Capítulo 49 - Obrigações
O balanço da estrada fazia ranger a madeira da carruagem. Dentro, o espaço destinado a quatro pessoas estava apertado demais devido ao vestido de seda que Dália insistira em usar, mas ela se ajeitou como pôde, mantendo a postura ereta. À sua frente, Selindra a guerreira mais forte da casa, cicatrizes à mostra e olhos que nunca descansavam. Ao lado, Cyrion, o escrivão, ocupado em revisar pergaminhos que balançavam junto com as rodas.
— Cervalhion… — Dália suspirou, olhando pela janela estreita. — Finalmente vamos ver a capital.
— Ver, sim — respondeu Selindra, sem tirar os olhos da lâmina que afiava no colo. — Mas precisamos mesmo é estar preparada para ela.
Cyrion pigarreou, ajeitando os óculos. — Preparada ou não, precisamos estar atentos. O Círculo espera que fechemos acordos vantajosos. As terras agrícolas do leste estão em disputa, e…
— E não é por isso que estou animada. — Dália interrompeu, um sorriso discreto nos lábios. — Vamos viajar sob a proteção dos Guardiões. Três deles, não é?
Selindra ergueu os olhos da lâmina.
— Quatro, se contar a rainha com sua própria força.
— Exato! — Dália se inclinou para frente, quase vibrando. — Quando teremos outra oportunidade dessas? Cresci ouvindo histórias do Guardião do Norte. Ian, Naira, Thamir… É como se estivéssemos marchando com lendas vivas.
O silêncio de Selindra pesou no ar até que ela guardou a pedra de amolar.
— Justamente por isso, não se iluda. — A voz era firme. — Eles não são muralhas inquebráveis, menina. Se a barreira caiu tantas vezes, é porque até mesmo Guardiões sangram.
Dália piscou, a empolgação vacilando.
Selindra aproveitou a brecha:
— Continue treinando. Sua linhagem não vai te salvar se baixar a guarda. — Os olhos da guerreira se estreitaram. — Nem mesmo a de Varel.
A herdeira engoliu em seco, lembrando do gelo que conseguira conjurar poucas semanas antes. Ainda era instável.
— Eu treino. — murmurou, quase defensiva.
— Treine mais. — Selindra recostou-se, fechando os olhos como quem encerrava o assunto. — Linhagens são belas para inspirar bardos. Mas em batalha, sobreviver é outra história.
Cyrion ajeitou os papéis e tentou sorrir, quebrando a tensão:
— Bem, ao menos temos Guardiões… e contratos para negociar. Se conseguirmos ambos, voltaremos com honra e lucro.
Dália não respondeu. O brilho de admiração pelos Guardiões permanecia em seus olhos, mas agora misturado com uma semente de dúvida.
A segunda carruagem seguia alguns metros atrás. O interior era menos luxuoso, mas organizado. Mia Kaelys mantinha-se com as mãos sobre o colo, os dedos entrelaçados, observando cada sacolejo da estrada como se meditasse.
À sua frente, Irren, chefe de exploração da família, mulher de braços fortes e pele curtida pelo sol, afiava um machado pequeno. Velkar, a tesoureira, rabiscava cálculos em uma tábua encerada, sem levantar os olhos.
— Irren… — Mia quebrou o silêncio, a voz baixa. — Por que minha mãe insiste tanto em encontrar usuários de Ordo?
Velkar ergueu o olhar pela primeira vez, mas não respondeu. Foi Irren quem soltou um riso curto.
— Porque ela não é tola. — respondeu, encostando o machado no ombro. — Ordo é o que mais assusta magos.
Mia inclinou a cabeça. — Assusta… até os Guardiões?
Velkar fechou os olhos por um instante, como se calculasse a resposta. Irren, porém, não hesitou:
— Sobretudo eles.
O silêncio voltou. O ranger da carruagem pareceu mais alto.
— Eu vi uma vez. — Irren continuou, a voz agora sem o menor traço de humor. — Um homem, usuário de Ordo em Campo. Apenas realizou um encantamento e após isso ele só precisou erguer a espada. ele pintou o solo de vermelho. E magos que achavam controlar o fogo e a tempestade… pararam. A magia morreu antes de chegar às mãos deles.
Mia arregalou os olhos, sentindo o ar pesar.
Velkar suspirou, voltando a rabiscar números. — É o poder de apagar. E esse, Mia, é o mais silencioso de todos.
A herdeira recostou-se, o coração acelerado. Não havia histórias ou muitos contos sobre isso. Nenhum trovador cantava feitos de quem apagava milagres. Mas, naquele instante, ela entendeu por que sua mãe priorizava tanto encontrar usuários de Ordo.
Não era uma busca por aliados. Era uma busca por armas.
