Capítulo 27 - “Fantasmas sem Camisa”
Narrado por Lysvallis
O vento soprava alto naquela noite. Carregava o cheiro de tempestade antes mesmo que o som dos trovões confirmassem sua chegada. As runas entalhadas nas paredes pulsavam com uma luz discreta, estabilizando o frio para que não devorasse o ambiente.
Mas não era o vento que me mantinha acordada.
A mente, essa velha traidora, insistia em repetir os eventos do dia. A chegada do Guardião. A luta. O modo como ele simplesmente… quebrou tudo que eu acreditava estar sob controle.
Eu sempre fui boa. Precisa. Tecelã de gelo. A mais jovem entre as líderes do norte e, se alguém perguntasse, também a mais preparada. Era o que me orgulhava de ser. Era o que eu precisava ser.
Mas aquela luta me fez repensar. Tudo.
A forma como ele se movia, como lutava sem seguir padrões, como parecia ler a mana ao redor. Era como se os anos tivessem transformado Ian não apenas em um mago, mas em uma tempestade consciente. Selvagem e, ao mesmo tempo, deliberada.
E s meus anos de treinamento não tivessem valor algum para ele.
Fechei os olhos por um momento. A imagem do impacto na arena ainda dançava atrás das pálpebras. Aquele último golpe, aquele olhar frio. E o cuidado escondido por trás dele.
— Ian… — sussurrei, sem perceber.
E então ele caiu.
Do céu.
Como um vulto bem treinado. Ou um gato enorme.
Aterrissou a menos de dois metros de mim, do lado oposto da janela, como se aquela fosse sua entrada oficial. O impacto foi silencioso, como se até o vento tivesse conspirado para não denunciá-lo.
Fiquei tão surpresa que demorei um segundo para reagir.
Ian.
Descalço. Sem camisa. O peito marcado por uma cicatriz que o frio da noite parecia ignorar. Usava apenas uma calça folgada, e aquele pingente de metal escuro pendurado no pescoço. O mesmo que eu tinha visto brilhar discretamente durante o combate na arena.
Ele também ficou em silêncio. O tipo de silêncio que dizia: ok, talvez tenha sido uma péssima ideia.
— …Oi. — disse ele.
A voz não era exatamente como a de quem está envergonhado. Era de quem foi pego de surpresa pela própria impulsividade.
Cruzei os braços. Uma sobrancelha se ergueu automaticamente.
— Espero que essa não seja a sua definição de uma “visita discreta”? — perguntei. — Porque se for, preciso repensar minhas runas e meu conceito sobre você.
Ele sorriu. Aqueles sorrisos curtos e de canto. O tipo que tenta não admitir que sabe que errou.
— Velhos hábitos. — respondeu, dando um pequeno passo para o lado, ainda na borda. — Bater na porta nunca… foi meu ponto forte.
Ele estava agachado em cima do parapeito. Tenho que ser justa: que cena… a luz azul da lua combinando com aqueles olhos, a postura dele parecendo tão natural quanto perigosa.
— Nem se vestir antes de escalar torres, pelo visto. — respondi, recuperando um pouco da compostura.
Ele olhou para baixo, como quem só então percebe o que estava vestindo.
— …Ah. É… Pelo menos não estou com uma armadura completa. — rebateu, rindo de si mesmo.
Eu o encarei.
— Entrar por janelas no meio da noite é algo comum onde você morava?
— Só quando a porta fazia barulho demais. — Ele respondeu, ainda casual. — Ou quando queria evitar perguntas.
— E hoje? — perguntei, suavizando o tom.
Ele ficou em silêncio por um momento. O sorriso sumiu.
— Thamir está chegando.
Meu coração acelerou sem que eu quisesse demonstrar. Já havia notado o trovão, mas agora vinha com contexto.
— O trovão? — perguntei, com a voz mais baixa.
— É. E se ele seguir o padrão habitual… vai entrar na cidade como um raio. Literalmente. — Suspirou. — Achei justo avisar antes que o pânico comece.
— Espera… — demorei um segundo para processar. — Você está me dizendo que aquela tempestade se formando é Thamir?!
— Exatamente. — ele confirmou, como se estivesse falando de algo banal.
Mas banal não era. Nem perto disso. Eu conhecia os feitos dos melhores conjuradores do continente homens e mulheres que dedicaram a vida inteira a dominar a mana. Alguns eram capazes de transformar o próprio corpo em energia e se mover como um relâmpago. Mas conjurar uma tempestade inteira? Forjar trovões que anunciavam sua chegada antes mesmo de seus pés tocarem o chão? Isso… era outra escala. Isso era um absurdo.
