O vento cortava com suavidade as muralhas da arena, mas havia algo diferente naquele dia. Não era apenas o frio habitual de Altheria da Névoa, o Interior da arena estava recheada de expectativa aguardando algo que ainda não havia acontecido. A multidão se espalhava em círculos bem formados nos degraus de pedra, as risadas e conversas animadas mescladas com o farfalhar dos estandartes que dançavam ao redor da estrutura. Para Mikal, tudo aquilo era novo…, mas também profundamente simbólico.

    Era sua primeira vez coordenando a arena. Seu primeiro posto em uma função tão exposta. Mas a verdade é que, por dentro, estava em chamas de expectativa.

    Não apenas por ela ter sido designada para a proteção dos membros do círculo, o que poderia lhe render contatos com as pessoas mais influentes em Altheria, mas também por conta do Duelo.

    — Cuidado com a borda. Último aviso — disse em tom firme a um grupo de jovens que tentava empoleirar-se nos degraus mais altos da arena que conectava ao mirante onde ficavam as pessoas de influência.

    Um leve sorriso escapou de Mikal, denunciando sua animação.

    A cidade estava em festa. Era raro ver um duelo oficial, ainda mais um envolvendo a Guardiã do Círculo. E contra quem? Um homem que dizia ser o Guardião do Norte. Um nome que até aquela manhã ela acreditava ser apenas uma lenda para assustar aprendizes e embasar discursos do Círculo.

    — Aposto que ele nem sabe conjurar direito — disse um senhor atrás dela, enrolado em um casaco.

    — Vai ser esmagado — respondeu uma mulher jovem ao lado, com um cristal de mana pendurado no pescoço, parecia ser uma estudiosa.

    Nesse momento um homem usando um terno azul entrou, esse Mikal conhecia bem, todos conheciam, afinal Malrik foi um dos poucos homens da História de Altheria a dominar a magia de gelo e garantir o seu lugar no círculo através da força, e um dos principais apoiadores da atual Rainha,

    — A Guardiã não perde. Nunca perdeu. — Malrik falou se sentando em uma das cadeiras próximas ao mirante.

    — Mas ele veio sozinho. Isso não é estranho?  — Murmurou uma jovem maga. — Nenhum escudeiro, nenhum símbolo oficial…

    — É encenação — retrucou outra maga. — Querem dar um show. E a gente veio pra isso.

    Mikal não respondeu. Observava. Sentia. Havia algo estranho no ar. Não era só empolgação era antecipação.

    — Espero que valha o tempo — Um dos mercadores comentou.

    A porta de ferro que dava acesso à arena rangeu, e Mikal virou-se no mesmo instante. Dois combatentes surgiram no campo.

    A primeira a surgir foi a Guardiã. Altiva, envolta em um manto de tons acinzentados e branco-gelo, o símbolo da cidade bordado em tom prateado no peito nada condizente com alguém que iria entrar em um duelo. Seus cabelos eram brancos, presos em um coque disciplinado, com uma tiara sutil de cristal adornando sua testa. Os olhos, afiados como adagas, varreram a arena com indiferença.

    Então ele entrou.

    Ele usava um casaco de tecido grosso, largo o bastante para ocultar parcialmente o físico, mas ainda assim denunciava força contida. O capuz caía sobre os ombros, revelando cabelos negros, desgrenhados e encaracolados. Seus olhos… ah, os olhos. Um azul glacial que parecia atravessar qualquer coisa até a alma da própria Mikal, se ela fosse honesta.

    — É ele? — sussurrou um dos jovens da arquibancada.

    — Parece um andarilho — respondeu outro.

    — Mas olha como ele anda… — disse uma senhora mais velha, com voz trêmula. — Não parece ser um homem comum.

    — Ele parece… calmo demais — Dessa vez quem comentou foi a Matriarca Elenys, que chegava junto com os membros restantes do Círculo.

    Ian caminhava com os ombros relaxados, sem pressa, sem encenação. As mãos à vista, e uma expressão que beirava o desinteresse. E ainda assim, havia algo nele que prendia a atenção. Não era só aparência, era a ausência de hesitação e a confiança absoluta que ele transparecia. Era hipnotizante…

    Mikal cruzou os braços, tentando se proteger do frio, ou de outra coisa que se espalhava no peito.

    A Guardiã ergueu uma das mãos. Os fios de mana reagiram, concentrando-se ao seu redor. A plateia silenciou quase imediatamente.

    O duelo começou.

    Ela não precisou de palavras. Nenhuma invocação, nenhum gesto exagerado. Apenas os dedos se movendo com precisão cirúrgica, manipulando o ar e a umidade à sua volta. Lâminas finas, delicadas e mortais surgiram em arco, disparando contra Ian como agulhas de gelo lapidadas.

    Ele não respondeu com magia.

    Desviou. Simples assim.

    Um passo para o lado. Depois outro para trás. Os ataques passavam rente demais para ser coincidência, mas nada o tocava. Em dado momento, estendeu a mão e tocou o chão, uma pequena formação de gelo surgiu e desviou uma das lâminas sem que ele sequer olhasse.

    — Ele… não está lutando de verdade — murmurou um dos guardas ao lado de Mikal.

    — Isso é estratégia — disse Elenys. — Está esperando-a se cansar.

    — Ou está testando o campo — sugeriu Malrik. — Sentindo a mana.

    — Ou está apenas brincando — Dessa vez quem falou foi a Matriarca Ydrine, que parecia zombar na situação. — Diga-me Malrik, desde quando ela é tão fraca?

    — Cuidado com suas palavras Matriarca, se não quiser que sua casa pague por algo que seus olhos não puderam entender. — As palavras de Malrik caíram com peso no ambiente, a única que parecia não ligar era a própria Ydrine.

    — Ela também está se segurando — A Matriarca Elenys interveio.

    Foi nesse momento que a Guardiã aumentou a intensidade dos ataques.

    Ela tecia em tempo real estruturas de combate. Estacas, correntes, escudos cristalinos que se fundiam e desfaziam como tecido maleável. Era uma exibição impressionante de técnica. Quase hipnótica.

    Mas Ian apenas se movia. Observava. Corrigia a própria posição com mínimos ajustes. E, mesmo quando bloqueava, o fazia com precisão desconcertante. Criava pequenos escudos. Finos, simples, eficientes e os dissolvia antes mesmo que tocassem o chão.

    — Isso não é normal — disse um dos aprendizes. — Ele não está usando mana como nós usamos.

    — Ele não conjura como os nossos — murmurou Malrik, inclinando-se para Elenys. — Não há padrão. Não há fórmula.

    — Isso não é conjuração — respondeu Elenys, sem desviar os olhos. — O que é isso?

    Foi então que Mikal entendeu o que a incomodava em relação ao duelo.

    Não era só a habilidade dele. Era a ausência de efeito.

    A Guardiã manipulava o frio com maestria, transformando o campo de batalha em um mosaico de neve e gelo, mas… ao redor de Ian, tudo era neutro. A temperatura não caía. Os cristais não se formavam. O vento não se mexia, mesmo com ele se movimentando de forma rápida pela arena.

    A mana parecia estranha… Como se esperasse permissão para reagir.

    Ele não estava apenas resistindo.

    Estava controlando o campo sem forçar.

    E, naquele instante, a jovem guarda entendeu o que todos haviam esquecido em meio aos títulos, protocolos e reuniões.

    Ele não precisava derrotar a Rainha para provar ser o Guardião…

    Bastava que todos percebessem que ele não estava sequer levando a sério.

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