Capítulo 59 - "Uma Terra Desolada"
Ian caminhava sozinho pelo campo aberto, as botas pesadas marcando o barro. Cada passo afundava ligeiramente no solo macio, a terra ainda retendo o peso da batalha recente. O silêncio era profundo, não pela falta de som que era quebrado apenas pelo som do vento que cortava o campo e o canto de alguns pássaros, mas sim por como os pensamentos de Ian estavam. O céu estava nublado, o sol escondido atrás de uma camada fina nuvens, dando ao ambiente uma beleza contrastante com a de Altheria. O sobretudo azul de Ian tremulava levemente, as mangas rasgadas pelo esforço da manhã, mas ele não parecia notar. A dor, o cansaço… já eram apenas parte da rotina.
De repente, como se tivesse surgido do próprio ar, Thamir apareceu ao seu lado. Ele estava tranquilo, suas mãos enfiadas nos bolsos, o sorriso torto que sempre carregava no rosto. Mesmo em momentos de tensão, parecia que nada o abalava.
— Percebeu, não é? — ele perguntou, a voz despreocupada, mas com um brilho curioso nos olhos.
Ian não se assustou, nem virou o rosto para ele. Apenas lançou-lhe um olhar de canto, os olhos sombrios, o rosto ainda sério. Não precisava dizer muito. O silêncio entre eles já dizia o suficiente.
— Está falando das bestas? — Ian respondeu com uma leveza que contrastava com a gravidade do que tinha presenciado.
— Claro. — Thamir respondeu, com um ar de quem já sabia que a conversa iria naquela direção. — Desde o começo, elas não agiram como deveriam. Não era só instinto cego… Algo que vai além do que a natureza exigiria.
Ian estreitou os olhos, a memória ainda fresca das criaturas que haviam invadido a cidade. O modo como as bestas se moveram, a forma como cercaram a rua, suas investidas coordenadas, quase humanas. Como se estivessem aprendendo enquanto atacavam. Isso o perturbava mais do que queria admitir.
— Elas estavam espertas demais. E rápidas demais. — Ian murmurou, sua voz carregada com a sensação de que algo maior estava por trás de tudo aquilo.
Thamir balançou a cabeça, concordando, mas seus olhos estavam agora mais atentos, mais sérios. Ele parou de caminhar por um momento, analisando o campo à sua frente como se tentasse ver algo que estava fora do alcance de Ian.
— Até dividiram o grupo. — Thamir continuou, sua voz mais baixa agora. — Metade foi direto em você, a outra tentou cortar caminho até os civis. Isso não é normal para bestas. Nem de longe. São ações que exigem mais do que instinto.
Ian respirou fundo, a sensação de desconforto aumentando à medida que ele revisava o combate em sua mente. Essas bestas não eram como qualquer outra que ele tivesse enfrentado antes.
Elas tinham um propósito, uma inteligência disfarçada de fúria cega. Algo não se encaixava, e ele sabia que isso não podia ser algo simples.
— Eu percebi. E agradeço por ter acabado com as que tentaram passar por mim. — Ian respondeu, sua voz mais grave agora, o que ele raramente permitia acontecer.
Thamir soltou uma risada suave, mas sem a leveza usual. Havia uma tensão no ar agora, algo que se arrastava entre eles. O sorriso malicioso nos lábios de Thamir se abriu, mas foi rapidamente substituído por um olhar de satisfação quieta.
— Ah, então finalmente ouvi um “obrigado”. Vou guardar esse momento. — ele disse, o tom irônico como sempre, mas havia um toque de respeito implícito nas palavras.
— Não abuse. — Ian rebateu, o tom seco e direto, mas mesmo ele não pôde esconder o leve sorriso que surgiu em um canto de seus lábios. A tensão estava ali, por mais que ambos soubessem que o que enfrentavam era muito mais complicado do que simples bestas algumas piadas não fariam tão mal.
Thamir arqueou uma sobrancelha, inclinando-se um pouco para o lado, como se o gesto fosse quase um desafio silencioso.
— Se eu não abusar, quem mais vai? — ele disse, com a mesma confiança de sempre, mesmo enquanto a atmosfera ao redor deles não fosse uma das mais indicadas.
Ian apenas balançou a cabeça, voltando a caminhar, mas a conversa com Lys ainda pairava na sua mente. E agora a a conversa com Thamir, cada palavra parecia um aviso de que algo muito maior estava por vir.
Os dois seguiram lado a lado por mais alguns passos, o silêncio agora mais confortável, mas carregado de uma tensão invisível. Ian parou de repente, olhando para trás, em direção à vila. O campo ao redor ainda parecia inerte, como se estivesse esperando algo. O vento começava a dissipar o frio, mas o calor da batalha ainda permanecia nos vestígios de sangue e corpos espalhados que já estavam sendo movidos pelos guardas. As manchas negras das bestas contrastavam com a terra suja e a vegetação.
— Vamos voltar. — Ian disse, sua voz firme, o olhar fixo nas ruínas. — Quero olhar esses monstros de perto.
