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    A tenda de Elenys era diferente das demais. Ao invés de mesas altas e cadeiras de madeira, o espaço era coberto por tapetes grossos e almofadas largas, com uma mesa baixa no centro, adornada por pratos simples de pão, carne defumada e vinho. A luz suave de lamparinas espalhadas pelo ambiente criava um ar mais íntimo, quase aconchegante, apesar da tensão que rondava cada gesto.

    Thamir estava sentado de pernas cruzadas, um braço apoiado no joelho, postura relaxada, mas o olhar carregava aquela constante vigilância que parecia nunca abandoná-lo. Isla, por outro lado, exibia uma curiosidade quase infantil, os olhos brilhando a cada resposta. Elenys se mantinha reservada, observando, e Serena, como de costume, preferia o silêncio, ainda que seus olhos jamais deixassem de medir cada palavra.

    — Então é verdade? — Isla falou, os olhos brilhando de expectativa. — Você já viu um dragão de perto?

    Thamir deixou escapar um riso baixo, reclinando-se sobre a almofada. — Vi, sim mais vezes do que gostaria. Grande, barulhento, e com um hálito pior do que o de um soldado depois de uma semana sem banho.

    Isla cobriu a boca para não rir alto. — Não é assim que descrevem nos livros…

    — É porque provavelmente quem escreveu nunca sentiu as asas levantando uma tempestade de areia. — Thamir deu um gole no vinho, sem pressa. — Livro algum prepara você para o cheiro.

    Elenys observava em silêncio, atenta à interação dos dois. Serena, como sempre, se limitava a acompanhar, o olhar crítico analisando cada palavra.

    Isla riu, encantada, e voltou as perguntas:
    — E Ian? Como você conheceu ele?

    Thamir pousou a taça, avaliando-a. — Você é persistente, garota. Vai direto ao ponto sem nem mastigar.

    — É só que… — Isla tentou se conter, mas a empolgação a traía. — Eu só conheço Kaer-Thal pelos livros. Mas você esteve lá, de verdade. Eu quero ouvir.

    Thamir a encarou por um instante. Depois soltou o ar, deixando o sarcasmo de lado só o suficiente para dar peso às palavras:
    — Bom… eu fui capturado, jogado num buraco com dezenas de outros, usado como cobaia. Mana enfiada à força, arrancada à força. Dia após dia, esperando quem ia morrer primeiro.

    O sorriso de Isla desapareceu. Serena ficou séria. E Elenys, embora rígida, não conseguiu evitar que o olhar a traísse, preso nele.

    — Eles estavam tentando entender como nós podíamos usar mana, alguns sofreram mais do que outros.

    Thamir girou o copo, a voz baixa mas firme:
    — Eu já tinha esquecido como era o sol, quando Ian entrou lá. ele saiu abrindo as correntes e arrancando as portas. E não parou por aí, ele arrumou até um mestre pra nos ensinar a lidar com a mana. Foi graças a ele que conseguimos sobreviver.

    — Deve ter sido difícil — Isla falou, mas a sua fala representava o pensamento de Serena e Elenys.

    — E foi… —

    O silêncio se instalou. Isla engoliu em seco, e Serena desviou os olhos para a mesa.

    O jantar já havia se alongado além do esperado. Isla, estava sendo vencida pelo cansaço e pelo vinho doce. Os quatro ainda estava sentados em torno da mesa baixa com Isla mais para deitada que sentada.. A chama das lamparinas oscilava, projetando sombras alongadas sobre os tapetes, tornando o ar pesado, quase conspirativo.

    Serena quebrou o silêncio, os dedos tamborilando sobre a taça.
    — Você fala de Ian como se fosse… inevitável. Como se tudo girasse ao redor dele.

    Thamir ergueu o olhar, o canto dos lábios curvando-se num quase sorriso.
    — Não é “como se”. Ian é inevitável. Ele atrai problemas e resolve problemas. Às vezes na mesma proporção, às vezes não.

    Elenys arqueou uma sobrancelha, observando-o com atenção.
    — E você? Onde se coloca nisso?

    — Eu? sou um auxiliar, ajudo como posso… — Thamir inclinou-se para trás, apoiando um braço no joelho dobrado. — Eu tento não morrer no processo.

    A resposta arrancou de Serena um olhar irritado.
    — Não brinque, Thamir. — Ela se aproximou, os olhos firmes. — Não é comum alguém falar de guerra e cativeiro como você fala, entre um gole e outro, como se fosse um passatempo.

    O sarcasmo dele foi imediato:
    — Ô garotinha… a quanto tempo você acha que eu estou vivo? melhor assim do que chorar em cima da mesa, não? — Ele girou a taça nas mãos, encarando o reflexo do vinho. — O humor ácido é só… economia de energia. todos tem uma forma de se proteger e essa é a minha.

