Capítulo 52 - "Confissões a Fogueira"
A fogueira estalava, espalhando o calor contra o frio da noite. As chamas projetavam sombras dançantes nos rostos ao redor, cada uma distorcendo sorrisos e olhares como se fosse parte do jogo.
O silêncio que seguiu a pergunta de Aisha ainda pairava no ar, pesado e intrigante, até que Thamir respirou fundo, abriu um sorriso enviesado e quebrou a tensão como só ele sabia.
— Tudo bem. Já que a senhorita quer saber quem é o mais forte, vamos fazer diferente. Vou falar de cada um aqui. E aviso logo: não esperem nada bonito. — Ele passou os olhos pelos outros, o tom carregado de ironia. — Vou começar pela dama do grupo, para não parecer mal-educado.
Naira arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços. — Estou curiosa para ver como se sair.
— Fácil. — Thamir estendeu a mão em direção a ela como se fosse apresentá-la numa feira. — Naira, a encantadora de rochas. com seus incríveis 1,70 de pura paciência. É atualmente a que eu mais tenho medo de enfrentar.
Ian soltou um som baixo, quase um riso abafado. Kael arqueou as sobrancelhas, surpreso.
— Você? — Ian questionou, com a voz firme mas carregada de incredulidade. — Você sempre disse que não tinha medo de ninguém.
Thamir levantou o indicador de forma teatral. olhando para Lys e Alexia — Exato. E é por isso que quando digo que dela eu tenho medo, é porque é sério.
Naira sorriu de canto, mas não respondeu.
— Vamos lá. — Thamir se ajeitou na pedra. — Vocês lembram da invasão, certo?
— Invasão? — Alexia perguntou.
— A não.. esquece, vocês nem eram nascidos, mas enfim. Rolou uma invasão muitos anos atrás e naquela bagunça eles acharam que seria uma boa ideia trazer uma fortaleza com rodas,
Kael soltou uma risada curta. — Ah, sim. O tan… castelo ambulante.
Aisha inclinou-se, surpresa. — Como assim, um castelo… com rodas?
Thamir abriu os braços, descrevendo. — Exatamente isso. Uma monstruosidade de pedra e ferro que se arrastava pela planície, cuspindo fogo e homens armados. Parecia invencível. Eu estava pronto para gastar metade da minha mana só para atrasar o negócio, quando… — ele estalou os dedos — Naira simplesmente decide abrir um abismo embaixo dele.
Naira não mudou a expressão, mas os olhos dela brilharam com lembrança.
— Não deu nem tempo nem mesmo de entender o que aconteceu. — Thamir riu, balançando a cabeça. — Em um segundo, o castelo estava lá no outro estava caindo no vazio. Foi tão rápido que demorei um tempo achando que sonhei.
— Foi eficiente. — Naira respondeu, como se fosse algo simples.
— E assustador de assistir. — Thamir completou. — Se ela consegue fazer isso com uma fortaleza, imagina comigo?
Ian cruzou os braços, a voz firme. — Ainda acho que de todos aqui, você é o mais difícil de enfrentar, Thamir.
Thamir piscou para ele. — Agradeço, irmão. Mas discordo.
Kael entrou na conversa, apoiando o queixo na mão. — Para mim, é Ian.
Os três guardiões se olharam, e por um instante parecia que a roda da fogueira ia se transformar numa disputa de egos. Mas Thamir levantou a mão.
— Parem, parem. Antes que alguém aqui decida provar na prática, deixa eu continuar a apresentação. — Ele virou-se para Kael. — Agora, nosso querido comunicador, amigo de todos, mas, no fundo, a maior dor de cabeça que já tive que aguentar.
Kael ergueu as sobrancelhas. — Isso não soa como elogio.
— Não é. — Thamir retrucou, mas o sorriso estava lá. — Kael é conjurador do fogo. Só que não é só isso. Ele é uma fornalha ambulante, e carrega uma lança como se tivesse nascido com ela no braço. O problema? Qualquer corte que ele te dá demora anos para se curar. Isso se se curar.
