Narrado por Lysvallis

    O vento soprava alto naquela noite. Carregava o cheiro de tempestade antes mesmo que o som dos trovões confirmassem sua chegada. As runas entalhadas nas paredes pulsavam com uma luz discreta, estabilizando o frio para que não devorasse o ambiente.

    Mas não era o vento que me mantinha acordada.

    A mente, essa velha traidora, insistia em repetir os eventos do dia. A chegada do Guardião. A luta. O modo como ele simplesmente… quebrou tudo que eu acreditava estar sob controle.

    Eu sempre fui boa. Precisa. Tecelã de gelo. A mais jovem entre as líderes do norte e, se alguém perguntasse, também a mais preparada. Era o que me orgulhava de ser. Era o que eu precisava ser.

    Mas aquela luta me fez repensar. Tudo.

    A forma como ele se movia, como lutava sem seguir padrões, como parecia ler a mana ao redor. Era como se os anos tivessem transformado Ian não apenas em um mago, mas em uma tempestade consciente. Selvagem e, ao mesmo tempo, deliberada.

    E s meus anos de treinamento não tivessem valor algum para ele.

    Fechei os olhos por um momento. A imagem do impacto na arena ainda dançava atrás das pálpebras. Aquele último golpe, aquele olhar frio. E o cuidado escondido por trás dele.

    — Ian… — sussurrei, sem perceber.

    E então ele caiu.

    Do céu.

    Como um vulto bem treinado. Ou um gato enorme.

    Aterrissou a menos de dois metros de mim, do lado oposto da janela, como se aquela fosse sua entrada oficial. O impacto foi silencioso, como se até o vento tivesse conspirado para não denunciá-lo.

    Fiquei tão surpresa que demorei um segundo para reagir.

    Ian.

    Descalço. Sem camisa. O peito marcado por uma cicatriz que o frio da noite parecia ignorar. Usava apenas uma calça folgada, e aquele pingente de metal escuro pendurado no pescoço. O mesmo que eu tinha visto brilhar discretamente durante o combate na arena.

    Ele também ficou em silêncio. O tipo de silêncio que dizia: ok, talvez tenha sido uma péssima ideia.

    — …Oi. — disse ele.

    A voz não era exatamente como a de quem está envergonhado. Era de quem foi pego de surpresa pela própria impulsividade.

    Cruzei os braços. Uma sobrancelha se ergueu automaticamente.

    — Espero que essa não seja a sua definição de uma “visita discreta”? — perguntei. — Porque se for, preciso repensar minhas runas e meu conceito sobre você.

    Ele sorriu. Aqueles sorrisos curtos e de canto. O tipo que tenta não admitir que sabe que errou.

    — Velhos hábitos. — respondeu, dando um pequeno passo para o lado, ainda na borda. — Bater na porta nunca… foi meu ponto forte.

    Ele estava agachado em cima do parapeito. Tenho que ser justa: que cena… a luz azul da lua combinando com aqueles olhos, a postura dele parecendo tão natural quanto perigosa.

    — Nem se vestir antes de escalar torres, pelo visto. — respondi, recuperando um pouco da compostura.

    Ele olhou para baixo, como quem só então percebe o que estava vestindo.

    — …Ah. É… Pelo menos não estou com uma armadura completa. — rebateu, rindo de si mesmo.

    Eu o encarei.

    — Entrar por janelas no meio da noite é algo comum onde você morava?

    — Só quando a porta fazia barulho demais. — Ele respondeu, ainda casual. — Ou quando queria evitar perguntas.

    — E hoje? — perguntei, suavizando o tom.

    Ele ficou em silêncio por um momento. O sorriso sumiu.

    — Thamir está chegando.

    Meu coração acelerou sem que eu quisesse demonstrar. Já havia notado o trovão, mas agora vinha com contexto.

    — O trovão? — perguntei, com a voz mais baixa.

    — É. E se ele seguir o padrão habitual… vai entrar na cidade como um raio. Literalmente. — Suspirou. — Achei justo avisar antes que o pânico comece.

    — Espera… — demorei um segundo para processar. — Você está me dizendo que aquela tempestade se formando é Thamir?!

    — Exatamente. — ele confirmou, como se estivesse falando de algo banal.

    Mas banal não era. Nem perto disso. Eu conhecia os feitos dos melhores conjuradores do continente homens e mulheres que dedicaram a vida inteira a dominar a mana. Alguns eram capazes de transformar o próprio corpo em energia e se mover como um relâmpago. Mas conjurar uma tempestade inteira? Forjar trovões que anunciavam sua chegada antes mesmo de seus pés tocarem o chão? Isso… era outra escala. Isso era um absurdo.

