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    O frio ainda pairava no ar, denso, pesado, o mundo parecia não querer retomar o fôlego depois do massacre. O gelo permanecia fincado no solo em colunas enormes, estalagmites que atravessavam corpos de bestas como os portões de um templo mórbido. O sol já subia, mas sua luz parecia incapaz de aquecer aquela cena.

    Ian se movia entre os escombros. A cada passo, seu manto azul se balançava atrás dele como se fosse imune ao caos ao redor. Ian Agachava, erguia pedras, puxava tábuas partidas com as próprias mãos. Ajudava a erguer homens feridos, estabilizava cortes com faixas improvisadas, orientava os poucos aldeões que ainda tinham forças para obedecer.

    Quando os soldados da aldeia enfim chegaram, suas botas marcharam sobre a rua destruída em ritmo apressado. O capitão à frente parou de súbito. Seus olhos percorreram a cena, as colunas de gelo, as feras transpassadas e os corpos espalhados. O sangue escorria ainda fresco pelas lanças de gelo, como se a própria terra tivesse sido condenada.

    Um calafrio atravessou a espinha do homem. Nenhum feitiço conhecido, nenhum mago do reino faria aquilo sozinho. Ele engoliu em seco, apertando mais firme a lança em sua mão.

    — Por todos os deuses… — murmurou um dos soldados atrás. ao reparar o tamanho das bestas.

    O capitão só teve certeza de onde procurar quando ouviu o murmúrio da multidão. Aldeões se juntavam em torno de uma casa de madeira em ruínas, formando um círculo de silêncio pesado. O capitão abriu passagem à força.

    No centro, Ian estava agachado. Segurava nos braços o corpo pequeno de uma criança sem vida, o rosto ainda sujo de poeira e sangue. Os olhos dela, vidrados, refletiam apenas o nada. Ian fechou-os com cuidado, pressionando as pálpebras com um gesto lento, quase cerimonial.

    O capitão deu um passo à frente. Sua voz saiu firme, mas havia tensão demais no timbre:
    — Quem é você?

    Ian não respondeu. Apenas se ergueu, carregando a criança contra o peito. Caminhou em direção à mãe, que se ajoelhava entre soluços, as mãos estendidas em desespero. No caminho, arrancou de uma tenda despedaçada um tecido branco, já manchado de terra. Com calma, enrolou o corpo da menina no pano, cobrindo cada centímetro antes de entregá-lo aos braços trêmulos da mulher.

    Só então ergueu o olhar para o capitão.

    — Perguntei quem é você. — repetiu o homem, mais duro, e desta vez sua lança foi erguida.

    O ar mudou.
    A mana respondeu antes do próprio Ian. Uma pressão gelada tomou o espaço, o chão estalou em cristais finos e respirações ficaram presas nas gargantas. Os aldeões recuaram, instintivamente, como animais diante de um predador.

    Ian endireitou o corpo. Seu olhar azul, cortante como lâmina, encontrou o do capitão. Quando falou, sua voz ecoou firme, carregada de autoridade e de um peso que não aceitava ser questionado:
    — Sou Ian, Guardião do Norte. Estou aqui em nome de Altheria.

    A tensão aumentou, o que um enviado de Altheria estava fazendo ali? no território de um reino vizinho. O capitão, deu um passo atrás. A multidão recuou ainda mais. Mas o gelo, que ameaçava sufocar a todos, dissipou-se tão rápido quanto surgira. Restou apenas Ian, parado ao lado da mãe que chorava, como se toda aquela força fosse algo que ele pudesse conter com uma única decisão.

    — Vim com a comitiva de Altheria. — acrescentou, a voz agora mais branda. — Estamos aqui para ajudar.

    O capitão respirou fundo, sinalizando para seus soldados abaixarem as armas. — Possui alguma Identificação. Preciso de provas de que fala a verdade.

    Ian ergueu o queixo, sem alterar o tom:
    — A caravana chegará pela estrada em breve. Confirme você mesmo. Até lá… — ele abaixou o olhar para os feridos ao redor, os sobreviventes soterrados — Ainda tem muitos presos nos escombros.