— Não fique tão surpresa ainda… — Ian falou como se estivesse lendo meus pensamentos.
— E resolveu me contar entrando no quarto da Rainha pela janela? — completei, ainda tentando decidir se estava mais irritada com o atrevimento dele ou com a existência de alguém capaz de moldar os céus dessa forma.
Ele hesitou.
— …Ok, talvez eu devesse ter pensado um pouco mais antes de escalar. — disse, enfim levantando as mãos em sinal de rendição. — Você me pegou dessa vez.
Nos encaramos por um segundo. A névoa no horizonte parecia cessar pouco a pouco. O trovão ecoou outra vez, mais próximo.
— Entra logo antes que os guardas te confundam com um espectro sem camisa. — falei, abrindo espaço para ele passar.
Ele saltou para dentro, quase sem som, como se tivesse treinado aquela transição a vida inteira. O corpo relaxado, mas os olhos atentos.
— Da próxima vez use a porta. — falei, já caminhando até o guarda-roupas.
— Portas fazem barulho. — ele retrucou, baixinho, como se fosse uma lei universal.
— E entrar sem camisa não? — lancei por cima do ombro.
Ele riu. De novo aquele som leve, curto, que parecia escapar contra a vontade dele.
Peguei uma camisa longa de tecido grosso e virei para entregá-la. Ele a recebeu sem cerimônia, vestindo-se ali mesmo, sem preocupação com formalidades.
— Obrigado. — disse, ajustando as mangas.
O silêncio se instalou por um instante. O quarto parecia menor com ele ali dentro.
— Então… o que exatamente devo esperar dessa chegada? — perguntei, voltando ao tom político. — Porque, ao contrário de você, eu preciso pensar em como a cidade vai reagir.
— Espetáculo. — respondeu, seco. — Relâmpagos, trovões, talvez um terremoto pequeno se ele estiver animado.
— Está brincando?
— Queria. Mas é Thamir.
— Ótimo. — murmurei. — Então amanhã terei que acalmar meio conselho e ainda preparar justificativas diplomáticas para o barulho.
Ele se encostou na parede, braços cruzados.
— Não se preocupe tanto. Eu aviso o povo que é só ele chegando.
— Avisar? — ergui as sobrancelhas. — E quem exatamente você acha que vai ouvir? Você não é um dos nossos oficiais. É um Guardião que acabou de tremer metade da cidade, metade da população tem medo de você.
— E ainda assim você abriu a janela para mim. — respondeu, tranquilo.
— Não abri a janela para você — respondi rápido.
— Mas não me expulsou…
Mordi o lábio sem deixar escapar resposta imediata.
Ele estava certo.
Suspirei fundo.
— Você me irrita.
— Costumo causar esse efeito. — disse ele, quase divertido.
Por um instante, me peguei pensando em como seria fácil odiá-lo. Teria sido mais simples se ele fosse só arrogância, só poder bruto. Mas não era. Ian parecia ter um jeito de expor falhas.
— Por que você realmente veio até aqui? — perguntei, estreitando os olhos.
Ele desviou o olhar, encarando a tempestade que se aproximava.
— Porque… não consegui ficar deitado. E para falar a verdade eu nem havia pensado a respeito e também porque achei que você merecia ouvir antes dos outros.
A resposta foi tão direta que me pegou desprevenida.
— Eu? — perguntei, quase sem perceber que minha voz havia ficado mais baixa.
— Você é a Rainha. — Ele voltou o olhar para mim. — É a única que tem que parecer no controle… mesmo quando não está.
Meu corpo gelou, Então ele entendia.
Ele via.
O trovão rugiu mais perto, quebrando o instante.
— Vai me deixar explicar isso ao conselho sozinha? — perguntei, tentando recuperar o tom profissional.
— Não. — respondeu. — Eu vou estar lá. Com você.
— Isso não necessariamente é algo bom.
— Nunca disse que seria.
O silêncio se instalou de novo. Só o vento e a tempestade nos observando.
Eu finalmente apontei para a porta.
— Da próxima vez, use isso.
Ele sorriu de canto, já caminhando em direção à saída.
— Vou tentar. — disse, sem muita convicção.
Quando passou por mim, o ar pareceu ficar mais frio. Ou talvez fosse só a lembrança da arena, ainda pulsando na minha memória.
A porta se abriu e foi fechando em silêncio.
Fiquei sozinha.
Mas o quarto não parecia o mesmo.
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