Capítulo 22 — “Minha aprendiz”
Narrado por Ian
Ela caminhava com passos suaves, certeiros, o queixo erguido, eu conseguia perceber que a dor do meu golpe ainda a incomodava, durante o duelo eu não queria partir para o ataque, queria apenas que ela desistisse após comprovar minha força, mas parece que essa Rainha é teimosa demais, até tentei não bater forte o suficiente mas parece que foi força demais para ela.
Ela parou diante de Aisha com aquele olhar glacial que eu já conhecia bem demais. Eu não demonstrei durante o duelo, mas aquele olhar… realmente causa arrepios, me lembrava o olhar de Kael quando decidia levar a sério. Ela ajeitou o cabelo e, com toda a pompa possível em uma sala onde só restavam os desconfiados, ela disse:
— Então me diga… — sua voz era baixa, quase neutra. — Quem é você?
Mal a pergunta terminou de se formar, senti um espasmo subir pela espinha. Aisha hesitaria. A verdade era complexa. Talvez perigosa. E, mais importante, ninguém ali estava pronto para ela.
— Minha aprendiz. — Respondi, antes mesmo que Aisha pudesse abrir a boca.
A Rainha piscou, surpresa, mas o sorriso que apareceu nos lábios era um daqueles difíceis de classificar… algo entre divertida e perigosamente curiosa.
— Aprendiz? — Ela me lançou um olhar enviesado, como quem vê um tigre afirmando ter adotado um filhote de coelho. — E que tipo de lição você anda ensinando, Guardião?
— Primeira lição: desviar de perguntas inconvenientes. — Respondi, erguendo uma sobrancelha e dando um sorriso para ela.
Aisha me fuzilou com os olhos, mas ficou em silêncio.
Inteligente. Orgulhosa também. Mas ainda assim inteligente.
Ninguém ali podia saber que Aisha era na verdade alguém de fora da barreira. Não tive tempo suficiente para identificar como eles lidam com os votos dos Guardiões.
— Ela não parece muito satisfeita com isso. — A Rainha observou, dando mais um passo agora em minha direção. — Vai deixá-la falar em algum momento? Ou a função de aprendiz inclui um voto de silêncio?
— Só até ela aprender a não responder perguntas feitas por quem ainda não disse o nome. — Retruquei, seco.
A capitã Nériah disfarçou um sorriso no canto da boca. A vice-líder levantou uma sobrancelha. E a Rainha… bem, ela riu. Baixo. E continuou andando até mim, agora parando a um passo de distância… um pouco perto demais para o meu gosto.
— Eu sou Lysvallis. — disse, com naturalidade, como se o nome não carregasse o peso de uma cidade inteira sobre os ombros. — Guardiã de Altheria da Névoa, Primeira do Círculo, Tecelã do Gelo, conhecida como Senhora da Névoa.
Ela recuou um passo e fez uma curta reverência enquanto me olhava. — Mas você… pode me chamar de Rainha, já que você insiste tanto.
Eu acabei deixando escapar um riso no canto da boca. Essa mulher…
Ela voltou os olhos para Aisha, agora com um tom mais… humano.
— E você, aprendiz? Qual o seu nome?
Aisha demorou um segundo para responder. Os olhos iam de mim para Lysvallis e voltavam. Ainda tentando entender o jogo. Ou talvez só digerindo a ideia de ser aprendiz do homem que havia congelado a boca dela poucas horas atrás.
— Aisha. — respondeu com firmeza. — Só Aisha.
Lysvallis assentiu com um meio sorriso, como quem aprova a resposta.
— Nome curto. Gosto disso — disse, voltando-se para Aisha. — Eu já gosto dela. Mas o mestre… esse, ainda estou decidindo.
— Se serve de consolo, estou na mesma com você. — Rebati, sem tirar os olhos dos dela.
Lysvallis riu novamente, um som mais profundo desta vez.
— Acho que vamos nos dar bem, Guardião. — disse, olhando para mim com um toque de diversão.
— Ainda não tenho tanta certeza — Falei iniciando um reverencia curta sem tirar os meus olhos dos dela. — cara Lysvallis.
Ela ficou em silêncio por um instante. Os olhos azuis-violeta brilharam por uma fração de segundo.
Antes que o clima ficasse ainda mais… estranho, a voz leve da vice-líder atravessou o salão:
— Vocês dois vão ficar se provocando a noite inteira ou vamos visitar os estudiosos da barreira?
A Rainha suspirou, como se estivesse abrindo mão de um prato principal. Eu apenas ergui os ombros.
Ela sorriu outra vez, mas dessa vez havia algo diferente ali. Talvez… expectativa?
Ou talvez eu que estivesse começando a gostar demais da brincadeira.
Os corredores abaixo da cidadela eram diferentes do resto da cidade. Aqui, a pedra parecia mais antiga, menos lapidada, mais carregada.
Caminhávamos em silêncio, exceto pelas trocas ocasionais entre Lys e sua irmã. Sim… antes de entrarmos no Túnel a vice líder se apresentou ela se chama Thalien e descobrimos que na verdade as duas eram irmãs.
Elas falavam baixo demais para ouvidos comuns, mas eu ouvi.