    — Não fique tão surpresa ainda… — Ian falou como se estivesse lendo meus pensamentos.

    — E resolveu me contar entrando no quarto da Rainha pela janela? — completei, ainda tentando decidir se estava mais irritada com o atrevimento dele ou com a existência de alguém capaz de moldar os céus dessa forma.

    Ele hesitou.

    — …Ok, talvez eu devesse ter pensado um pouco mais antes de escalar. — disse, enfim levantando as mãos em sinal de rendição. — Você me pegou dessa vez.

    Nos encaramos por um segundo. A névoa no horizonte parecia cessar pouco a pouco. O trovão ecoou outra vez, mais próximo.

    — Entra logo antes que os guardas te confundam com um espectro sem camisa. — falei, abrindo espaço para ele passar.

    Ele saltou para dentro, quase sem som, como se tivesse treinado aquela transição a vida inteira. O corpo relaxado, mas os olhos atentos.

    — Da próxima vez use a porta. — falei, já caminhando até o guarda-roupas.

    — Portas fazem barulho. — ele retrucou, baixinho, como se fosse uma lei universal.

    — E entrar sem camisa não? — lancei por cima do ombro.

    Ele riu. De novo aquele som leve, curto, que parecia escapar contra a vontade dele.

    Peguei uma camisa longa de tecido grosso e virei para entregá-la. Ele a recebeu sem cerimônia, vestindo-se ali mesmo, sem preocupação com formalidades.

    — Obrigado. — disse, ajustando as mangas.

    O silêncio se instalou por um instante. O quarto parecia menor com ele ali dentro.

    — Então… o que exatamente devo esperar dessa chegada? — perguntei, voltando ao tom político. — Porque, ao contrário de você, eu preciso pensar em como a cidade vai reagir.

    — Espetáculo. — respondeu, seco. — Relâmpagos, trovões, talvez um terremoto pequeno se ele estiver animado.

    — Está brincando?

    — Queria. Mas é Thamir.

    — Ótimo. — murmurei. — Então amanhã terei que acalmar meio conselho e ainda preparar justificativas diplomáticas para o barulho.

    Ele se encostou na parede, braços cruzados.

    — Não se preocupe tanto. Eu aviso o povo que é só ele chegando.

    — Avisar? — ergui as sobrancelhas. — E quem exatamente você acha que vai ouvir? Você não é um dos nossos oficiais. É um Guardião que acabou de tremer metade da cidade, metade da população tem medo de você.

    — E ainda assim você abriu a janela para mim. — respondeu, tranquilo.

    — Não abri a janela para você — respondi rápido.

    — Mas não me expulsou…

    Mordi o lábio sem deixar escapar resposta imediata.

    Ele estava certo.

    Suspirei fundo.

    — Você me irrita.

    — Costumo causar esse efeito. — disse ele, quase divertido.

    Por um instante, me peguei pensando em como seria fácil odiá-lo. Teria sido mais simples se ele fosse só arrogância, só poder bruto. Mas não era. Ian parecia ter um jeito de expor falhas.

    — Por que você realmente veio até aqui? — perguntei, estreitando os olhos.

    Ele desviou o olhar, encarando a tempestade que se aproximava.

    — Porque… não consegui ficar deitado. E para falar a verdade eu nem havia pensado a respeito e também porque achei que você merecia ouvir antes dos outros.

    A resposta foi tão direta que me pegou desprevenida.

    — Eu? — perguntei, quase sem perceber que minha voz havia ficado mais baixa.

    — Você é a Rainha. — Ele voltou o olhar para mim. — É a única que tem que parecer no controle… mesmo quando não está.

    Meu corpo gelou, Então ele entendia.

    Ele via.

    O trovão rugiu mais perto, quebrando o instante.

    — Vai me deixar explicar isso ao conselho sozinha? — perguntei, tentando recuperar o tom profissional.

    — Não. — respondeu. — Eu vou estar lá. Com você.

    — Isso não necessariamente é algo bom.

    — Nunca disse que seria.

    O silêncio se instalou de novo. Só o vento e a tempestade nos observando.

    Eu finalmente apontei para a porta.

    — Da próxima vez, use isso.

    Ele sorriu de canto, já caminhando em direção à saída.

    — Vou tentar. — disse, sem muita convicção.

    Quando passou por mim, o ar pareceu ficar mais frio. Ou talvez fosse só a lembrança da arena, ainda pulsando na minha memória.

    A porta se abriu e foi fechando em silêncio.

    Fiquei sozinha.

    Mas o quarto não parecia o mesmo.

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