Assim que o Guardião pronunciou aquelas palavras, o chão estremeceu. Precisei flexionar os joelhos para não cair, mas alguns dos meus homens não tiveram a mesma sorte. 

    Escorregaram, tropeçaram, afundaram brevemente na neve antes de se recomporem com olhos arregalados. 

    Aquela terra atravessada por uma comitiva que rompeu a barreira… agora nos mostrava o porquê de seu isolamento. 

    O Guardião moldou o desfiladeiro. Sem gestos grandiosos. Sem encantamentos audíveis. A neve se ergueu como se estivesse viva, girando sobre si mesma, comprimindo o espaço ao redor e formando uma arena de gelo perfeita. Dez metros de extensão, teto esculpido, pilares ondulados e detalhes minuciosos como se houvesse sido planejada por artesãos. 

    Mas foi feita ali. Em segundos. Por ele. 

    — Então, comandante Dravis — disse o Guardião, agora sentado em um trono de gelo recém-criado na extremidade oposta da arena — você conhece as regras do desafio? 

    Sua voz ecoava suave, mas cortante. Ele apontava para o centro da arena, aguardando. 

    O frio era constante. Mas o corpo treme quando antecipa combate real. Respirei fundo, tentando dar firmeza ao tom: 

    — Segundo a lenda… há três formas de desafio. O primeiro termina com a desistência de um dos lados. O segundo, com a desistência ou incapacidade. E o terceiro… até a morte. 

    O Guardião arqueou um sorriso. Gelado. Calculado. 

    — Muito bem, comandante. Imagino que tenham vindo por honra, por aprendizado… talvez por alguma recompensa. Mas saiba… hoje, não estou inclinado a ensinar nada. 

    Ele se recostou no trono, observando cada um de nós com olhos que pareciam atravessar carne e alma. 

    — Escolha cinco. Somente cinco de seus homens entrarão na arena. E defina o desafio. Os demais… fora. 

    A ordem foi como um chicote no silêncio. Meus soldados se entreolharam, tensão espalhando-se como faísca entre palha seca. 

    — Cinco? — repeti, tentando manter o tom neutro. 

    — Sim. Você tem três opções. Escolha sabiamente. Um erro… pode ser fatal. 

    A arena parecia respirar. A neve, os pilares, o trono. 

    Tudo parecia observar. 

    Eu olhava para meus homens, seus rostos carregando medo, dúvida, fé. O silêncio deles pesava sobre meus ombros. Cinco nomes. Cinco chances. Um erro aqui e a missão vira massacre… 

    O Guardião se inclinou, os olhos emitindo uma luz azul cada vez mais intensa. 

    — Estou esperando, comandante Dravis. Não tenho o dia inteiro. 

    Cinco homens. Nenhum estava pronto. E eu com a maldita decisão na mão, apensar de já ter discutido antes com os meus homens e temos decidido escolher o segundo desafio. Agora no momento da decisão um medo incomum estava me incomodando, e se o guardião decidisse simplesmente nos matar? 

    Nos contos antigos, o Guardião atendia todos os que conseguiam atravessar a tormenta — mesmo que alguns não sobrevivessem ao processo. Mas lendas não ensinam como escolher quem enfrenta a lenda. Olhei para meus soldados. O medo era visível. O tempo passava, e os tremores sob os pés só aumentavam. 

    Ele queria cinco. 

    Cinco. Na Linha de frente. 
    — Tyr, Agorn, Efil, Moru. E eu. 

     
    Avancei. Sem dúvida, sem pausa. 

     
    Atrás de mim, meus subordinados estavam com rostos aliviados. Parece que mesmo em ambiente hostil a coragem não os abandonou no momento do desafio. Encarei o guardião mais confiante. — Escolho o segundo desafio. 

    A terra vibrou como se em resposta às minhas palavras. Engoli seco. Duas guerras nas costas. Nunca vi o chão tremer assim… 

    O Guardião se levantou do trono esculpido em gelo. O som do movimento era mais pesado do que qualquer armadura. 

