, Guardião. Se estiver mentindo, os cristais do Véu vão reagir. E não haverá mais portas para se esconder.
— Então vamos descobrir, comandante.
Ela fez sinal com a cabeça e girou nos calcanhares, rumo à saída.
— Siga-me. O Círculo da Névoa aguarda.
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