    O capitão ficou em silêncio por alguns instantes, antes de baixar a lança devagar.
    — Então, vamos ajudá-lo.

    Os soldados se dispersaram, seguindo as ordens. Ian retornou ao trabalho sem esperar agradecimentos, sua figura imponente ainda marcada pelo contraste de um gesto simples: ajoelhar-se diante dos escombros para dar dignidade àqueles que restavam.

    O frio começava a se dissipar aos poucos com o avançar da manhã.

    Um pouco mais ao norte algumas carruagens estavam se aproximando aos poucos. A estrada estreitava-se conforme se aproximavam das áreas de cultivo. Campos de terra revolvida se estendiam até onde a vista alcançava, alguns já preparados para a próxima estação. O cheiro úmido da terra misturava-se ao frio que ainda resistia no ar, um resquício do inverno que ainda resistia a sua partida.

    No interior da carruagem principal, Lys mantinha os olhos na janela, observando os sinais da vida simples. O silêncio entre ela e Naira era denso, marcado pelo peso dos dias anteriores. Desde a arena, as duas não haviam conversado novamente.

    Foi Lys quem fez o movimento tentando romper a distância.
    — Por que Ian saiu correndo daquela forma? — A voz dela era firme, quase acusatória. — Ele e Thamir simplesmente abandonaram a formação, sem aviso.

    Naira não se virou de imediato. Ajustava as luvas de couro com calma, como se a pergunta fosse previsível.
    — Porque ele deve ter sentido algo.

    Lys estreitou os olhos. — Sentiu? Explique-se.

    Só então Naira voltou o rosto para ela. O olhar escuro tinha a serenidade de quem falava de algo óbvio.

    — Por favor “rainha Lysvallis” não fale comigo como se eu fosse sua subordinada.

    — Devo falar como se fosse uma amiga então? — Lys falou encarando os olhos de Naira que só suspirou antes de falar.
    — A linhagem Kenzaru dele. — respondeu, direta. — Você se esquece que os sentidos de um kenzaru são muito mais aguçados que os nossos. O vento está contra nós. Ele provavelmente sentiu o cheiro das bestas antes de qualquer um.

    O silêncio voltou por um instante, mas Lys não se deu por satisfeita.
    — Então por que você e Kael não o acompanharam?

    Naira soltou um suspiro breve, quase impaciente.
    — Porque não somos Ian. Nem Thamir. — Sua voz saiu firme, sem rodeios. — Eles são muito mais rápidos. Mesmo se tivéssemos tentado, teríamos chegado apenas a tempo de ver o fim.

    Lys apertou os dedos contra o tecido do assento. A resposta era lógica, mas a forma fria com que Naira dizia a irritava.
    — E se eles falhassem? — insistiu. — E se esse “instinto” fosse apenas um erro?

    Naira inclinou a cabeça, os olhos semicerrados.
    — Então teríamos chegado para lidar com as consequências. É assim que funciona. — O tom dela não carregava ironia, apenas certeza.

    Lys sustentou o olhar dela por alguns segundos, mas optou por se calar. A carruagem avançava, e logo o som dos cavalos mudou: da terra firme para o cascalho gasto da entrada da vila.

    O que se revelou diante delas fez o silêncio pesar ainda mais.

    Os pilares de gelo erguiam-se como monumentos macabros, ornamentados por corpos de bestas empaladas. O sol da manhã já começava a derreter lentamente as superfícies cristalinas, fazendo escorrer filetes de água manchada de vermelho. Pelo chão, outras criaturas estavam caídas nas ruas, congeladas em posições grotescas de morte.

    A carruagem diminuiu o ritmo até quase parar. O frio residual perto dos pilares fazia o ar arder nas narinas.

    Lys não desviou o olhar.
    — Parece que não falharam. — murmurou, embora a rigidez da voz denunciasse a inquietação que tentava esconder.

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