Capítulo 20 - Liberdade
Narrado por Aisha
Eu estava sentada no chão frio daquela cela improvisada, o gelo que selara meus lábios havia derretido há horas, mas o silêncio que ele impôs ainda ecoava em minha mente.
Por que ele fez aquilo? Para me proteger? ele disse. Para “economizar o tempo deles”.
Uma parte de mim estava com raiva pela humilhação, pela falta de escolha. Mas uma outra, não sabia exatamente como se sentir afinal eu havia sentido o poder dele em combate e visto a facilidade com que ele manipulava o gelo, sabia que ele não estava brincando. Ele era perigoso, sim, mas também… imprevisível.
Meus pensamentos voltavam para ele, O Guardião do Norte. A lenda que eu havia enfrentado, que me havia ensinado minhas “três falhas gritantes”, e que, contra toda a lógica, havia me salvado.
Por que? Ele falou de Jyn, da dor, do último pedido dela. Disse que eu o lembrava dela, não pela dor, mas pela força que a dor deixou em mim, ou seja lá o isso signifique. E que talvez ele precisasse “salvar o que restou” dele. Eram palavras pesadas, cheias de um cansaço que ia além do físico. Ele não era o monstro dos contos de Ignaris, nem o formador de reis que as lendas de Forndal pintavam. Ele era… um homem.
Ian era, um homem quebrado, talvez, mas que ainda se importava o suficiente para quebrar um voto de séculos por uma estranha. E isso, era mais do que qualquer demonstração de poder…. me intrigava.
A porta da cela rangeu, me tirando dos meus devaneios. Uma guarda de Altheria, com a armadura fina e os filetes prateados que eu já havia visto, parou à minha frente. Seus olhos eram sérios, mas não hostis.
— Aisha — ela disse, a voz firme e profissional. — Ordens da Capitã Neriah. Você deve vir conosco. O Círculo a aguarda.
Meu coração deu um salto. O Círculo. O mesmo lugar para onde Ian havia sido levado. Levantei-me, sentindo o frio da pedra sob meus pés. A guarda fez um gesto, e eu a segui, meus passos ecoando no corredor de pedra escura.
O posto avançado era conectado a uma teia de túneis e passagens escavadas na rocha. O ar aqui era mais frio do que na cela, com um cheiro úmido de pedra e um leve toque metálico que eu não conseguia identificar. As paredes, antes nuas, agora revelavam entalhes sutis, runas que pulsavam com uma luz azulada fraca, canalizando mana para manter o ambiente mais aquecido e funcional. Eu podia sentir a mana vibrando sob meus pés, uma sensação diferente da mana bruta de Ignaris, aqui, ela era parecia… calma.
Saímos do posto avançado e entramos na trilha que levava à cidade. A neve havia dado lugar à rocha úmida e escura. Com arvores e musgo crescendo a partir das rachaduras, curiosamente o ar da cidade desse lado do posto estava mais quente.
Meus olhos varriam a paisagem, absorvendo cada detalhe. O vento sussurrava entre as pedras. A trilha serpenteava pelas encostas, uma cicatriz antiga na montanha.
Enquanto caminhávamos, comecei a notar algo que me surpreendeu. Passamos por várias guardas, todas mulheres, com suas armaduras e mantos azul-escuros. Elas se moviam com uma confiança e autoridade que eu nunca havia visto em mulheres em Ignaris. Lá, éramos moldadas para ornamentos, não batalhas. Minha própria luta para ser vista, para provar meu valor sob a armadura de Lucian, havia sido uma rebelião silenciosa contra essa norma.
Mas aqui… em Altheria, essa parecia ser a regra, não a exceção. A estranheza da situação me atingiu com força junto com uma pontada de tristeza que pressionava meu coração como uma lâmina fria. Eu havia passado a vida inteira escondendo quem eu era contra minha própria família… minha mãe, lutando por uma dignidade que me era negada simplesmente por ser mulher, e agora eu estava em um lugar onde mulheres empunhavam espadas abertamente, comandavam, e eram respeitadas.
Era como se o mundo tivesse virado de cabeça para baixo.
O caminho se abria em fendas naturais, com alguns animais pequenos correndo entre as fendas. O cheiro do ar mudava, misturando a madeira molhada com um aroma mais fresco, talvez de ervas que cresciam nas fendas, ou de alguma fumaça distante. O eco de nossas botas contra o solo de pedra era constante, um ritmo que me guiava para frente.
À medida que nos aproximávamos, a cidade de Altheria da Nevoa começou a se revelar em camadas. Construções elegantes de gelo encantado e pedra escura se erguiam ao redor, refletindo tons azulados e violetas mesmo sob o céu nublado. Torres arqueadas conectavam patamares diferentes com pontes suspensas. Era uma cidade vertical, esculpida na montanha, com casas recortadas da pedra viva. Eu podia sentir a frieza do gelo, mas também uma energia sutil que o tornava quase quente ao toque, uma textura suave e polida que contrastava com a aspereza da pedra.
Passamos por pequenos mercados onde o povo trocava peles, ervas e fragmentos de cristal do Véu. O cheiro de especiarias e de algo defumado pairava no ar, uma mistura exótica que me fez perceber o quão longe eu estava de Ignaris, não apenas em distância, mas em cultura. O murmúrio das conversas, o farfalhar dos mantos, tudo contribuía para uma sinfonia de vida que era ao mesmo tempo familiar e estranha.
A guarda me guiou para o Distrito do Templo Inferior, um lugar que haviam mencionado como o centro de julgamentos e decisões. O pátio central era amplo, delimitado por colunas de gelo puro que sustentavam uma cúpula encantada. A estrutura da sede do Círculo de Gelo erguia-se diante de mim, imponente, construída sobre as cinzas e ossos de um dragão. O gelo absorvia a luz difusa, emitindo um brilho azulado suave, e os entalhes em espiral nas paredes pareciam conduzir mana.
Parei em frente ao prédio, meus olhos percorrendo a grandiosidade da construção. Era mais do que eu esperava, mais do que qualquer coisa que eu já havia visto em Ignaris. A imponência do lugar era esmagadora, um testemunho de poder e história. Eu estava ali, Aisha, diante de um novo mundo, pronta para enfrentar o que viesse.
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