Narrado por Ian

    A brisa fria ainda pairava sobre os telhados de Altheria quando desci da torre antiga. A cidade inteira parecia prender o ar.

    O véu espesso que cobria os telhados havia se dissipado de uma vez, deixando as ruas nuas, expostas. As pessoas olhavam para o céu com diferentes expressões. Era belo, sim. Mas em Altheria, beleza desse tipo no inverno era prenúncio de algo errado.

    Na base da escadaria de pedra, Lysvallis me esperava, encostada em uma coluna quebrada. Braços cruzados, o manto pesando contra o vento. O tipo de postura que não dizia “rainha”, mas “juíza”.

    A poucos passos dela, Aisha permanecia imóvel, braços cruzados também. Mas diferente dela, não era encenação. Era instinto. O que vi no rosto dela era mistura de alerta e curiosidade.

    — Vai me dizer o que foi aquilo… ou devo esperar por uma carta formal? — Lysvallis disse sem rodeios deixando claro a sua irritação.

    — Depende. — retruquei, parando diante dela com as mãos nos bolsos. — Você gosta de surpresas ou prefere relatórios?

    Ela não sorriu. Apenas estreitou os olhos.

    — Tremeu metade da cidade. — Sua voz cortava como gelo. — Comerciantes acharam que era ruptura ou uma quebra de ruina. Neriah teve correr para cuidar da evacuação templo superior. Crianças choraram. Velhos quase desmaiaram. Então…?

    Olhei para o céu ainda limpo, como se calculasse a resposta.

    — Foi só um sinal. — respondi com naturalidade. — Um chamado que combinamos entre velhos amigos. Admito… foi mais dramático do que eu lembrava.

    Lysvallis cruzou os braços, impassível.

    — Que tipo de sinal causa uma aurora súbita, evapora a neblina e faz a cidadela tremer?

    — O tipo que usamos quando estamos com problemas sérios. — disse, firme. — do tipo que eu não consigo resolver sozinho.

    O silêncio que veio depois não foi só dela. Guardas ao redor engoliram seco. Aisha deu um passo à frente, sem falar, mas atenta.

    — Eles responderam? — Lys perguntou, a voz mais baixa.

    — Sim. Três pulsos. — voltei o olhar para o norte. — Thamir provavelmente será o primeiro. Deve chegar em poucas horas… com trovões e aquele maldito estrondo.

    Fiz uma reverência curta.

    — Me desculpo, em nome da tragédia acústica que está a caminho.

    Ela revirou os olhos, mas o canto da boca denunciava um traço de riso.

    — Você e seus amigos sabem como fazer uma entrada.

    — Aprendemos com o melhor… ou com o pior. Nunca tivemos certeza.

    — E quantos mais vêm? — o tom dela soava mais preocupado com logística do que curiosidade.

    — Apenas os dois. Kael e Naira. Eles são mais… civilizados. Só Thamir acha que raios são forma aceitável de cumprimentar alguém.

    Ela suspirou. Ajeitando a tiara que representava a coroa, parece que o peso parecia mais real naquele instante.

    — Ótimo. Vou avisar o conselho para não surtarem de novo.

    Assenti. O céu, mesmo limpo, parecia pesado agora. E foi então que decidi cutucar, mais por necessidade do que por provocação.

    — Já que falou em conselho… como vocês organizam tudo isso? — perguntei, fazendo um gesto amplo para a cidade ao redor. — Faz tempo que não vejo Altheria, e a versão que encontro agora não se parece nada com as lonas de quando parti.

    Ela me lançou um olhar longo, avaliando se devia responder. Ela respirou fundo e descruzou os braços, como quem aceita um fardo inevitável.

    — Muito bem. Vou ser direta. Altheria tem três estruturas centrais. O templo inferior, o templo superior e a cidadela. Cada uma cumpre uma função.

    Caminhamos lentamente pela rua estreita, e ela falava como quem desenha um mapa invisível no ar.

    — O templo inferior foi o primeiro a ser construído depois da queda do dragão. Ele abriga as deliberações do Círculo, julgamentos, negociações. É o coração político da cidade.

    Assenti, lembrando-me da meia-lua de cadeiras, dos olhares calculados, das palavras medidas.

    — O templo superior, por outro lado, é mais… mundano. Residências. Famílias importantes. Emissários de outros reinos. Todos os que acreditam que podem se dar ao luxo de olhar para nós de cima. — Havia uma ponta de desprezo em sua voz.

    — E podem? — perguntei.

    Ela virou o rosto para mim.

    — Podem acreditar que podem, infelizmente ainda não produzimos comida suficiente para todos, então acabamos dependendo de Cervalhion. — disse simplesmente.

    — Então vocês dependem deles…

    — E eles de nós — Ela falou me olhando com calma — Eles só conseguem manter a produção de alimentos estável graças a nossa magia e nossos cristas da Névoa.

    — Então é uma dependência mutua.

    Seguimos caminhando seguindo a estrada enquanto Lys acenava para os moradores acalmando eles, Aisha acompanhava em silêncio, absorvendo cada palavra como se fosse parte de uma aula.

    — Por fim, a cidadela. — Lys continuou. — É onde eu vivo. Onde recebo o povo, quando o tempo me permite. Ali, é onde guardamos os registros mais antigos, mas também os dilemas mais recentes. Muitos vêm com problemas banais. Outros… com pedidos que poderiam destruir famílias inteiras.

    Pela primeira vez, vi cansaço em sua voz. Não fraqueza, mas um cansaço frio.

    — Parece um grande peso. — comentei.

    Ela não respondeu de imediato. Seus olhos estavam fixos nos telhados distantes, onde o vento carregava pequenos flocos.

    — E é mas governar é isso. — disse por fim. — por isso preciso de aliados confiáveis.

    O silêncio voltou entre nós. sendo cortado apenas pelos nosso passos e o vento.

    Até que ela voltou os olhos para mim.

    — Então? Está satisfeito com a explicação?

    — Satisfeito? — ergui uma sobrancelha. — Não. Mas grato. É raro conseguir ouvir tanto sem precisar bater em alguém.

    O canto da boca dela quase ameaçou um sorriso, mas se conteve.

    — Não se acostume.

    — Já me acostumei. — respondi, em voz baixa.

    Então, para quebrar o clima, perguntei:

    — E eu e minha aprendiz? Onde dormimos esta noite?

    Lys voltou à postura glacial de antes, como se recolhesse qualquer vulnerabilidade.

    — Dormir? Depois de praticamente anunciar o apocalipse?

    — Sim. — repeti. — Destruir a paz pública me dá sono. E ela também precisa descansar. Prometi que a viagem seria “emocionante, mas com pausas”.

    Fiz um gesto para Aisha, que desviou os olhos, mas não contestou.

    Lysvallis me mediu longamente.

    — Cidadela velha ou templo inferior.

    — Algum lugar sem vigias armadas já é avanço.

    — Então… templo superior. — disse ela, virando-se com um movimento fluido de manto. — Sigam-me, Guardião. Vamos ver se encontro um quarto que sobreviveu ao seu show.

    Segui com meio sorriso. Aisha atrás de mim, cenho franzido, absorvendo tudo como quem caminha em um sonho onde nada faz sentido.

    Acima de nós, o céu permanecia limpo.
    E eu só podia esperar que Thamir decidisse chegar com calma, sem colocando tudo a baixo dessa vez.

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