Capítulo 56 - "Inverno Tardio"
O frio parecia vir de dentro. Não era só o ar. Não era só a pele arrepiada. Era como se o coração de Daren tivesse congelado dentro do peito. As bestas cercavam a rua, olhos vermelhos queimando no meio da névoa. Cinco delas, maiores que bois, avançavam em passo firme.
— É o fim… — Daren sussurrou, a enxada tremendo em suas mãos.
Luan rangeu os dentes, o sangue escorrendo de um corte na testa. — Fica firme, Daren. Se for morrer, que seja lutando!
Mas até as palavras de coragem soavam vazias diante daquelas feras.
Então, algo mudou.
O vento soprou diferente. Não era o mesmo sopro que carregava fumaça das casas queimadas ou o fedor das bestas. Era um vento cortante, limpo, que trouxe consigo o arrepio de uma nevasca distante. Poeira e cinzas foram erguidas, dançando como se obedecessem a uma força invisível.
Uma sombra surgiu no alto da casa de Henric e Olivia, que apesar da enorme abertura e os danos internos permanecia em pé, como que por teimosia.
A sombra era alta. Firme. Imóvel, como se tivesse brotado dali. O manto azul-escuro que usava tremulava na brisa, refletindo a luz cinzenta da manhã. O frio que enchia a rua parecia nascer dele, espalhando-se em ondas acompanhando uma fumaça branca que saia dele em direção ao chão como se o vapor da agua quente tivesse se esquecido qual a direção certa.. A mana… mesmo para quem nunca a sentira, era impossível negar. Ela se contorcia no ar, viva, como correntes prontas para devorar.
O silêncio caiu, quebrado apenas pelo rosnado das criaturas.
E então a voz dele ecoou:
— Para trás. — grave, calma, mas com um peso que não permitia dúvida.
Os aldeões recuaram, quase sem perceber. Daren sentiu o corpo obedecer antes mesmo de pensar.
As bestas não. Três delas dispararam, escalando a casa com as garras cravando na madeira. A estrutura rangeu sob o peso, mas elas subiam rápidas, presas brilhando sob a luz.
O homem ergueu um braço. O ar se cristalizou ao redor da mão dele. Em instantes, duas lanças de gelo se formaram longas, perfeitas, cada detalhe talhado como vidro reluzente.
Com um movimento rápido, ele as lançou.
O impacto ecoou como trovão. Uma criatura foi empalada no peito, atravessada por uma lança que a pregou contra o chão da rua. A outra lança transpassou a garganta da primeira criatura, acertando outra que estava logo atrás, o sangue escorreu em jatos rubros sobre o gelo. A terceira caiu junto às duas, arrastada pela força do impacto, esmagada no chão com um estalo seco.
O choque arrancou murmúrios dos aldeões. Henric, ainda com a foice em mãos, deixou escapar um riso incrédulo.
— Pelos deuses…
Daren mal respirava. Não era só magia. Não era só força. Era poder moldado como obra de arte, belo e aterrador ao mesmo tempo.
O homem não esperou. Saltou do telhado.
O sobretudo azul se abriu como asas. Ele aterrissou entre os aldeões e o bando de bestas, o chão rachando sob seus pés. O frio se espalhou em ondas, cobrindo a rua em geada que corria por pedras e paredes.
Ele ergueu os olhos para as criaturas.
— Venham. — A do homem pareceu profunda, como se desafiasse os carniceiros ao desafio de tentar mata-lo.
O rugido que se seguiu fez as janelas estremecerem. Os carniceiros avançaram todos de uma vez, bocas abertas em fúria, presas tilintando como ferro contra ferro.
O homem abriu os braços.
O chão respondeu.
Pilares de gelo brotaram em espirais, altas, ornamentadas como colunas de um templo. Duas das bestas foram empaladas de imediato, atravessadas no ato. Seus urros foram abafados pelo estalar do gelo penetrando carne. O sangue escorria, tingindo o cristal em vermelho vivo.
As outras três desviaram. de repente começaram a se mover estranho, Uma atingiu Henric de raspão, derrubando-o no chão. Daren gritou, correndo instintivamente, mas parou quando o homem deu um passo à frente.
A maior delas disparou primeiro, veloz como flecha. As garras erguidas para despedaçar o intruso. enuanto as outras duas pareciam focar as casas.
Mas então, algo estranho aconteceu.
A criatura tropeçou. O corpo inteiro estremeceu, como se seus músculos não respondessem. Os olhos vermelhos se reviraram, e a mandíbula bateu no ar, sem força.
O homem não hesitou. O frio explodiu sob os pés da besta. Em segundos, o corpo foi engolido por geada. Do focinho à cauda, a fera se transformou numa estátua grotesca de cristal, congelada no meio do salto.
O impacto ressoou como sinos quebrados. A rua inteira tremeu.
As duas últimas criaturas hesitaram. Recuaram alguns passos. Mas não houve fuga.
— Vocês não têm para onde ir. — a voz dele soou baixa, mas cada sílaba carregava a certeza de uma sentença.
Ele ergueu a mão. Novos pilares surgiram, rompendo o chão como lanças, atravessando ambas as bestas lado a lado. O gelo as suspendeu, contorcendo seus corpos em agonia até que o silêncio voltou a reinar.
Daren caiu de joelhos. O suor frio escorria pela sua nuca. A enxada escapou de suas mãos, caindo com um som metálico no chão coberto de geada.
A rua estava repleta de monumentos de cristal vermelho. Um cemitério de bestas, moldado em segundos.
O homem recuou devagar. O gelo começou a ceder, dissolvendo-se em névoa fria que se dispersava no vento.
Ele se virou para os aldeões. Os olhos eram azuis, intensos como lâminas de gelo. A voz, calma, ressoou sobre todos:
— Vocês estão a salvo agora.
Ninguém respondeu. Torren chorava em silêncio, os ombros sacudindo. Luan deixou a foice cair, os joelhos cedendo. Henric, ainda deitado no chão, ria baixinho como um louco, repetindo entre dentes: — Ele congelou… congelou como se fosse nada…
Daren não se movia. Cada músculo do corpo parecia paralisado.
O homem caminhou até os escombros da casa de Ralph, afastou vigas quebradas e puxou com as próprias mãos uma criança ferida, depositando-a nos braços de uma mãe em prantos. O gesto era simples, humano.
E isso só tornava tudo ainda mais impossível.
Os Deuses não se abaixariam para erguer crianças dos destroços. Um deus não sujava as mãos de gelo com pó e sangue.
Mas ele o fazia.
Daren engoliu em seco. As lágrimas vieram sem que percebesse. Sua respiração era curta, irregular.
E então a pergunta escapou, quase num sussurro, mas ecoou no coração de todos que ouviram:
— Quem… é ele?
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