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    Narrado por Lysvallis

    Acordei com o peso de mil martelos batendo dentro da minha cabeça. A luz que atravessava a lona parecia zombar da minha falta de auto controle, desde quando fiquei tão fraca para o álcool?

    Respirei fundo, tentando ignorar o enjoo e a secura da boca, mas o incômodo persistia.

    Estava atrasada…

    O acampamento já devia estar em movimento, desmontando as tendas, organizando as carroças. E eu, a rainha, permanecia deitada como uma garota que não sabe beber. Sentei-me devagar, esperando o mundo parar de girar, e empurrei os cabelos desgrenhados para trás. Não havia tempo para fraquezas.

    Levantei-me, cambaleando até o baú onde estavam as roupas. Meus dedos ainda estavam trêmulos quando puxei o vestido limpo. A cada movimento, meu corpo protestava, mas nada era pior do que a lembrança que me atingiu como um punhal.

    Um flash.
    Eu, muito perto de Ian.
    Minha mão sobre o peito dele.
    E a minha própria voz, baixa e arrastada pelo vinho:

    “Você está aqui para me impedir de ser pega em uma ilusão… não para me colocar em uma.”

    Cobri o rosto com as mãos.

    — Pelos deuses…

    O calor da vergonha subiu pelo meu pescoço até as orelhas. O que mais eu havia dito? O que ele respondeu? A memória se recusava a completar o quadro, deixando apenas o eco daquela frase vergonhosa. Respirei fundo, tentando recompor a dignidade que parecia ter se dissipado junto com o vinho.

    Não podia me dar ao luxo de um surto. Ainda menos ali, no centro do acampamento.

    Vesti o novo traje com calma forçada, ajeitando os tecidos como se cada dobra como se fossem me ajudar a lembrar ou a fingir que nada havia acontecido. Endireitei os ombros, ergui o queixo. Postura Rainha, não garota.

    O resto… o resto eu pensaria depois.

    A claridade me atingiu com força no instante em que deixei a tenda. O sol parecia mais intenso do que nunca, impiedoso, forçando-me a semicerrar os olhos. A dor de cabeça, que já me castigava, latejou ainda mais, a ponto de quase me fazer perder o equilíbrio. Respirei fundo, endireitei as costas e ergui o queixo. Nenhum dos soldados precisava perceber o quanto eu estava debilitada.

    As vozes ao redor soavam distantes, como se fossem abafadas por um manto de algodão. Não conseguia distinguir rostos, apenas vultos em movimento. A cada passo, sentia como se o chão balançasse sob meus pés.

    Então, um braço firme se estendeu na minha direção, e uma voz baixa cortou o turbilhão:

    — Venha. Vou conduzi-la até a carruagem.

    Não precisei abrir os olhos por completo para reconhecer. Era Ian.

    Por um instante, considerei recusar. Não queria a condescendência de ninguém, muito menos a dele. Mas a luz me cegava e a cabeça latejava tanto que qualquer orgulho cedeu diante da necessidade. Apoiei os dedos em seu braço, firme, e deixei que ele guiasse meus passos.

    As lonas sendo recolhidas, o arrastar de madeira, os chamados dos soldados… tudo parecia distante. Eu só sentia a condução dele, estável, inabalável, como se nada pudesse abalá-lo. Era irritante, de certa forma. E, ainda assim, reconfortante.

    Quando me acomodei na carruagem, soltei um suspiro discreto, quase imperceptível. Ian entrou logo atrás. Sem dizer nada, fechou as cortinas das janelas, uma a uma. A luz agressiva foi substituída pela penumbra suave, e o alívio foi imediato. A dor se tornou suportável, e meus olhos, enfim, puderam se abrir sem o tormento da claridade.

    Olhei para ele. O sobretudo azul ainda cobria seus ombros, agora gasto, manchado em alguns pontos, como se tivesse atravessado mais batalhas do que qualquer tecido deveria resistir. Em outro homem, pareceria apenas um trapo. Mas nele não..

    E foi inevitável que a memória me atingisse novamente. Um lampejo da noite anterior: minha voz embargada, meu dedo tocando o peito dele, as palavras vergonhosas escapando por entre o vinho. O que eu tinha na cabeça para falar aquilo?

    Fechei os olhos por um instante, tentando afastar a lembrança. Que absurdo. O que mais eu teria dito depois disso?

    Antes que pudesse mergulhar no vexame, Ian quebrou o silêncio com a simplicidade de sempre:

    — Dormiu bem?

