Narrado por Aisha 

    Ela não sabia. 

    Aisha se mantinha em silêncio desde a travessia. Dentro da armadura pesada, forjada com placas opacas e elmo fechado, ela suava. Não pelo calor, mas pelo peso da verdade e da responsabilidade sobre seus ombros. 

    Sabia que havia sido escolhida por ser forte. A mais forte.   

    Mas não sabia que, no coração daquela arena, seria apenas uma peça… uma oferenda. 

    Ela não foi criada para lutar. 

    Aisha cresceu entre os salões de mármore do setor baixo da nobreza de Ignaris. Um lugar onde títulos pesavam mais que conquistas, e onde mulheres eram moldadas para ornamentos, não batalhas. Seu rosto, desde jovem, era conhecido por sua beleza: cabelos escuros como obsidiana, olhos dourados como o amanhecer sobre a fogueira, e uma postura que atraía olhares por onde passava. 

    Aos dezessete anos, chegou a ser cortejada pelo próprio príncipe herdeiro, que lhe ofereceu um lugar entre suas concubinas pessoais. Sua mãe considerou uma honra… insistiu para que ela aceitasse. Mas Aisha jamais se sentiu feita para viver aprisionada em correntes de ouro. 

    Seu pai, um cavaleiro renomado, ensinou a ela e ao irmão mais velho, Lucian, um único lema:   

    “Poder não vem do nome… vem das ações.” 

    Após a morte do pai, o fardo caiu sobre Lucian. Ele foi convocado para a guerra territorial, e lá, gravemente ferido, tornou-se incapaz de combater. Sem recursos para contratar um mago de cura especializado, a casa entrou em decadência. A pressão sobre Aisha cresceu, e o convite do príncipe voltou como alternativa inevitável. 

    Foi então que algo inesperado aconteceu. 

    Durante um confronto na fronteira, a armadura da família apareceu em batalha contra os invasores. Aqueles que presenciaram a cena acreditaram que Lucian havia se recuperado e retornado às linhas de frente.   

    Mas a verdade era bem diferente. 

    Aisha havia assumido o manto. 

    Por três anos, lutou sob o nome do irmão. 

    Escondida sob uma armadura ancestral, pesada, feita para um corpo masculino. Ela lutava com um propósito maior: ocultar quem era e provar que sangue não dita destino. Nos patrulhamentos e duelos simulados, seus feitos foram celebrados como os de um herdeiro renascido.   

    Chamavam-na de prodígio da lâmina, o guerreiro silencioso. E ninguém imaginava que por trás da couraça fria, havia uma mulher que lutava por dignidade. 

    Aisha refinou sua técnica com espadas velhas, treinando sozinha, em silêncio. Vencia com tanta frequência que começou a atrair inimigos perigosos. Soldados zombavam do guerreiro mascarado por sua baixa estatura, vendo-o como um alvo fácil. 

    Ela os derrotava. Um a um.   

    E continuava ignorada, protegida pelo anonimato da armadura que escondia não apenas o corpo, mas uma verdade inconveniente demais para Ignaris aceitar. 

    Mesmo sendo a mais habilidosa entre os jovens guerreiros, era sempre designada aos piores papéis nas estratégias. Sobreviveu por um triz, muitas vezes. Mas após uma emboscada dos soldados leais ao príncipe herdeiro ela entendeu que todas a situações perigosas pelo qual ela havia sido selecionada, eram na verdade uma tentativa silenciosa de eliminar Lucian, mas eles não poderiam saber que quem ocupava o campo de batalha era ela. 

    Mas ela resistiu.   

    Firme. Calada. Determinada. 

    Ao fim de três anos de combate, Aisha conseguiu reconhecimento suficiente para contratar um mago e curar seu irmão. Mas isso trouxe outra consequência na qual ela não estava preparada para lidar. 

    Naquele mesmo ano, a barreira mágica ao sudoeste do reino começou a enfraquecer. Pela primeira vez em mais de um século, haveria uma oportunidade de cruzá-la e conter a maré crescente de monstros. Os mais fortes do reino foram convocados. Lucian estava entre eles. 

    Quando surgiu a proposta do Desafio do Guardião, Aisha acreditou que aquele seria seu recomeço. Uma chance real de honrar seu legado, mesmo escondida sob a armadura. 

    O elmo cobria até seus olhos. 

    Mas ela não sabia… que havia sido enviada como sacrifício encoberto. 

    O comandante da expedição, um homem astuto demais para a própria honra… conhecia seu segredo.   

    Sabia que ninguém sobreviveria ao terceiro desafio.   

    E, ao invés de impedir… ele a ofereceu. 

    Aisha foi enviada como uma oferenda. Um sacrifício disfarçado.   

    A única da comitiva que não havia sido informada da verdade. 

    Na cultura de Ignaris, mulheres não podiam lutar em campos reais, apenas em duelos simulados.   

    Mas ali estava ela.   

    Dentro da armadura do irmão. 

    O comandante a escolheu por dois motivos: 

    1. Ela era a melhor espadachim do reino. Isso ameaçava a aristocracia, que não tolerava mulheres em combate. A arena seria o palco perfeito para “honrar” sua força — e apagá-la sem escândalos.   

    2. Ele havia recebido ordens diretas do príncipe herdeiro: apagar Lucian discretamente. Sabia que quem vestia aquela armadura não era Lucian…, mas para ele pouco importava. Após o desafio do Guardião… quem saberia? 

    Aisha caminhava atrás do grupo, neve rangendo sob suas botas. O frio aumentava.   

    O Guardião a observava do centro da arena. 

    Olhos fixos nela.   

    Não como os outros olhavam…, mas como quem vê além da couraça. 

    Então veio a pergunta. 

    O Guardião se dirigiu ao comandante: 

    — Sabem as regras? 

    O mago hesitou, mas o comandante respondeu de forma indiferente: 

    — Sabemos. Terceiro desafio. 

    — E trouxeram um guerreiro para ser congelado, então? 

    A resposta foi clara.   

    Confirmada com orgulho. 

    Aisha estacou por um breve instante. 

    Por trás do elmo fechado, os olhos dela se estreitaram.   

    “Terceiro desafio? Aquele… até a morte?” 

    Sua respiração cessou por um segundo.   

    Ninguém havia lhe falado disso.   

    Mas ela não perguntou.   

    Não naquele momento.   

    O silêncio era tudo que lhe restava. 

    Ela não estava ali para morrer.   

    Estava ali para lutar.   

    Para mudar sua história.   

    Para finalmente ser vista. 

    Do outro lado da arena, as palavras do Guardião cortavam como gelo. 
    O desafio começaria. E Dravis precisaria provar que Forndal não havia enviado apenas bravatas. 

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