Capítulo 48 - Trauma
Narrado por Aisha
O primeiro dia da viagem tinha finalizado antes mesmo do sol se esconder por completo. A estrada principal se estendia à frente como uma cicatriz de pedra e terra, serpenteando em uma descida entre as montanhas. A caravana seguiu em silêncio, apenas o ranger das rodas e o bater ritmado dos cascos enchendo o ar frio do dia.
Paramos em um descampado aberto na noite anterior, seguro o bastante para treinar. Durante a manhã antes da partida Ian se afastou com Kael, enquanto Lys observava à distância, firme como uma estátua, e eu fiquei com Thamir.
Logo entendi o que Ian quis dizer quando comentou que “treinar com ele era o caminho mais fácil”. Thamir não tinha paciência nenhuma.
— Mais alto o braço. — Ele estalou os dedos, apontando para minha postura. — Isso, mas não muito, senão vai travar o ombro. Relaxa… relaxa! Parece que tá tentando levantar um balde de pedra.
Bufei. — Você podia ser menos insuportável?
Ele abriu um sorriso torto. — Não estaria sendo eu se fosse.
Ainda assim, ajustei a postura como ele mandou. Girei o punho, ergui a lâmina e desci com mais firmeza. O golpe saiu mais limpo, com menos hesitação. Vi a sobrancelha dele arquear, quase imperceptível.
— Sério… você aprende rápido. — murmurou, como se isso fosse algo que ele não queria admitir em voz alta. — Isso é bom. Significa que ainda não te quebrei.
— Ainda? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.
— O dia é longo. — Ele deu de ombros, mas o canto da boca denunciava um sorriso.
Treinamos assim por um tempo. Cada golpe que eu errava, ele corrigia com palavras afiadas. Cada acerto, ele respondia com outro ataque, me forçando a repetir até doer. Quando percebi, já estava suada, com os braços pesados como chumbo.
E ainda assim, não consegui segurar a curiosidade. A lembrança da conversa com Ian queimava na minha mente.
— Thamir… — chamei, hesitante. — Ian me contou… sobre minha linhagem.
Ele parou de andar em círculos e me encarou de frente. O vento balançou o seu casaco, mas os olhos estavam firmes em mim.
— É? E o que acha disso?
— Eu quero despertar. — falei sem pensar. — Sei que é Or’Karrun… e talvez Pyrr’Khal também. Se eu tivesse isso, poderia acompanhar vocês. Ser útil de verdade.
O sorriso dele sumiu.
— Útil, hein? — Ele coçou o queixo, pensativo. — Engraçado… já ouvi isso antes.
— Então… você vai me ajudar?
Ele riu, curto e seco. — Não.
— O quê? — O choque saiu mais alto do que eu queria. — Mas por quê?
— Porque não é o momento. — O tom dele endureceu. — Você até que tem uma noção básica de como segurar uma espada. só que aprender sem um tutor te deixou cheia de vícios ruins. Acha que colocar fogo nos olhos vai te fazer melhor?
As palavras me cortaram fundo, mas algo no olhar dele me impediu de retrucar.
Ele suspirou, pesado. — Ouve… Ian não contou tudo, não é?
— O quê?
Thamir ficou em silêncio por um instante, medindo minhas reações. Então começou a andar de um lado para o outro, falando baixo, como se pesasse cada palavra.
— Os piores inimigos que enfrentamos… não eram os que tinham linhagens. Eram os sem nada. — Ele fez uma pausa e olhou para mim. — Gente que não dependia de brilho nos olhos, nem de músculos emprestados por ancestrais. Só tinham disciplina, ódio e vontade de sobreviver. Eles não quebravam quando sangravam. E isso… é muito pior de enfrentar. Gente que não cai mesmo quando já deveria ter morrido.
Senti um arrepio na espinha. Mas antes que eu pudesse perguntar mais, ele parou e me encarou de novo.
— Ian sabe disso. Ele não desperta linhagens à toa. Porque conhece o preço.
— O preço? — perguntei, hesitante.
— Jyn. — Ele disse o nome como se fosse veneno. — Ele só conseguiu a linhagem Kenzaru porque perdeu ela.
Meu coração disparou. — Quem era… Jyn?
Thamir olhou para o horizonte por um instante, como se buscasse forças. Quando voltou a me encarar, a sombra no olhar dele me deixou gelada.
— Tudo o que você tem que saber é que ela era próxima o bastante, para Ian querer destruir o mundo quando ela se foi.
Senti a garganta secar. — O que aconteceu?
Ele fechou os olhos por um instante, como se revivesse a cena. Quando falou, cada palavra caiu com peso.
— Seiryu sabia o que estava fazendo. Quebrou Ian por dentro. Empurrou ele até o limite da exaustão. E quando Ian estava no chão, sem forças… trouxe Jyn.
Minha respiração falhou.
— Ele a matou na frente de Ian. — Thamir disse, firme. seus olhos se perdendo vagamente. — Não foi rápido… nem limpo. Ele esmagou a cabeça dela. E fez Ian assistir. Sem poder desviar. Sem poder fazer nada para salvar.
Senti meu estômago revirar. A cena se formou sozinha na minha mente, como se eu estivesse lá. Um dragão imenso, cruel, prendendo Ian ao chão. E Jyn… uma jovem com rosto que eu nem conhecia, mas que de repente parecia tão real. O som imaginário de ossos partindo ecoou nos meus ouvidos.
Travei. A espada quase escorregou das minhas mãos.
Thamir abaixou os olhos, a voz mais baixa.
— Foi ali que Ian quebrou. E foi ali que a linhagem Kenzaru despertou. Não por treino. Não por escolha. Mas porque a dor foi tão grande que a mana respondeu.
Não consegui falar. A imagem queimava por dentro, grotesca, insuportável. Parte de mim queria negar, outra queria gritar. Mas o olhar dele não deixava espaço para dúvidas.
Ele respirou fundo. — É por isso que Ian não quer que você desperte. Porque para isso acontecer… precisa passar por algo que pode acabar te destruindo por dentro.
As lágrimas ardiam atrás dos meus olhos, mas eu não deixei que caíssem. Respirei fundo, firmei as mãos na espada.
— Então… é por isso que ele não fala sobre ela.
Thamir assentiu lentamente. — É por isso que ele não fala sobre muita coisa.
O silêncio foi sufocante. Tudo em mim ainda queria a linhagem, ainda queria força. Mas pela primeira vez, compreendi o abismo que Ian carregava.
— Agora entende por que eu disse não? — Thamir voltou ao tom sarcástico, mas os olhos continuavam sombrios. — Você não precisa desse tipo de poder para ser útil. Precisa aprender a sobreviver primeiro.
Engoli em seco e ajeitei a postura. A espada parecia mais pesada, mas ao mesmo tempo… mais real.
— Então me ensina a sobreviver. — falei, firme.
Ele abriu um sorriso torto, satisfeito. — Agora sim.
Sem aviso, ele me atacou.
O impacto do golpe quase me derrubou, mas consegui segurar a guarda. O choque percorreu meus braços, e mesmo assim mantive os pés fincados no chão.
Por um instante, vi orgulho nos olhos dele. Não porque eu era forte. Mas porque eu não tinha caído.
E entendi. Não era sobre brilho nos olhos. Não era sobre dons herdados.
Era sobre cair e levantar. Sempre.
E eu não cederia. Nunca mais.

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