O interior da carruagem da Casa Seryn era mais amplo que o das demais. Cortinas azul-escuro filtravam a luz do sol, e os bancos estofados com couro fino acomodavam três mulheres em meio ao balanço constante da estrada. Elenys mantinha a postura ereta, as mãos entrelaçadas sobre o colo, o semblante sereno ainda que os olhos não parassem de observar cada detalhe ao redor. Ao lado dela, Serena folheava uma pequena prancheta de anotações, aparentemente desinteressada na conversa, mas atenta. Diante delas, Isla, a sobrinha, observava a própria imagem refletida de leve no vidro da janela, perdida em pensamentos.
Elenys percebeu. Isla não era boa em esconder o que sentia.
— Está calada demais hoje. — disse a matriarca, quebrando o silêncio. — Estranho, já que você sempre encontra assunto para encher a carruagem.
Isla se virou, um sorriso forçado no rosto. — Apenas cansada, tia. Nada além disso.
Serena arqueou uma sobrancelha, sem erguer muito o olhar. — Cansada ou aborrecida? Tem uma diferença.
— Não é nada. — Isla respondeu rápido demais.
Elenys inclinou-se levemente para frente, avaliando cada gesto da sobrinha. Ela conhecia aquele olhar evasivo, aquela pressa em encerrar o assunto. Era o mesmo que a irmã dela a mãe de Isla exibia quando estava planejando algo.
— Isla. — chamou com firmeza. — O que está acontecendo?
A jovem desviou os olhos, mordendo o lábio.
— Só acho… que já está mais do que na hora de eu decidir meu próprio caminho.
Serena fechou a prancheta com um estalo seco.
— Caminho ou armadilha? Porque, pelo tom, parece mais o segundo.
Isla a olhou, irritada. — Não sou uma criança. Minhas amigas já têm casamentos arranjados, alianças firmadas, famílias inteiras que as respeitam. E eu? Sigo aqui, como um fardo protegido.
Elenys respirou fundo, contendo a irritação.
— Você não é um fardo. É minha responsabilidade.
— É exatamente isso que me prende. — Isla rebateu, a voz embargada pela mistura de medo e frustração. — Tia… eu posso conquistar algo para a nossa casa. Se o Guardião realmente é como dizem… se ele é o Espectro das Areias, por que não tentar atraí-lo?
O nome não foi dito em vão. Serena arregalou os olhos e se inclinou para frente, a expressão de puro desprezo.
— Espectro das Areias? — Ela quase cuspiu as palavras. — Então é isso que Veynar anda sussurrando no seu ouvido? Que você deveria deitar com um Guardião para “fortalecer” a casa?
Isla empalideceu, mas manteve-se firme. — Ele é poderoso. Um aliado como ele mudaria tudo.
— E te destruiria no processo. — Serena respondeu seca. — Você não faz ideia do que está dizendo criança.
Elenys ergueu a mão, interrompendo o embate. — Isla, olhe para mim. — Sua voz agora era mais baixa, mas carregada de firmeza. — Eu sei muito bem o que significa ser usada como moeda de troca. Sei o que isso faz com você. Sei o que fez com a minha irmã. — A última frase saiu quase num sussurro. — E não vou permitir que você passe pelo mesmo.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Isla apertou o vestido entre os dedos, o rosto quente de vergonha e teimosia. Serena, ainda rígida, voltou a se recostar, mas não deixou de lançar um olhar duro para a sobrinha.
Do lado de fora, a carruagem começou a reduzir o ritmo. Vozes ecoaram, ordens sendo dadas, e logo o veículo parou por completo.
O cocheiro abriu a portinhola e anunciou: — Senhoras, fim do segundo dia de viagem. Acamparemos aqui.
Elenys ergueu-se, ajustando o manto. Serena guardou a prancheta. Isla saiu por último, ainda com o rosto marcado por emoções conflitantes.
Mas quando Elenys desceu da carruagem e ergueu os olhos para ver quem os auxiliaria na organização do acampamento naquela noite, o coração dela deu um salto involuntário.
Lá estava ele.
Thamir, de braços cruzados, conversando com alguns soldados, o mesmo sorriso irônico estampado no rosto. Quando notou a presença dela, descruzou os braços e inclinou a cabeça em cumprimento, os olhos prendendo-se aos dela por mais tempo do que seria adequado.
— Vejo que até a estrada parece mais iluminada com a presença da Casa Seryn. — disse ele, com naturalidade descarada.
Foi rápido, sem rodeios, como tudo nele.
Elenys sentiu o sangue correr mais rápido, mas manteve o rosto firme, apenas assentindo com elegância. Serena, ao seu lado, percebeu o detalhe e estreitou os olhos. Isla, por sua vez, não captou nada ocupada demais em seus próprios pensamentos.
Mas para Elenys, a noite prometia ser mais difícil do que esperava.
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