    — Olha só, vejo que tem coragem — ele disse, com aquele sorriso calculado. — Tem certeza, garoto? 

    “Garoto” …? 

    — Tenho certeza, caro Guardião — respondi, firme. 

    — Então vamos começar. 

    Ele caminhou até o centro da arena e parou a poucos metros de nós. Voltou-se para os demais soldados. 

    — Vocês aí, fora da arena. 

    Em silêncio, obedeceram. O frio parecia aumentar conforme ficávamos sozinhos no centro daquela estrutura viva de gelo. 

    — Bom… — o Guardião disse, colocando as mãos nos bolsos — faça o primeiro movimento. 

    Nesse momento, o frio se dissolveu. Uma sensação antiga tomou conta do meu corpo. Algo que eu não sentia desde antes da minha primeira guerra… foco absoluto.  

    E então, quando estávamos prestes a iniciar… 

    Algo mudou. 

    A atmosfera parecia quase viva, como se a própria estrutura respirasse com a mana do Guardião. E reagisse aos seus passos. 

    Então, o Guardião parou de andar. 

    Seus olhos se voltaram para o horizonte, mais precisamente para a extremidade norte da arena. Sua expressão mudou. Um brilho opaco azul começou a pulsar em suas íris. Nós não víamos nada além de céu limpo. Nenhuma ameaça aparente. 

    — Merda… — ele murmurou, franzindo o cenho. — De novo. 

    Antes que eu pudesse perguntar, a Barreira Dielis começou a vibrar em um tom silencioso que só ele parecia ouvir. Então, sem aviso, ela foi rasgada como um véu: uma ruptura prateada se estendia por cima da região montanhosa bem em frente à entrada do desfiladeiro. 

    Eu não conseguia ver o que rasgou a barreira. Nenhum de nós via. Mas o Guardião via tudo. 

    Do rasgo, surgiu uma nova comitiva. Marchavam em formação triangular. As armaduras negras reluziam em tons ferrugem, cobertas por runas antigas e placas de pedra com traços de magma congelado. As capas vermelhas flutuavam ao vento como línguas de fogo e os estandartes exibiam o símbolo de um corvo flamejante atravessado por uma lança. 

    Na frente vinha um homem corpulento, rosto coberto por um capacete negro decorado com uma plumagem, ombreiras com crânios de raptores mágicos e uma espada curva presa às costas com cristais vermelhos presos na lâmina. Atrás dele, dez cavaleiros pesados e silenciosos com escudos triangulares e machados. Quatro magos em mantos negros flanqueavam os lados. O restante eram escudeiros e soldados com lanças de aço sólidas e arcos tribais. 

    Não havia hesitação. Nenhuma reverência. E o mais impressionante marchavam como se conhecessem a região. 

    — Ah… maravilhoso. Os fanáticos de Ignaris — o Guardião disse, sarcástico, cruzando os braços. — Como sempre, usando mais pedra do que cérebro. 

    Ele estalou os dedos, e do lado oposto da arena, o solo gélido se ergueu e moldou um novo ser, um Golem de Gelo, com quase quatro metros, torso angular e um par de olhos azuis pulsantes como cristal vivo. O Guardião apontou com o queixo: 

    — Traga eles até aqui. Sem pressa. Só não deixe que se matem pelo caminho. 

    O Golem começou a andar com peso ritmado, abrindo caminho rumo à comitiva recém-chegada. Que já se aproximava da entrada do desfiladeiro. 

    O comandante mascarado olhou o Golem com desprezo. 

    — Nos deixe em paz, criatura. Seguiremos por nós mesmos. 

    O Golem parou, mas não recuou. 

     Retirando apenas o capacete, revelando seu rosto, uma enorme cicatriz cortava o lado esquerdo do seu rosto até a garganta, eles não pararam após falar com o Golem chegando à planície externa da arena. 

