Capítulo 64 - " Curiosidade Real "
Narrado por Lysvallis
A carruagem seguia num silêncio tenso, quebrado apenas pelas nossas trocas rápidas. Eu ainda tentava processar o que tinha acabado de sentir, aquela vibração da mana que insistia em denunciar algo em Ian, quando um som seco na lateral da carruagem me fez sobressaltar.
Três batidas firmes.
Ian suspirou fundo, como se já soubesse quem era. Levantou-se, abriu a portinhola e, sem cerimônia, deixou Thamir subir. O espaço, que já parecia pequeno demais, ficou ainda mais sufocante.
— Rainha, Guardião. — Thamir cumprimentou de forma quase irônica, ajeitando-se no banco de frente para nós. — Temos um problema.
Ian ergueu uma sobrancelha. — Só um? Estou impressionado.
— Não começa. — Thamir rebateu, sem paciência. — Recebi outro ataque do nosso novo amigo, digamos que Freddy voltou para me visitar essa noite.
— Outra ilusão? — Ian perguntou em um tom que não dava espaço para brincadeiras. Mas… quem era Freddy?
Meu estômago se revirou. Eu não sabia se era um apelido era sério ou apenas mais uma das ironias deles, mas não gostei nem um pouco do som daquilo.
— Ele tentou outra vez? — Ian perguntou, o tom ficando mais grave.
— Tentou. — Thamir confirmou. — Como você já deve imaginar, não conseguiu nada. Mesmo assim… ele é forte Ian. Muito forte. Um mago ilusório mais forte que Tyr. — Ele deixou a comparação no ar, e só de ver a reação de Ian, entendi que não era algo que eu gostaria de confirmar pessoalmente.
Cruzei os braços, tentando manter a postura. — E o que exatamente ele quer?
— Informações. — Thamir respondeu de pronto. — o ataque dele foi uma sondagem só que ele não sabe tanto quanto gostaria. parece que ele pode observar através das criaturas que coloca em ilusão. Isso significa que, enquanto não tivermos proteção, cada palavra pode estar sendo ouvida.
Ian fechou a cara. — Conveniente.
— Problematico. — Thamir rebateu, com o mesmo tom seco que Ian usava. — Já pedi para Kael forjar alguns itens de proteção mental para as Matriarcas, Lys, Aisha e para Naira, ele reclamou um pouco que metal de qualidade não cresce em árvore. Mas vai improvisar alguns emblemas quando pararmos no próximo ponto. — Ele ajeitou-se como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Ainda bem que é perto de um rio. Assim quando eu fizer a têmpera… aproveito pra tomar um banho.
Revirei os olhos. — Sempre tão prático.
Thamir ignorou. — Até lá, sugiro que evitem conversar com outra pessoas ajam como se estivessem sendo observados. Melhor não dar informações de graça par ele.
Silêncio. Eu, Ian e o peso daquilo que ele havia acabado de jogar sobre nós.
Thamir abriu a porta, pronto para descer, mas ainda virou-se antes de sair. — Boa sorte com isso.
E foi embora, deixando o ar pesado e carregado. Eu olhei para Ian, esperando alguma resposta. Ele apenas passou a mão pelo rosto, murmurando algo baixo que soou perigosamente como:
— Que merda…
A porta da carruagem bateu de novo, fechando-se atrás de Thamir. O silêncio que ficou não era o mesmo de antes. Agora pesava. Ian continuava recostado, o olhar perdido, os dedos batendo no joelho como se quisessem socar algo invisível.
Não sei se por causa da dor de cabeça mas não aguentei, tive que perguntar.
— Por que vocês dois não terão esses tais artefatos? — perguntei, cruzando os braços. — Especialmente você, Ian. Se até eu vou precisar de proteção, por que você não?
Ele ergueu o olhar para mim, com aquela calma que parecia mais uma muralha do que uma resposta. Depois soltou um meio sorriso irônico.
— Porque eu não preciso.
— Ah, claro. — retruquei, seca. — Um Guardião que não precisa de proteção mental contra um mago ilusório capaz de invadir sonhos? Óbvio. Convença-me.
Ele suspirou, como se a explicação fosse mais um fardo do que um segredo.
— Thamir é imune. Ataques mentais não pegam nele. Nem mesmo ilusões comuns. Fazer ele ver qualquer coisa que não queira exige um esforço absurdo e uma quantidade insana de mana.
Inclinei a cabeça. — Imune…? E como alguém simplesmente é imune?
Ian me encarou por um momento, avaliando se devia ou não prosseguir. Por fim, respondeu:
— Ele carrega a linhagem de uma das grandes bestas naturais. Isso deu a ele mais do que habilidades elétricas. A mente dele é… diferente. Mais sólida. Mais difícil de dobrar.
As palavras ecoaram na minha cabeça. Grandes bestas. Linhagem. Natural. Cada resposta dele parecia só abria mais perguntas.
— E o que exatamente isso significa? — pressionei, inclinando-me para frente.
Ele desviou o olhar, cruzando os braços. — Significa que é uma história longa. Que eu te conto em outro momento. Com calma.
Arqueei uma sobrancelha. — Conveniente.
— Um pouco, mas temos tempo até Cervalhion. — ele rebateu no mesmo tom, e por um instante quase esqueci a dor de cabeça.
Mas a pergunta que veio depois não me deixava em paz.
— E você, Ian? Se é o mais frágil entre nós… por que não vai usar um desses artefatos também?
Por um momento, achei que ele fosse rir da ousadia. Mas em vez disso, Ian levou a mão ao pescoço e puxou de dentro do sobretudo o pingente simples. Dois anéis entrelaçados, unidos por uma corrente de couro gasta.
A luz fraca que entrava pela cortina da carruagem fez o metal reluzir, e havia algo quase pesado na forma como ele o segurava.
— Porque eu já tenho. — disse, a voz baixa, mas firme. — Esse pingente é um artefato de resistência. Ele faz o trabalho melhor do que qualquer emblema improvisado.
Fiquei olhando para o objeto, tentando imaginar que história havia por trás dele. Mas Ian apenas fechou a mão sobre o pingente e o deixou repousar sobre o peito, como se aquele fosse um assunto encerrado.
E o silêncio voltou a nos envolver.
Fiquei olhando para o pingente, incapaz de esconder a curiosidade. Dois anéis entrelaçados… havia algo de pesado, quase solene naquela peça.
— Esse pingente… — falei, a voz mais baixa. — Não parece ser apenas um artefato comum. Qual é a história dele?
Ian demorou a responder. Manteve os olhos fixos em mim, como se calculasse cada palavra. Então, finalmente, falou:
— Não agora.
— Não agora? — repeti, incrédula. — Você joga isso na minha frente, me diz que é a sua proteção e… nada mais? Quer que eu simplesmente aceite?
Ele sustentou meu olhar sem vacilar. — Hoje, no fim da tarde, eu te conto.
— Por que não agora?
Ian suspirou e deixou o pingente cair de volta contra o peito.
— Porque não é seguro. Estamos em um espaço fechado. Se eu me afetar ao contar… posso acabar destruindo essa carruagem inteira.
A firmeza dele não deixava espaço para dúvida. A mana ao redor vibrou, sutil, como se confirmasse suas palavras.
Cruzei os braços, forçando um suspiro impaciente.
— Está bem. Mas vou cobrar.
Ele arqueou um canto do lábio, quase um sorriso. — Eu não duvido.
Recostei-me contra o banco, a contragosto. — Então vou esperar.
E assim ficou decidido, com o peso do silêncio preenchendo o interior escuro da carruagem, enquanto a promessa pairava entre nós.
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