Narrado por Aisha 

    A guarda me conduziu até a entrada do prédio, onde duas outras mulheres, usando armaduras bem diferentes das que vi até agora, elas brilhavam e estavam portando longas lanças, estavam em guarda em frente. Elas me lançaram um olhar frio e avaliativo. A guarda que me acompanhou fez um breve aceno. 

    — A Líder espera por ela no salão — ela disse com uma voz baixa e formal para as sentinelas. 

    — Fomos informadas — respondeu uma das guardas da entrada. 

    A porta, feita de pedra polida, se abriu quase sem ruído, e a luz do exterior foi substituída por um brilho suave que emanava de algumas lareiras nas laterais. Um calor sutil me envolveu, afastando o frio do corpo e me causando uma estranheza reconfortante. Era um lugar limpo. 

    Fomos guiadas para um vasto saguão, com pilares de gelo esculpido que subiam em espiral até o teto. As paredes, feitas de uma pedra negra e lisa, pareciam absorver o som, tornando o lugar solene. Começamos a subir a grande escadaria em caracol, talhada na própria rocha da montanha. O gelo polido sob meus pés era frio, mas as decorações na pedra ao meu lado me lembravam de que estava no coração de um lugar grandioso. Um cheiro de pedra úmida e minerais pairava no ar, puro e limpo. 

    A subida era longa, uma jornada ascendente que parecia me levar cada vez mais fundo no coração daquela cidade. Ao longo das paredes, imagens de guerreiros e criaturas míticas eram entalhadas em um gelo mais escuro, um mural de glória e história. Eu vi uma mulher, com uma lança na mão, enfrentando uma besta do limbo. Outra imagem mostrava uma mulher em um trono, com uma expressão de autoridade inabalável. Uma narrativa que exibia a força e liderança da tribo Gel’Varel. 

    Finalmente, chegamos ao topo. As guardas abriram um par de enormes portas duplas, feitas de gelo, e me empurraram gentilmente para dentro de um salão vasto e circular. Assim que cruzei o limiar, uma onda de mana atingiu, fazendo a pele de meus braços se arrepiar. Meu corpo todo reagiu, absorvendo e sentindo aquela energia como uma onda avassaladora, diferente de tudo o que eu já havia sentido. 

    A primeira coisa que notei foi o teto. Era um domo alto, feito de gelo translúcido. Dentro dele, um candelabro que imitavam flocos de neve rodopiava e brilhava, como se uma pequena tempestade estivesse em um ciclo eterno logo acima de nossas cabeças. O chão, de pedra negra polida, tinha intrincados desenhos em espiral de mana que pulsavam com uma luz azul suave. 

    No centro do salão, uma mesa no formato de uma lua Crescente e baixa de pedra escura estava cercada por cadeiras de gelo esculpido. A sala estava cheia de figuras vestindo mantos de cores diferentes, os membros do Círculo de Gelo. A conversa deles era um murmúrio baixo e intenso, e as vozes, principalmente de mulheres, flutuavam no ar pesado de mana. 

    Conforme me aproximei da mesa, pude começar a ouvir discussão em andamento. Uma mulher mais velha, com longos cabelos brancos e uma expressão cansada, parecia estar no centro do debate. 

    —…e como podemos ignorar o chamado de Cervalhion? — ela dizia, sua voz ecoando com autoridade. — Eles solicitam uma reunião dos líderes para debater o enfraquecimento da barreira e os ataques das bestas de limbo. Se a nossa líder não comparecer, pareceremos fracos ou, pior, negligentes. 

    — Eles nos subestimaram por séculos, achando que pôr a barreira ser mais fraca do nosso lado iriamos implorar por ajuda — respondeu uma mulher mais jovem e de aparência severa. — Agora que a barreira deles está falhando, eles nos procuram? Não podemos simplesmente abrir as portas para toda a arrogância de Cervalhion e Elandor. 

    Uma figura sentada à cabeceira da mesa, uma mulher de semblante calmo e sério, interveio. Sua aura, mesmo sem falar, demonstrava uma autoridade inabalável.  

    — Precisamos de uma solução, não de uma guerra. Ignorá-los agora seria abrir uma nova frente de batalha que não podemos nos dar ao luxo de lutar — no momento que ela falou os outros membros pareceram inclinados a concordar e a tiara azul sobre sua cabeça denunciou o seu cargo… ela era a líder do Círculo. 

    Havia algo de inquietante em estar em uma sala onde todos falam, mas ninguém parece realmente dizer o que pensa. 

    Os membros do Círculo falavam com calma ensaiada, trocando ideias como se fossem moedas, com um valor aparente, mas quase sempre ocos. Discussões políticas tendem a ser assim, embates silenciosos, onde o que importa quase nunca é o que está dito em voz alta. A reunião parecia em um impasse. E então, minha visão se moveu para o lado e… E meu corpo congelou. 

    Lá estava ele. Ian. O Guardião do Norte.  

    Sentado à mesa, em uma cadeira que parecia feita para ele. Ele estava com seu sobretudo branco, o olhar sério e atento, mas não participava do debate. Apenas ouvia. Enquanto comia um punhado de frutas. 