    — Como quiser — o Guardião respondeu, sua voz ressoou através do Golem erguendo a voz com falsa paciência. — Aproximem -se, mas se atravessarem os limites da arena sem a minha condução, o gelo vai engolir os seus pulmões antes que tenham tempo de se arrepender. 

    Houve uma troca de olhares. Um dos magos murmurou um feitiço, o Guardião levantou a sobrancelha. 

    — Olha… eles ainda têm coragem. Ou seriam apenas lentos demais pra aprender? 

    Por fim, o comandante mascarado fez um gesto de mão em silêncio. A comitiva avançou, liderada pelo Golem, a contragosto, mas sem alternativa. 

    E foi aí que tudo começou a escalar. 

    Assim que nossos dois pelotões se viram, espadas foram erguidas. Lanças se posicionaram.  Dei dois passos à frente, a mão na empunhadura da espada. 

    — Parados. vocês não têm jurisdição aqui. 

    — Vocês cruzaram primeiro — respondeu um mago de Ignaris com desdém. — São invasores. 

    Os soldados de Forndal abriram formação. Um confronto direto parecia inevitável. 

    E então… o Guardião agiu. 

    Com uma única batida do pé sobre o gelo, a arena vibrou. As colunas se iluminaram. O trono explodiu em cristais suspensos e seu corpo foi transportado em velocidade absurda para o centro da arena. 

    O Guardião se moveu. 

    Não como os soldados treinados, nem como os magos que pairam com a mana. Ele andava como se o mundo se ajustasse ao passo. O gelo sob seus pés não estalava… ele pulsava. Cada deslocamento era silencioso, mas a presença aumentava como uma maré que pressiona pulmões sem avisar. 

    Depois do estalo de pé que fez o trono de gelo se desfazer em cristais suspensos, ele não correu. Ele simplesmente não estava mais onde estava antes. A imagem se arrastou por décimos de segundo, e quando percebemos, ele já estava no centro da arena  

    Expressão carregada por uma fúria quase ancestral. 

    — NÃO. EM. MINHA. ARENA. 

    As palavras surgiram com peso tectônico. O tempo hesitou. 

    Ele girou, sem pressa, e fitou a comitiva recém-chegada. 

    Os Filhos de Ignaris, como ficou claro ao vermos suas cores. Armaduras escuras com bordas vermelhas, capas flamejantes, insígnias de corvos em chamas e lâminas entalhadas com runas tribais. Não era uma marcha, era um desfile de autoridade hostil. 

    O Golem de gelo escoltava a comitiva, em silêncio, mas os líderes do grupo recusavam sua presença com olhares ríspidos e mãos nas armas. 

    — Ah, os pequenos invencíveis — ironizou o Guardião, com um sorriso que escorria sarcasmo. — Olhem só: marcham sobre uma lenda e pensam que podem fazer exigências. Que ousadia… 

    O comandante do exército rival se adiantou. Era imponente, com ombros largos e sua armadura parecia mais robusta, decorada com fios de prata e rubis fundidos. Um mago se posicionou ao lado dele, murmurando: 

    — Nós viemos… para realizar o desafio. 

    O Guardião levantou uma sobrancelha. 

    — Sabem as regras? 

    O mago hesitou, mas o comandante respondeu de forma indiferente: 

    — Sabemos. Terceiro desafio. 

    — E trouxeram um guerreiro para ser congelado, então? 

    O silêncio respondeu por eles. 

    — Claro que sim — o Guardião riu, quase ofendido. — Não bastava cruzar sem convite… trouxeram carne de sacrifício. Muito nobre. 

    Ele apontou uma das mãos para o chão, e o gelo se ergueu formando um obelisco que exibia a marca do desafio final: um brasão azul-escuro envolto por uma espiral de neve, sinal de que um dos combatentes morreria e seria mantido como parte da arena. 

    — Sigam com sua covardia — disse o Guardião, se virando. 

    O confronto havia sido interrompido, mas a arena ainda pulsava como um coração em alerta. 
    Longe do centro, atrás do escudo de ferro e do silêncio, alguém observava. 

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