Narrado por Lysvallis, Rainha de Altheria

    No instante em que pisei na arena, sabia que todos me observavam e tudo deveria ser perfeito.

    A postura, os gestos, o controle eu era a Guardiã de Altheria. Uma figura de ordem, disciplina e glória. Minha função não era apenas lutar, mas representar a vontade da cidade, a força do Círculo, a confiança de um povo inteiro.

    E que forma melhor do que uma batalha contra uma lenda? Mesmo no pior dos cenários eu ainda seria a Rainha que perdeu um simples duelo contra um Guardião lendário sem usar nenhum item de proteção.

    Cada passo parecia ecoar na memória daquelas paredes, cada movimento meu era interpretado como mensagem pelas pessoas que nos assistiam.

    E, ainda assim, ao ver aquele homem parado no centro do campo, com as mãos nos bolsos e aquele ar entediado de quem foi arrastado à força, uma parte de mim… riu por dentro.

    Era esse o “Guardião do Norte”?

    Definitivamente não era!

    Não condizia com as histórias. Não condizia com a lenda. Não condizia com o peso de um título que muitos acreditavam ser apenas folclore. Mas ao contrário dos outros eu li os registros da fundação da cidade, ele havia matado um dragão ancião praticamente sozinho, e isso a o que? Quase quatrocentos anos…

    — Vai atacar ou vai ficar tentando me congelar com o olhar? — ele disse antes que eu pudesse sequer anunciar o início da luta.

    A insolência fez alguns membros da plateia rirem. Outros ficaram em silêncio, chocados com a audácia. Eu, porém, mantive o rosto imóvel, não era a primeira vez que era provocada em um duelo.

    — Depende. O meu olhar já assustou muita gente por aqui. — Respondi, mantendo o tom neutro. O público nos cercava, vibrando de expectativa.

    O anúncio ecoou, anunciando o início do duelo. As trombetas de mana reverberaram pelo gelo e o campo brilhou, ativando as runas protetoras que impediriam mortes acidentais e danos a arena ou, ao menos, deveriam.

    Tecelagens rápidas, lâminas de gelo disparadas em sequência. Eu ataquei sem hesitar. Ele desviava com uma leveza absurda, como se o campo fosse seu quintal particular. A cada passo, a cada recuo, o corpo dele parecia já conhecer o terreno, como se tivesse lutado ali mil vezes antes.

    E no meio de uma esquiva perfeita, ele ainda teve o descaramento de falar:

    — Você é boa. Isso me deixa meio triste… eu gosto de ganhar rápido.

    Algumas pessoas na arquibancada riram de novo, outras protestaram, incomodadas. Eu não sorri.

    — Que bom saber. Vai doer mais quando perder devagar, então. — Retruquei, girando os dedos e invocando lanças finas que se projetaram em arco.

    Ele se moveu outra vez, mas não era apenas velocidade. Havia cálculo em cada desvio, como se previsse o caminho exato das lanças antes mesmo de serem disparadas. Era irritante.

    Durante os minutos que se seguiram, o combate foi mais psicológico do que mágico. Eu testava limites, ele me estudava como quem lê um livro antigo com páginas faltando. Senti o suor brotar na nuca, mesmo com o frio constante da arena.

    Mas algo começou a me incomodar.

    Ele não estava usando magia.
    Nenhuma imposição visível. Nenhuma dobra agressiva da mana.
    E, ainda assim, me pressionava.

    A arena estava em silêncio. Não o da multidão, mas o da mana.
    A mana observava. Como se aguardasse por ele.

    — Está mesmo lutando sério ou só está me fazendo suar para manter a pose? — perguntei, mais irritada do que gostaria de admitir.

    Ele parou. E sorriu.

    — Você quer que eu ataque de verdade?

    O público explodiu em murmúrios. A ousadia dele inflamava a todos. E combinado com a aparência, era fácil entender o porque a população estava brevemente dividida.