Claro que ouvi. Uma das vantagens de ter a linhagem dos kenzaru.
— Já está correndo atrás da tradição, Lys? — disse Thalien, com aquele tom de quem cutuca feridas só por diversão.
— Você está delirando. — A resposta foi rápida, prática. Um corte limpo.
— Delirando? O que foi aquela conversa agora a pouco?
Lys suspirou.
— Você realmente vai insistir nisso?
— Só estou dizendo. Se ele for mesmo quem diz ser… bom, já que a tradição existe…
— A tradição foi criada como uma piada, Thalien.
— Até o Círculo começou como uma piada, lembra? E veja onde estamos. E ainda assim… ele voltou.
As palavras ficaram no ar como vapor quente em uma câmara fria.
Lys não respondeu. Não ali. Apenas apressou os passos.
Aisha parecia não ter notado nada, ainda distraída com os cristais de luz embutidos nas laterais do túnel. Talvez fosse melhor assim.
Logo, a entrada do salão do Véu surgiu diante de nós. Uma porta larga, entalhada com o símbolo da ordem. Um olho em meio a traços que lembravam ondas. As runas ao redor vibraram com a aproximação de Lys, abrindo passagem.
Dessa vez, eu fiquei em silêncio. Sentia algo… denso.
Assim que cruzamos a entrada, fomos recebidos por um salão oval subterrâneo, iluminado por cristais suspensos. A câmara estava vazia, exceto por quatro estudiosos de mantos escuros à nossa espera.
O mais velho deu um passo à frente. Tinha cabelos grisalhos presos num coque baixo e olhos verdes com intensidade suficiente para rivalizar com o brilho dos cristais.
— Guardião. — disse com uma reverência contida. — Seja bem-vindo. Já estávamos reunidos quando soubemos da sua chegada.
— E não quiseram perder a oportunidade de impressionar. — Respondi, cruzando os braços.
O homem sorriu.
— Digamos que o tempo também tem nos pressionado.
Lys fez um gesto breve para que prosseguissem. O estudioso girou a mão e, à sua frente, onde havia um mapa do continente o mapa começou a bilhar mostrando algumas linhas de energia dançantes.
— A barreira sempre foi um campo distribuído. A mana que a sustenta flui em ciclos, conectando as zonas naturais e mantendo os limites do continente… seguros.
Ele fez um movimento mais amplo, e linhas começaram a se mover em direção ao centro do mapa.
— Mas há alguns anos, começamos a registrar um desvio no padrão. Toda a mana da barreira… está sendo emitida de um único ponto.
As linhas convergiram, espiralando para um núcleo no meio das montanhas. Senti minha garganta secar por um instante.
Meu olhar estreitou.
Isso só podia ser uma piada..
Ali ?!
Justamente ali ?
Perto demais do lugar onde, há eras, Seiryu foi selado.
— E o que existe nesse ponto? — perguntei, sabendo que já desconfiava da resposta.
— Ruínas. De um templo antigo. Muito antigo. — respondeu uma das outras estudiosas, uma mulher alta com cabelo preso em tranças finas. — Mas há uma barreira ao redor das ruínas que nunca vimos igual. Nenhuma análise mágica consegue sequer identificar o tipo de energia. É… primitiva. E resistente.
Thalien se aproximou da projeção, cruzando os braços.
— Seja o que for… está lá dentro. No coração das montanhas. Pode ser o que tem gerado a barreira todos esses anos.
A coincidência me incomodou. Muito.
— Esse local… já foi explorado? — perguntei, tentando manter o tom neutro.
— Até certo ponto. — respondeu uma das estudiosas, uma mulher de voz firme e gestos controlados. — Conseguimos guiar exploradores a alguns anos, onde conseguimos a maioria das nossas informações. Mas nada que tentamos funcionou para atravessar a barreira.
— Nada? — Aisha se adiantou, surpresa.
— Tudo falha. — disse o mais velho. — Encantamentos se apagam. Rituais não funcionam. É como se a própria existência estivesse errada.
Ele se calou por um momento antes de continuar.
— E há mais. Criaturas começaram a surgir ao redor da área. Bestas alteradas. Corrompidas. Coisas que não deveriam existir. Elas eram fracas no início, mas começaram a aparecer bestar muito poderosas, fomos forçados a recuar por enquanto. — Ele falou enquanto se inclinava sobre o mapa — Quando comparamos os fluxos, percebemos que todas as grandes falhas na barreira nas últimas décadas tiveram um padrão: a deformação começa naquela região… e se espalha.
As projeções no mapa mostravam os mesmos rastros. Sempre vindo daquele núcleo.
Lys deu um passo à frente, olhando para mim. Havia algo no rosto dela… entre tensão e expectativa talvez?
— Guardião… nós estamos tentando achar uma forma de reparar a barreira, sua ajuda é mais que bem vinda! — ela falou enquanto me olhava — você pode nos ajudar?
Respirei fundo. A mente girava em possibilidades. Se aquele lugar era mesmo o que eu imaginava… então o mundo estava brincando comigo de um jeito terrível.
— Posso tentar. Mas aviso… se isso estiver ligado ao que penso, vamos precisar de ajuda…
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