A névoa parecia mais densa do que eu lembrava.
    Talvez fosse o inverno. Talvez fosse impressão minha. Ou talvez fosse só o jeito de Altheria dizer: “bem-vindo, forasteiro, não faça besteira”.

    Entrei pelos portões com a carroça rangendo atrás de mim. Madeira velha, sacos de trigo empilhados em cima, e no fundo falso, bem escondida, minha lança desmontada. Uma boa viagem sempre pede segredos, afinal.

    As guardas me pararam, lanças firmes no caminho. Uma delas, jovem, ainda com aquele brilho de disciplina recém-aprendida, ergueu o queixo:

    — Vindo de onde?

    — Leste de Cervalhion. — puxei o sotaque do leste, carregando as vogais mais do que devia. — O clima lá é mais amigável… pelo menos até as bestas resolverem fazer visita.

    A mais velha das duas me mediu como quem mede um peixe suspeito. A mais nova, menos treinada, relaxou só um pouco.

    — Primeira vez em Altheria?

    — Como comerciante sim, vim aqui uma vez muito tempo atrás quando garoto com meu pai, ele também era mercador. E aqui? — perguntei, soltando um sorriso leve, como se fosse só um mercador cansado. — O que tem de novo? Ou a cidade vive nesse silêncio gelado o ano inteiro?

    A mais nova riu. Rápida demais. Nervosa demais.

    — Silêncio? Desde que um certo visitante apareceu, as coisas têm sido… agitadas.

    — Visitante? — repeti, franzindo a testa, como se não soubesse de nada.

    — Um homem. Alto, cara fechada. — ela abaixou o tom. — Chegou e já destruiu parte do teto da arena.

    Fiz uma careta convincente, indignado. — E ninguém prendeu?

    A mais velha suspirou, ajustando a mão na lança. — A Rainha parece proteger ele. Dizem que pode ser o Guardião do Norte… mas a cidade não sabe se acredita ou se teme.

    Soltei uma risada curta, zombeteira. — O Guardião do Norte? Sempre tem alguém querendo vender lenda como verdade.

    Ela não riu. Só me encarou firme, depois fez sinal para liberar a passagem.

    — Então tome cuidado. Metade da cidade acha que ele é esperança. A outra metade… que ele é maldição.

    Passei pelos portões e agradeci com um aceno. O som das rodas na pedra molhada me ajudou a pensar.

    A cidade estava viva. Bancas de frutas, cheiro de pão fresco no ar, mercadores gritando ofertas. Mas por trás dessa normalidade… havia algo. Olhares rápidos demais, cochichos que morriam sempre que um grupo de guardas cruzava a rua. Era como se todos vivessem num fio esticado, esperando o estalo.

    Parei em frente a uma venda de peixe defumado. Não pelo peixe que tinha cheiro de meia velha esquecida no sol, mas porque o vendedor tinha olhos de quem sabia mais do que devia.

    — Ouvi falar de um tal… Guardião que chegou. — deixei a frase sair como quem não quer nada.

    O homem não levantou os olhos do peixe.

    — Ouviu certo. — respondeu, seco. — E desde então, noites sem dormir. Raios no céu, chão tremendo… tsk. — estalou a língua, parecia realmente incomodado.

    — Raios no céu? — arqueei uma sobrancelha. — Parece mais lenda de taverna do que notícia.

    Ele me encarou pela primeira vez, olhos estreitos. — Então vai até o sul da cidade e olha o teto da arena. Ainda tem um buraco lá. — soltou um resmungo, voltando para o peixe. — Esse tal Guardião trouxe azar junto com ele.

    — E onde encontro ele? — perguntei, tentando soar casual.

    O homem riu, mas foi um riso sem humor. — Quer encontrar um Guardião? — ele me olhou como se eu fosse louco. — Se tiver sorte, talvez ache no templo inferior. Se tiver azar… ele que vai te achar.

    — mas por que tanto medo? Ele não deveria proteger vocês?

    O vendedor largou o peixe com força, a faca raspando na tábua.

    — Porque, forasteiro, dizem que ele não controla nem a si mesmo. Pode te matar sem querer. E eu, pessoalmente, prefiro distância.

    Dei de ombros. — Bom conselho. Vou considerar.

    Segui em frente, puxando conversa com quem podia. Uma doceira na esquina, um ferreiro limpando a forja, até uma criança que descreveu “um homem com olhos frios e casaco de gelo”. Costurei versões diferentes da mesma história.

    No fim, tudo levava a dois pontos:
    Ian estava na cidade, protegido por Lysvallis…
    E a arena ainda tinha um buraco no teto para provar isso.

    Segui em frente, e percebi que a cidade inteira estava dividida.

    Quando o sol começou a se esconder, decidi procurar um teto. A carroça aguentava a noite, mas eu não.

    Entrei numa hospedaria com entrada de madeira mas todo o interior feito na pedra, o calor das lareiras brigando contra o frio que entrava pela porta. O dono, um sujeito gordo com barba grisalha, limpava o balcão com cara de poucos amigos.

    — Quarto? — perguntou.

    — Um. — joguei duas moedas. — E, se tiver, uma bebida quente por favor.

    Ele pegou o dinheiro, ainda desconfiado. — De onde?

    — Leste de Cervalhion. — mesma resposta, mesmo sorriso. — E não, não trouxe as pragas comigo.

    Ele bufou, empurrou a chave. — Segundo andar. Porta de ferro.

    Antes de subir, notei alguns homens discutindo em uma mesa. Sentei perto, com uma xicara de chá, e ouvi.

    — …não pode ser Guardião. — dizia um deles. — Guardiões não andam por aí quebrando cidades.

    — Quebrando? — o outro riu. — Ele sobreviveu à luta contra a Rainha. Se isso não é Guardião, então o que é?

    Entrei no meio com meu jeito mais casual: — Perdão, senhores, mas… sobreviver contra a Rainha não é o mesmo que vencer.

    Os dois me olharam. O mais velho falou:

    — Talvez. Mas já é mais do que qualquer um de nós conseguiria.

    O outro completou, com brilho nos olhos: — Eu digo que precisamos dele. Se as bestas atravessarem a barreira, quem mais vai nos segurar?

    Dei um gole no chá, fingindo refletir. — Ou seja, estamos apostando nossas vidas em alguém que ninguém conhece de verdade.

    — E quem seria você mesmo? — O mais velho falou claramente estranhando minha intromissão.

    — Ah, falha minha meu amigo. Acho que foi o cansaço da viagem, — falei puxando uma cadeira para a mesa deles — pode me chamar de Kael.

    Os dois ficaram em silêncio. Não precisavam responder. Ficamos conversando por mais algumas horas, o que me deu um panorama geral do estado da cidade, mas ainda era muito cedo para tirar uma conclusão.

    Amanhã, pensei. Amanhã eu troco perguntas por respostas.

    Quando o sol começou a se esconder atrás das montanhas, decidi que amanhã ia trocar perguntas por mercadorias.
    No mercado, todo mundo fala. Nem que seja pelo preço de uma especiaria rara.

    E eu, sinceramente? Estava pronto para ouvir tudo.

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