Capítulo 40 - "Um Educador Canino"
Narrado por Aisha
O ar na arena já parecia pesado desde que Naira lançou aquelas palavras cruéis. Era como se cada sílaba dela tivesse atravessado o espaço e se cravado em Ian como lâminas invisíveis. O som das correntes que seguravam as bandeiras, chacoalhando ao vento, ecoava alto demais, como se o mundo inteiro tivesse prendido a respiração.
Mas quando Ian ergueu os olhos, algo de fato mudou.
Não foi apenas um olhar. Foi como se a própria atmosfera tivesse reconhecido a ameaça escondida naquele gesto. A mana ao redor se contorceu, densa, viva, como um animal acuado sendo ameaçado. Eu senti o peso dela pressionando contra minha pele, sufocando o ar antes mesmo de conseguir respirar fundo.
O chão vibrou sob meus pés. Primeiro um tremor sutil, como o aviso de uma tempestade distante. Depois, um solavanco, seco e repentino, que fez pequenas pedras se soltarem das arquibancadas rachadas.
O corpo de Ian começou a se contorcer.
Não era como na forma Varel, aquela que eu já havia presenciado e que, apesar de assustadora, carregava uma espécie de ordem. Lá, sua postura se tornava ereta, cristalina, quase elegante, como uma estátua de gelo animada por um deus. Havia beleza naquela força.
Mas agora… isso era diferente. Brutal. Selvagem.
As veias de mana pareciam correr sob sua pele como rios incandescentes, iluminando-o de dentro para fora com um brilho distorcido entre branco e algo sombrio. A cada pulsar, sua musculatura se expandia, os ossos se alongavam, e a pele parecia incapaz de conter tanta energia. O som que escapava de sua garganta não era humano nem animal, era algo no meio, um rugido partido entre dor e poder.
Um primeiro pulso atravessou a arena como um impacto invisível. Eu não o vi, mas o senti. O ar foi arrancado dos meus pulmões, deixando-me ofegante, a mão apertada contra o peito numa tentativa instintiva de me manter firme. Os guardas só conseguiram reagir com gemidos sufocados, e alguns chegaram a se ajoelhar, como se estivessem diante de uma presença divina ou demoníaca.
E então Ian não era mais Ian.
Diante de nós, erguia-se uma criatura de quase três metros de altura. Sua pelagem, branca como a neve, se agitava em redemoinhos provocados pela força da mana que escapava do seu corpo. Cristais de gelo se formavam espontaneamente ao seu redor, como se a realidade estivesse sendo moldada à força para protegê-lo. Placas translúcidas surgiam em seus ombros e braços, encaixando-se como uma armadura viva, pulsante, respirando junto com ele. Junto com os estrondos da magia reverberando nas paredes da arena e trincando a rocha, podia ser ouvindo um rosnado bestial parecido um o som de um trovão distante.
Atrás de si, três caudas se erguiam. Cada uma delas vibrava com tamanha intensidade que o ar estalava, deixando rastros congelados por onde passavam. Eu podia jurar que cada cauda carregava energia suficiente para despedaçar não apenas a arena, mas a própria barreira que nos separava do Limbo.
Eu fiquei paralisada.
Não sabia se deveria olhar para ele ou para a devastação que se espalhava em volta. O chão estava se partindo em rachaduras profundas, estilhaços de pedra flutuando por instantes antes de caírem outra vez, como se a gravidade tivesse perdido o rumo.
Um segundo pulso veio logo depois, e este não foi apenas uma onda. Foi um cataclismo. O impacto levantou poeira em uma parede cinzenta que engoliu a visão. Parte da arquibancada cedeu, derrubando guardas, a força me lançou para trás com brutalidade. Rolei pelo chão, os ouvidos zunindo, e levei alguns segundos para perceber que ainda estava viva.
As colunas da arena tremeram. Eu podia jurar que ouvi as colunas rachando, como se o próprio local fosse incapaz de suportar o que se erguia dentro dele.
Meus olhos ardiam por causa da poeira, mas não consegui desviar o olhar.
— Ian! — A voz de Naira atravessou o caos. Firme, autoritária, mas carregada de um peso que não combinava com sua postura de guerreira. Havia preocupação ali. Havia medo. — Você precisa manter o controle!
As palavras dela ecoaram pela arena, mas não sei se chegaram até ele.
Kael, até então imóvel como uma estátua, moveu-se. Não foi um passo, apenas um leve inclinar da cabeça. Mas em seu rosto, sempre tão controlado, vi algo que nunca havia visto antes: gravidade. Um reconhecimento silencioso do perigo.
— Não… — ele murmurou, e sua voz pareceu pesar toneladas. — Ele perdeu.
As pupilas da criatura, se é que ainda podia chamá-la de Ian. Brilharam em um tom sombrio, quase púrpura, como um eclipse refletido em gelo. Sua respiração era um trovão irregular, cada expiração deixando no ar cristais que caíam como cinzas congeladas. Ele se inclinou para frente, assumindo uma posição de combate.
A cauda mais longa chicoteou o ar. O som que saiu foi como o de um trovão abafado, um estalo seco que fez o chão vibrar.
E então ele desapareceu.
Um borrão branco e prateado atravessou a poeira. Eu não consegui acompanhar. O ar se rompeu atrás dele com um estrondo, e a nuvem de poeira foi lançada para cima como um manto rasgado. Meus olhos mal podiam seguir os movimentos. Era rápido demais, violento demais.
Meu coração disparou, preso entre o medo e a fascinação. O tempo parecia lento demais para compreender, mas rápido demais para reagir. Eu só conseguia ouvir os ecos, como trovões partidos ao meio, estilhaçando o silêncio.
Quando a poeira começou a baixar com cada partícula iluminada pela luz fria que emanava do corpo dele, meu olhar se fixou no centro da arena.
Ian estava caído.
Ainda naquela forma bestial, o corpo gigantesco estava imóvel, a pelagem branca manchada de poeira e sangue. Sua cabeça estava afundada contra o solo, rachando a pedra sob o peso. As caudas tremiam de forma espasmódica, como se ainda tentassem resistir, mas logo perderam a força.
E sobre ele, sentado de maneira quase preguiçosa, como quem repousa após uma caminhada tranquila, estava Thamir.
O peso do corpo dele sozinho parecia suficiente para manter Ian inteiro preso ao chão. Não havia esforço visível, nenhum traço de tensão em seus músculos. Thamir apenas permanecia ali, sereno, como se dominasse não apenas Ian, mas toda a arena.
O contraste era absurdo. De um lado, Ian, a criatura de poder devastador, capaz de abalar o mundo em instantes. Do outro, Thamir calmo, imóvel, quase entediado.
O silêncio era absoluto. O choque era coletivo, pesado.
Minha respiração falhou.
Eu sabia que Ian era poderoso. Tinha visto a disciplina fria de sua forma Varel, a precisão quase matemática com que controlava a mana. Mas aquilo… aquilo era diferente. Ver sua força se transformar em selvageria, em algo violento, caótico, fora de qualquer controle e ainda assim ser dominado tão facilmente…
Despertou algo estranho em mim.
Medo, sim. Um medo visceral, que me enraizava ao chão. Mas também algo mais: uma pergunta que se repetia, insistente, como um sussurro que não queria calar.
Se até Ian, que carregava em si o sangue dos Varel e a marca dos Kenzaru, podia perder o controle dessa forma…
O que me aguardava no caminho que eu mesma estava trilhando ao lado dele?

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