Narrado por Lysvallis, líder do Círculo de Gelo

    A dor ainda vibrava em minhas costelas, mas o que realmente doía… era o silêncio.

    Por um momento, o mundo inteiro pareceu ter parado.

    O teto da arena havia se partido como vidro, camadas e mais camadas de proteção rúnica de séculos…. destruída assim, e todos ficaram presos naquela imagem impossível, fragmentos suspensos no ar, o sol invadindo um espaço que, por tradição, sempre deveria permanecer fechado. A estrutura ainda estava de pé, mas a simbologia era clara. O céu partido sobre nossas cabeças anunciava que nada permaneceria igual.

    Os ecos do impacto se dissolveram e os membros do Círculo correram.

    Passos apressados, vozes se atropelando. Alguns vinham até mim, tentando me ajudar a levantar. Outros me ignoravam por completo, correndo até ele.

    — Pelos antigos… ele… ele realmente…
    — A arena… ainda está de pé?
    — Guardião… me desculpe! Nós não sabíamos! Achamos que…

    Ian apenas os olhava como quem assiste a uma peça encenada pela milésima vez. Não parecia incomodado. Nem surpreso. Apenas… entediado.

    — Eu aceito flores, oferendas ou desculpas formais com chá de qualidade, caso estejam procurando maneiras de compensar o constrangimento. — disse, com aquele tom seco e zombeteiro.

    As guardas se entreolharam, sem saber se riam ou ajoelhavam. Eu apenas respirei fundo, ou tentei. A dor nas costelas me lembrou que não seria simples.

    — Tragam Aisha. Agora. — Completou, e a arena inteira pareceu mudar de ritmo. Uma das guardas correu de imediato, como se tivesse recebido uma ordem incontestável.

    Uma das pesquisadoras se aproximou, pálida.
    — Senhora… está bem?

    — Estou. Ele teve a delicadeza de evitar quebrar mais do que o teto. — Respondi, afastando-a com um gesto e caminhando em direção ao centro.

    Ian observava os estragos com as mãos nos bolsos, ar distraído. Havia sangue em meus lábios devido ao impacto, mas limpei rápido antes que ele percebesse.

    — Você planejou aquilo? — perguntei, mantendo firmeza na voz apesar da dor.

    Ele não desviou os olhos do teto aberto.
    — Planejei parar antes. Mas você é teimosa.

    Suspirei. O tom dele, o peso… e a forma como a mana se moveu em resposta. Não como se fosse invocada, mas como se ele fosse parte dela. Ou ela dele.
    Aquilo… o que foi aquilo?

    — …Você é mesmo ele. — Admiti. — O Guardião do Norte. Aquele dos relatos. Dos contos.

    Ele apenas inclinou a cabeça.
    — E você é a líder que me aprisionou, me trancou numa cela e me desafiou em público. Estamos quites?

    Por um segundo, fiquei sem palavras. O público, já em evacuação, ainda deixava ecos de murmúrios. O Círculo inteiro estava presente. Cada gesto meu seria lembrado.

    Respirei fundo. E pela primeira vez em muitos anos, baixei levemente a cabeça.

    — Em nome do Círculo de Gelo e de Altheria… peço desculpas, Guardião. Nós… falhamos em reconhecer sua presença. E subestimamos sua história.

    O silêncio que se seguiu foi quase cruel. Guardas me olharam como se não acreditassem no que viam. Alguns membros do Círculo murmuraram, chocados. A grande Lysvallis, pedindo desculpas em público… mas o que deveria fazer? Arriscar a ira do Guardião para manter o orgulho?

    Então ouvi algo que quase pareceu um riso. Baixo, contido.

    — Foi melhor do que as flores. — disse ele. E quando ergui os olhos, percebi que seu olhar estava mais calmo. Não menos intenso, mas menos… distante.

    Ainda assim, era como lidar com uma tempestade que, por capricho, havia decidido não nos destruir.

    — E agora? — perguntei.

    Ele respirou fundo, avaliando a arena em ruínas, os membros do Círculo atordoados, o público já evacuado.
    — Agora… preciso de ajuda para entender exatamente o que está acontecendo com essa barreira.

    As palavras dele foram diretas.

    — A barreira? — o conselheiro Malrik aproximou-se, sereno, como se tivesse esperado exatamente por esse momento.

    — Isso. Antes, levava quase dez anos para uma ruptura no Norte. Agora… é mais fácil contar os dias em que não há nenhuma.

    Eu já sabia. O ciclo estava se acelerando. As rupturas aumentavam. Havíamos sido alertados pelo Osculum. E o fato dele ter retornado… não podia ser acaso. Talvez fosse o sinal que temíamos.

    — Guardião… — disse Gilbert, um dos mercadores, sempre pronto a se alinhar ao mais conveniente. — Se me permite… a cidade precisa de você. Altheria precisa. Sem sua força, não resistiremos à próxima ruptura.

    Ian sequer o olhou.
    — Precisa de mim? Interessante. Porque há pouco, tudo que queriam era me manter numa cela.

    — Isso foi um erro! — outro membro apressou-se a dizer, nervoso. — Um mal-entendido!

    Ian ergueu os olhos para ele. Um instante de silêncio bastou para que o homem recuasse dois passos, engolindo as próprias palavras.

    Ele não precisava levantar a voz. Já havia provado quem era. Sua mera presença mudava a balança de poder.

    — Venha comigo. — falei, firme. — Vamos ao salão do Círculo. Temos muito o que discutir, Guardião.

    Ele me encarou, medindo minha sinceridade. Então assentiu.

    E, pela primeira vez, caminhamos lado a lado. Sem gelo entre nós.

    Os corredores ecoaram nossos passos. Ian seguia com calma, eu sustentava a postura ereta apesar da dor. Guardas nos acompanhavam a distância. Por minutos, não dissemos nada. O silêncio era denso demais.

    Por fim, falei:
    — Os membros do Círculo irão aguardar suas palavras agora que foi reconhecido.

    Ele me olhou por um breve instante.
    — Minhas palavras? Se está preocupada com os bajuladores, fique tranquila, Rainha Lysvallis.

    — Eles podem ser bem convincentes quando se esforçam. — Retruquei, iniciando a subida pela escadaria principal que ligava a arena ao Templo Inferior.

    Ele soltou uma risada curta, quase sem humor.

    Conhecia bem aquela sensação, os membros do Círculo sabiam jogar. Usavam palavras como lâminas e sorrisos como correntes. Mesmo enfraquecidos na prática da magia, tornaram-se mestres na manipulação. Um passo em falso diante deles poderia custar mais caro do que qualquer ferida em combate.

    Caminhamos em silêncio até o topo da escadaria. Foi então que ele falou de novo, a voz baixa, mas firme:

    — Não se preocupe tanto. Jogo esse jogo há mais tempo do que gostaria.

    Quando o olhei, já não vi apenas a tempestade. Sim, ele era uma arma ambulante. Mas, pela primeira vez, parecia… que queria me confortar.

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