    O que ele estava fazendo ali? A pergunta ecoou em minha mente. O homem que eu havia visto ser desafiado e aprisionado, agora estava sentado em uma posição de poder, como se fosse um deles. Como se ele pertencesse àquele lugar. 

    Ian era um enigma, um mistério que me assustava. E agora, sentado entre os líderes de Altheria, ele parecia ter se tornado parte do mistério daquela cidade.

    Apesar de ter sido aprisionada e deixado tudo o que conhecia para trás, o que me deixava ainda mais desconfortável não era nem eu estar em uma sala com as pessoas mais poderosas de uma cidade que eu não conhecia… Era ele. 

    Ian estava calado. 

    Calado de um jeito que me fazia prestar atenção. Como se esperasse alguma brecha, como se deixasse os outros cavarem o próprio buraco antes de dizer qualquer coisa. 

    Enquanto isso, eu observava. Era o que fazia de melhor. Não me intrometer, só absorver. Entender as dinâmicas, os olhares trocados, o que não era dito. Era assim que se sobrevivia no meio militar e talvez… fosse assim que eu sobreviveria ali também. 

    Meus olhos pararam na líder do Círculo. 

    Os olhos dela tinham aquele tom vívido que só os usuários de gelo mais avançados exibiam. Era o tipo de detalhe que denunciava o poder mesmo quando o corpo estava parado.  

    Se queria intimidar, conseguia. Mas não era só isso. Ela escutava. Estava no jeito como inclinava o rosto, como deixava um dos pés levemente à frente do outro. Tudo nela era calculado e ao mesmo tempo, fluía com uma naturalidade irritante. 

    Como se tivesse nascido para mandar. Era curioso como ela não levantava a voz, mas mesmo assim todos diminuíam a sua quando ela falava. 

    Uma das pesquisadoras, de feições duras, mas olhos inquietos, se levantou, falando com veemência: 

    — Se essa convergência está realmente se intensificando, não podemos esperar. Cada segundo importa. Se esperarmos pela autorização de Cervalhion, pode ser tarde demais! 

    Outros retrucaram, lembrando da tradição, dos acordos firmados há décadas. Uma comerciante mais idosa, cuja voz trêmula não escondia a astúcia, resmungou: 

    — Nós não somos vassalos de Cervalhion. Não podemos agir como bárbaros só porque agora nosso antigo mito resolveu aparecer. 

    “Antigo mito”. Dei uma olhada discreta para Ian, que estava sentado ao lado da líder. Imóvel. Silencioso. Quase entediado.  

    A reunião continuou por alguns minutos até que a líder se levantou. 

    — Não tomaremos nenhuma decisão hoje. — Sua voz era firme, sem margem para objeção. — Ainda temos tempo. Cervalhion pode esperar um pouco mais. 

    Um murmúrio atravessou a sala, e antes que qualquer outro argumento fosse levantado, um dos mercadores, um homem de trajes bordados e dedos cobertos por anéis lançou um olhar inquisidor para Ian.  

    — E o Guardião? — disse ele, com um sorriso polido demais para soar sincero. — Estamos diante de alguém que já viu a barreira de perto. Ainda não ouvimos sua opinião sobre essa “convocação real”. 

    Ian ergueu os olhos, sereno. 

    — Quando um rei convoca outro… não é um chamado. — Ele falou enquanto pegava uma fruta da mesa — É uma ameaça mal disfarçada… ou um pedido de socorro mal formulado. 

    O silêncio foi imediato. Os membros do Círculo se entreolharam, e alguns pareciam não saber se engoliam o próprio orgulho. 

    A líder observou Ian por um momento, com discrição antes de suspirar, como se aquela fala tivesse colocado um ponto final no encontro. 

    — A reunião termina aqui. Todos estão dispensados… exceto a vice-líder, Neriah e… — Seus olhos passaram por mim por um breve segundo, como se ponderassem algo — …a forasteira. 

    Um a um, os demais membros começaram a deixar o salão. Ian permaneceu sentado, tranquilo como se nada houvesse acontecido. Já eu me mantive de pé, evitando cruzar olhares ou dizer qualquer coisa precipitada. 

    Assim que a porta se fechou atrás dos membros, a líder deu alguns passos, ficando agora mais próxima de mim. Pela primeira vez desde que entrei naquela cidade, pude observá-la. 

    O vestido branco que usava caía com leveza, mas não escondia a força de sua postura. Havia uma abertura lateral do lado esquerdo, que subia até um pouco acima do joelho, revelando parte da coxa de pele pálida. Ela caminhava com firmeza, e mesmo sua silhueta magra exalava presença. 

    Os brincos prateados balançavam sutilmente enquanto ela se aproximava. Cada um deles segurava um pingente oval azul-violeta, que refletia a luz do salão de maneira hipnotizante. A cor coincidia com a tonalidade dos seus olhos… olhos que não apenas brilhavam como gema, mas reluziam com um brilho gélido, como se a mana de gelo estivesse tentando deixar claro seu domínio. 

    Ela parou diante de mim com uma expressão tão neutra que parecia impossível dizer se estava prestes a sorrir ou me interrogar. 

    — Então me diga… — sua voz era baixa, quase neutra. — Quem é você? 

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