    A pergunta me pareceu quase cruel. Revirei os olhos, mantendo a postura.

    — O bastante para não cair no chão da tenda.

    — Hm. — ele arqueou a sobrancelha. — Estranho… porque ontem à noite não parecia.

    Minha respiração travou por um instante. Apertei o vestido nas mãos, tentando fingir indiferença. — Eu… só bebi demais.

    Ele inclinou-se para frente, o tom quase divertido:
    — Ah, claro. O vinho. Sempre ele. — Fez uma pausa curta. — Engraçado, achei que você não fosse do tipo que esquece tão fácil.

    Mordi o lábio, desconfortável. — Você… o que exatamente eu disse?

    O sorriso de canto dele se ampliou.
    — Que eu estava aqui para impedir que você caísse numa ilusão… não para te colocar em uma. — recitou, palavra por palavra.

    O calor subiu ao meu rosto de imediato. — Eu… não…

    — Ah, não precisa se explicar. — ele a interrompeu, erguendo a mão como quem corta a fala de um soldado em treinamento. — Foi divertido.

    — Divertido?! — ergui a voz antes de me conter. — Eu estava claramente…

    — Tentando me beijar? — Ian completou, seco, como se estivesse narrando a previsão do tempo.

    — O-o Que?…

    O silêncio na carruagem foi quase ensurdecedor. Eu não sabia se queria afundar no banco ou pular dali em movimento.

    Ele reclinou no assento, tranquilo, e soltou a última farpa:
    — Bom..você desmaiou…

    A mana vibrou ao redor, sutil, como se reagisse ao embate entre nós dois. Ian não pareceu se importar. Apenas deixou a frase suspensa no ar, como se fosse um golpe que não precisava de complemento. A carruagem balançava suavemente, e eu tentava me convencer de que o silêncio era melhor do que ouvir a própria voz trêmula. Mas ele estava ali, sentado à minha frente, com aquele maldito sobretudo azul gasto, olhando para mim como se fosse dono da situação.

    — Então é isso? — arrisquei, finalmente. — Você só vai jogar essa frase e ficar quieto?

    Ian inclinou a cabeça, o olhar meio divertido. — Estou só constatando fatos.

    — Fatos? — repeti, tentando manter a compostura. — Você tem uma maneira… peculiar de ver as coisas.

    Ele arqueou a sobrancelha. — Peculiar? Eu chamaria de honesta.

    Suspirei, encarando a janela fechada. — Eu já disse que bebi demais.

    — Eu sei, ouvi da primeira vez. — Ele respondeu no mesmo tom seco, como se estivéssemos discutindo sobre o clima.

    A carruagem tremeu em um buraco na estrada, e por um instante eu fechei os olhos, tentando fugir do embaraço. Mas foi aí que senti. Um arrepio leve, sutil, como se o ar dentro da carruagem tivesse vibrado por um segundo.

    Olhei para Ian, desconfiada. Ele desviou o olhar como se nada tivesse acontecido, mas eu percebi.

    — …Isso foi a mana? — perguntei em voz baixa.

    — Não se preocupe. — ele rebateu de imediato. — Só reage quando alguém perde o equilíbrio.

    — E quem exatamente perdeu o equilíbrio aqui? — forcei a pergunta, estreitando os olhos.

    Ele me encarou por um instante longo demais, como se estivesse avaliando se valia a pena responder. No fim, apenas ergueu os cantos da boca.
    — Talvez o cocheiro.

    — Ian! — chamei, entre irritada e nervosa.

    — O quê? — Ele deu de ombros. — Você queria uma resposta. Dei uma.

    A mana vibrou de novo, mais forte, e eu soube. Não era minha. Não era do ambiente. Era dele.
    Mas Ian continuava impassível, como se nada tivesse acontecido.

    Cruzei os braços, tentando controlar a própria respiração. — Você é impossível.

    — Realista. — ele rebateu, seco.

    — Realista? — repeti, mordendo o lábio. — Você me deixa envergonhada, e ainda consegue rir disso.

    — Só porque é engraçado ver a Rainha da Névoa perder o controle por alguns segundos. — disse ele, inclinando-se levemente para frente. — Admito, é quase refrescante.

    Eu travei. A carruagem parecia menor de repente ela tinha espaço para seis pessoas e ainda assim, seu interior estava sufocante. Ele notou. Sorriu de canto, satisfeito com a provocação.

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