Aisha arregalou os olhos. — Anos?
Kael suspirou, levantando as mãos. — Ele exagera.
— Exagero? — Thamir inclinou-se para frente, como se fosse confidenciar um segredo. — Lembro de um guerreiro que tentou enfrentá-lo. Cortou o braço do sujeito só de raspão. O homem ainda deve sentir dor até hoje.
Kael balançou a cabeça, rindo baixo. — Você gosta de inventar histórias.
— Eu gosto de contar a verdade de forma divertida. — Thamir rebateu.
As risadas voltaram à roda.
Quando se acalmaram, Thamir olhou para Ian. — Agora, o Guardião do Norte. O moldador do gelo. O homem que consegue transformar um campo de batalha em um pesadelo em segundos.
Ian suspirou, quase desconfortável com a atenção.
— Não é só o gelo. — Thamir continuou. — E nem as caldas do Kenzaru, embora isso ajude a assustar qualquer um. A verdadeira força de Ian é que ninguém nunca sabe o que ele vai fazer. Ele não luta como um mago. Não luta como um guerreiro. Ele entra no meio da luta, e quando percebe ela já acabou de um jeito muito estranho.
Kael concordou com um aceno. — Isso é verdade.
— Querem um exemplo? — Thamir ergueu o dedo. — Uma vez, enfrentamos um Rumbra em um terreno quente. Criatura enorme, feita de madeira viva, com seiva queimando como lava. todos os nossos danos ele estava regenerando até os de Kael, Eu achei que Ian ia congelar o chão para nos ganhar tempo, ou erguer muralhas de gelo. Mas não. Ele só tocou no monstro. — Thamir estalou os dedos. — E congelou a seiva dele. Nunca nem soubemos que isso era possível.
O silêncio que seguiu foi pesado, até que Kael murmurou: — Eu ainda não entendi como você conseguiu.
Ian não respondeu. Apenas baixou os olhos, deixando o fogo refletir na íris clara.
— Enfim. — Thamir esticou os braços, quebrando o clima. — E por último, eu.
Aisha inclinou a cabeça, curiosa. — E você?
— Eu sou rápido. — Ele disse, simples, com um sorriso aberto.
Kael riu. — Isso é pouco.
Ian olhou para Aisha. — Já vi Thamir derrubar seis guerreiros experientes antes que eu tivesse tempo de reunir mana.
O sorriso de Thamir alargou-se. — Viu? Curto e direto. Rápido. Como eu.
As risadas voltaram. A atmosfera estava leve, e um pouco mais descontraída. Eles brincaram uns com os outros, relembraram erros, provocaram falhas passadas. A fogueira parecia mais viva, aquecida não só pela madeira que queimava, mas pelas memórias que se acumulavam no ar. Até a Matriarca Alexia começou a conversar com Naira.
Foi então que Aisha, ainda tomada pela curiosidade, lançou outra pergunta:
— E o golem de gelo que Ian consegue fazer?
O silêncio voltou.
Três pares de olhos se voltaram para Ian, surpresos. Até Thamir perdeu o sorriso por um instante.
— Golem? — Naira quebrou o silêncio, a voz baixa. — Desde quando?
Ian ergueu o olhar — Faz pouco tempo, está mais para uma marionete de gelo.
O fogo refletia no rosto dele, tornando difícil ler sua expressão.
Thamir riu, mas sem o tom leve de antes. — Essa é nova.
Kael ajeitou-se, intrigado. — Parece que não sou o único a esconder truques.
Ian apenas cruzou os braços, como se fosse evitar o assunto. Mas o silêncio dos outros três mostrava que aquela conversa estava longe de terminar.
Conforme a noite avançava silenciosa no acampamento. As fogueiras menores ainda ardiam em pontos dispersos, lançando pequenas colunas de fumaça que se misturavam ao frio. Dentro da tenda da Casa Seryn, Isla estava deitada sobre as almofadas, mas sua empolgação não a deixava parar quieta.