Thamir parou ao seu lado, agora mais sério. Ele tirou as mãos dos bolsos e olhou para os corpos das bestas com a mesma atenção meticulosa que sempre usava quando estava lidando com algo que não compreendia por completo.
— Também quero. Algo nelas está errado. — disse ele, sua expressão ficando fria algo que Ian não via a tempos — E não vou ficar tranquilo sem entender o que exatamente estamos enfrentando.
Ian assentiu, e juntos começaram a caminhar de volta em direção à vila. Seus passos ressoavam pesados no barro, o som abafado pelo vento que agora parecia mais distante. A batalha tinha terminado, mas as perguntas ainda estavam frescas em suas mentes. O que eram aquelas criaturas? De onde haviam vindo? E, mais importante, quem ou o que as havia moldado para serem tão… inteligentes?
A vila se aproximava lentamente. Para os demais, era apenas o retorno após o caos, mas para Thamir cada passo parecia arrastar perguntas que não tinham resposta. O que exatamente eram aquelas criaturas? E por que, ao contrário de tantas outras vezes, elas haviam lutado de forma quase coordenada?
Passaram pela muralha improvisada que, pedra após pedra, já ganhava forma sólida. As carruagens da caravana avançavam rumo ao centro, onde os sobreviventes se reuniam em busca de alguma ordem. A maioria dos corpos das bestas havia sido arrastada para fora dos limites, antes que o cheiro de sangue e carne atrapalhasse ainda mais a noite. Restavam apenas duas carcaças, ainda erguidas nas colunas de gelo que derretiam lentamente, como troféus macabros à luz do entardecer.
Ian levantou a mão, em um gesto breve, e os pilares começaram a se desfazer. O gelo cedeu, rangendo, até que os corpos despencaram pesados no chão.
— Vamos dividir isso. — disse Ian, a voz baixa e direta, como quem já estava acostumado a esse tipo de investigação. — Eu procuro sinais de controle, marcas, artefatos… o que for.
Thamir assentiu, os olhos fixos nas deformidades da carne. — E eu vejo a mana. Se tiver mistura, não vai ser difícil sentir.
Ele se ajoelhou perto de uma das bestas. As veias negras ainda marcavam a pele rosada, ressecada após a morte. Moldou uma pequena lamina de gelo e tocou o corpo da criatura.
— Cuidado. — Thamir advertiu, de braços cruzados, observando. — Se isso foi trabalho de alguém, pode ter armadilhas.
— Eu sei. — Ian respondeu, com um leve sorriso de canto. — Mas se ninguém olhar de perto, nunca vamos entender.
Thamir caminhou lentamente até a outra besta enquanto Ian iniciava os cortes, se ajoelhou ao lado da besta. As veias negras ainda pulsavam como se a corrupção tivesse se enraizado até o último instante. Tocou a pele fria, fechando os olhos. E comandou sua mana a entrar no corpo da besta.
O mundo escureceu.
O fedor do sangue, as pessoas ao redor, tudo se apagou de repente. Thamir abriu os olhos, mas já não estava na vila. Estava em um campo aberto, desolado, onde a terra rachada se estendia até onde a vista alcançava. O céu era um avermelhado doentio, pesado, sem sol nem lua. O vento uivava, mas não havia vida alguma.
Ao longe, uma sombra.
Era alta, humanoide, imóvel contra o horizonte. Thamir estreitou os olhos, o coração batendo pesado. Tentou avançar um passo, mas a distância não diminuía. A figura parecia observá-lo, mesmo sem rosto, como se estivesse ciente de cada movimento, de cada pensamento.
— Uma Ilusão… — Ele falou, olhando em volta mais tranquilo — Isso faz sentido.
Ele olhou para a sombra com um sorriso irônico. — Obrigado pelo convite seu desgraçado, mas eu estou ocupado.
A sombra deu um passo. mas já era tarde, o chão se desfez estremeceu sob os pés de Thamir.
Os joelhos bateram forte contra o chão endurecido da rua, a respiração falhando no peito. A besta morta ainda jazia ali, imóvel, mas sua pele parecia mais escura, mais corrompida do que antes… ou talvez fosse apenas o olhar dele que havia mudado.
Ian permanecia próximo, braços cruzados, olhos fixos nele em silêncio. A espera era quase sufocante. Só então, a voz grave soou:
— O que houve?
Thamir respirou fundo, tentando alinhar a própria mana, que ainda se agitava como ondas violentas. — Era uma ilusão. E uma poderosa. — ergueu-se devagar, o olhar varrendo as casas ao redor. — Alguém colocou essas bestas dentro de uma ilusão. E quem fez isso… é forte, Ian.
Ian o encarava em silêncio, esperando uma resposta.
— Forte qual nível? — Ian perguntou cruzando os braços.
— Então … lembra Tyr?
— …. Lembro…
— Pois é… parece ser do nível dele.
…
— Que merda..
— Pois é, vamos avisar os outros — Thamir falou já começando a caminhar.
O peso dessas palavras ficou suspenso no ar, se a avaliação de Thamir estivesse certa isso significava problemas… e dos grandes.
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