    — Quero que você prove que esse título de guardião não é só vaidade de exilado.

    Ele assentiu. E desapareceu.

    Não houve brilho. Não houve conjuração. Apenas movimento puro.

    E então, sem aviso, avançou.

    O golpe não foi mágico. Não foi elaborado. Foi um simples chute. Direto, preciso e brutal.

    Ergui uma muralha de gelo por reflexo, mas mesmo com a proteção fui arremessada do outro lado da arena como uma boneca de treino, aterrissando entre estilhaços e poeira. A dor correu pela lateral das minhas costelas, obrigando-me a soltar um gemido abafado.

    As pessoas gritaram. Algumas em apoio, outras em choque.

    Rangendo os dentes, me levantei. A dor era real, mesmo com a barreira recebendo a maior parte da força. O impacto me lembrava que aquilo não era brincadeira. Mas o que me perturbava ainda mais era que ele não havia usado mana. Era só… força física. Pura e crua.

    A plateia ficou em silêncio com a cena. Silêncio pesado, enquanto eu me levantava.

    — Forte. Mas ainda não o bastante pra ser ele. O verdadeiro Guardião teria encerrado isso com um olhar. — Falei, projetando minha voz para o público. Precisava recuperar a narrativa, mostrar que ainda tinha controle.

    Ele me olhou com intensidade, seus olhos brilhando em um azul profundo.

    — Então você acha que sou fraco para ser o Guardião?

    — Eu não estou menosprezando você — eu disse, mantendo a voz firme. — Estou apenas dizendo que o verdadeiro Guardião teria feito isso de forma diferente.

    — Diferente? — ele repetiu, sua voz subindo de tom. — Você acha que sabe como o Guardião lutaria? Você acha que sabe o que é ser forte?

    Ele deu um passo à frente, sua presença intimidante. Eu podia sentir a plateia se encolhendo, mas eu não me deixei intimidar.

    — Eu sei que você não é o Guardião — eu disse, firme. — E vou provar isso.

    O que vi em seu rosto, então, foi uma mistura de raiva.
    E decepção.

    E então tudo parou.

    A mana vibrou.

    Eu a vi se mover como uma serpente de vento translúcido que saía dele e se espalhava, tomando cada fio mágico da arena. Era como se as runas, as paredes, o teto e até o ar tivessem decidido obedecer a ele.

    Não era conjuração.
    Era comando.

    — Linhagem dos Kenzaru… — murmurei, sentindo meu corpo gelar. Eu tentava reter a mana dentro de mim, mas ela parecia me escapar como areia entre os dedos.

    Ele ergueu o olhar.

    E a mana vibrou de forma intensa, concentrada, até subir.

    Meus olhos acompanharam o movimento e percebi. Ele havia direcionado toda a energia não contra mim, não contra o público, mas contra o teto.

    Então, como se fosse um reflexo da sua irritação contida, o teto se partiu.

    A arena inteira tremeu. O gelo explodiu em mil fragmentos, lançando cristais e estilhaços por toda parte. O som foi ensurdecedor, um trovão partido em mil ecos.

    As guardas começaram a evacuar o público com urgência. Crianças gritavam, homens e mulheres se empurravam pelas saídas, e mesmo assim… ele permaneceu parado.

    Sob os raios do sol que agora entravam pelas aberturas, Ian estava imóvel.

    Eu senti a mana colapsar no teto, desviar do público… e depois se acalmar como uma fera contida. Ele havia controlado até a destruição.

    A estrutura da arena resistiu, mas todo o teto não. Ficou aberta ao céu, como uma ferida.

    Ele caminhou até mim.

    Os olhos… pela primeira vez, estavam sérios.

    — …Foi mal pelo estrago. Mas você pediu.

    O silêncio que se seguiu foi absoluto.

    E, pela primeira vez em muito tempo, eu não consegui responder.

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