— Eu consegui, tia. — disse ela, com um sorriso largo. — Consegui que o Espectro da areias aceitasse ajudar a gente todos os dias. Ele vai estar sempre por perto. — Ela deu um grito com o rosto no travesseiro para abafar o som enquanto rolava — E a senhora viu o quão bonito ele é?!
Elenys suspirou, retirando os brincos e guardando-os sobre a mesa de madeira improvisada.
— Isla, não pense que isso significa o que você está imaginando.
— Mas por que não? — retrucou a sobrinha, erguendo-se sobre os cotovelos. — Ele aceitou porque eu pedi. É uma oportunidade, tia. Talvez seja a minha chance.
Elenys hesitou. Como poderia explicar sem revelar que Thamir não fazia aquilo por Isla, mas por ela mesma? O rubor subiu-lhe ao rosto contra a própria vontade. No fim, limitou-se a ajeitar as mantas e responder:
— Não crie expectativas tão rápido. Você ainda tem muito a viver antes de pensar nessas coisas.
Isla bufou, mas não insistiu. Virou-se para o lado chateada com a falta de empolgação da sua tia, mas cansaço da viagem chegou rápido. minutos depois, a respiração dela já denunciava que havia adormecido.
O silêncio retornou, e foi então que Serena, sentada ao canto, levantou os olhos do bordado que fingia terminar.
— Foi ele, não foi? — perguntou em voz baixa, sem rodeios. — Aquele que te deixou fora do eixo no outro dia.
Elenys se endireitou na cadeira, surpresa com a franqueza.
— Não sei do que está falando.
— Sabe sim. — Serena deixou o bordado de lado e se aproximou. — E não adianta se esconder atrás desse tom formal. Eu te conheço melhor que qualquer um aqui.
Elenys desviou o olhar, mas não respondeu.
— Olha, Elenys… — Serena continuou, o sorriso enviesado. — Você carrega o peso da casa, das decisões, dos deveres. Mas também é uma mulher. E aquele guardião…
Ela deixou a frase suspensa, mas logo retomou, como se saboreasse as palavras.
— Ele é diferente. Não te olha como os outros olham. E, convenhamos… é impossível não reparar.
Elenys apertou os lábios, desconfortável. Mas Serena prosseguiu, agora quase maliciosa:
— Forte… com aquele corpo desenhado de alguém que vive em batalha. A pele marcada pelo sol, os ombros largos, o olhar que parece atravessar qualquer um. E quando ele sorri, mesmo que de lado, não pareceu que o mundo inteiro ficou mais leve?
Elenys respirou fundo, mas claramente nervosa. — Serena, por favor… pare.
A amiga riu baixo, satisfeita em ver a matriarca perder por um instante o controle habitual.
— Só estou dizendo o que todo mundo já percebeu. Mas você, Elenys… você é a única que pode decidir se vai ficar sempre se refreando ou se vai, pela primeira vez, se permitir ter algo só seu.
Elenys permaneceu em silêncio. O brilho da lamparina iluminava o contorno firme do rosto dela, mas nos olhos havia um turbilhão.
Quando Serena finalmente se deitou, o silêncio voltou a dominar a tenda. Apenas o crepitar distante das fogueiras e o sopro do vento se infiltravam pelo tecido.
Elenys permaneceu sentada, imóvel, encarando a lamparina quase apagada. As palavras de Serena a afetaram, trazendo a tona incertezas que ela nem sabia que possuía.
Forte. Diferente. Um olhar que atravessa.
Ela fechou os olhos, inspirando fundo. Sabia que não podia se deixar levar por devaneios, mas também sabia que não conseguiria apagar a cena daquela tarde… o sorriso descarado de Thamir, o jeito direto, como se a enxergasse além dos títulos, além das máscaras.
— Tolices… — murmurou para si mesma.
Mas o peso no peito dizia o contrário. E enquanto apagava a lamparina, deitou-se ao lado da sobrinha adormecida, com a mente inquieta e o coração acelerado, sentindo, contra a própria vontade, que Serena talvez tivesse razão….
…. mas mesmo que tivesse… ela poderia?
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