    As palavras pairaram no ar, carregadas de um peso que não combinava com o tom descontraído. Elenys franziu levemente o cenho, como se quisesse enxergar algo além da máscara.

    — Você não tenta esconder? — ela perguntou, com voz mais baixa. — Não tenta fingir?

    Thamir deu de ombros.
    — Fingir pra quem? Quem quiser me julgar que faça fila. Nunca prometi ser herói.

    Serena o encarava fixamente, mas não insistiu. A resposta já dizia mais do que ele gostaria.

    Elenys, porém, se surpreendia com outra coisa, a indiferença dele em relação a ela naquele momento. Ela já estava acostumada a homens que tentavam se aproximar, fosse pela posição dela, pela beleza ou por qualquer outro motivo mesquinho. Thamir, sempre foi muito direto com ela e insistente não perdendo nenhuma oportunidade para flertar, no entanto, Hoje ele parecia se divertir mais em responder às provocações de Serena do que em lhe dirigir a atenção. Aquilo a confundia.

    Por fim, ele apoiou a taça vazia na mesa e se ergueu devagar. ajeitando o manto leve sobre os ombros.

    — Vou dormir um pouco.

    Elenys o seguiu com o olhar, mas Thamir ainda acrescentou, num tom quase despreocupado, mas firme o suficiente para não soar brincadeira:
    — Se algo acontecer, estarei por perto.

    Então, sem perceber o peso das suas palavras ou do momento, Isla soltou:
    — Você… está interessado em alguém?

    O silêncio que se seguiu foi de puro choque. Elenys piscou, surpresa. Serena a olhou como se quisesse afogá-la no vinho.

    Thamir, por sua vez, deixou a cabeça pender para trás e soltou uma gargalhada curta.
    — Brilhante. Saímos de tortura e morte para fofoca de salão. — Ele se inclinou de novo, os olhos semicerrados, divertidos. — Você tem um talento especial, Isla. Consegue transformar qualquer tragédia em piada involuntária.

    Isla ficou vermelha, tropeçando nas próprias palavras para se explicar. Serena bufou. E Elenys… Elenys apenas desviou o olhar, sem querer admitir que estava curiosa pela resposta que ele não deu.

    Thamir fez uma reverencia breve.
    — Foi uma noite agradável, no mínimo diferente.

    Ele deu alguns passos em direção à saída, mas a voz de Elenys o deteve:
    — Então me diga… por que se recusou tão prontamente a ser o guarda de Lys?

    Thamir parou, voltando-se apenas o suficiente para que a chama da lamparina iluminasse metade do seu rosto.
    — O motivo é simples.

    Serena o encarava, séria, esperando algo elaborado, uma justificativa política ou estratégica. Isla havia perdido para o cansaço e já estava inconciente sobre as almofadas e Elenys, estava concentrada em reduzir o ritmo do seu coração.

    Mas Thamir apenas inclinou a cabeça e disse:
    — Eu queria ficar com você. Preciso mesmo de outro motivo?

    O silêncio que se seguiu pesou mais do que qualquer discurso. Serena desviou o olhar, surpresa com a franqueza dele mas ela também podia jurar que estava conseguindo ouvir o som de um pulso cardíaco. Elenys manteve a postura, mas não conseguiu evitar que a respiração se alterasse por um instante.

    Thamir riu baixo, como se tivesse se divertido com a própria ousadia, e saiu da tenda.
    — Boa noite.

    O pano da entrada balançou com a corrente fria da noite, e o silêncio que se seguiu pareceu ainda mais pesado do que a frase dele.

    Serena arqueou uma sobrancelha, voltando-se devagar para a amiga.
    — Ele definitivamente não pensa muito antes de falar.

    Elenys manteve os olhos fixos na lamparina, como se o brilho trêmulo pudesse lhe dar respostas.
    — Ou talvez ele tenha planejado tudo… ou esteja só brincando…

    — Você acredita mesmo nisso? — Serena provocou, um sorriso enviesado surgindo. — Eu, pelo menos, não vi sarcasmo naquela resposta.

    Elenys suspirou, ajeitando o manto sobre os ombros, mas não conseguiu disfarçar a tensão que lhe percorreu a nuca.
    — O problema não é acreditar, Serena. O problema é… o que fazer com isso.

    Serena não insistiu. Apenas se serviu de mais um gole de vinho e deixou escapar um riso curto.
    — Então talvez seja melhor você decidir logo. Porque com esse jogo talvez ele não espere pelo seu tempo.

    A chama da lamparina vacilou com o vento que atravessou a tenda, deixando as duas mergulhadas em silêncio outra vez.

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