Capítulo 66 - Olhos de Aisha
Narrado por Aisha
O mundo ao redor sumiu no instante em que Ian deu o sinal.
Não existe floresta, não existe rio. Só eu e Lys.
Eu faço um avanço rápido. O espaço entre nós desaparece.
Cada passo medido, cada respiração contada, não posso permitir nenhuma distração. Não dessa vez.
O primeiro recuo dela me arranca um lampejo de satisfação. Achei a abertura. Mas não me permito saborear. Não repito o erro da arena, sem pensamentos inúteis, só o próximo golpe.
A lâmina corta o ar, pesada, carregada da mana que pressiono no fio.
Naira deixo bem claro durante os treinos. peso é impacto. Se ela bloquear, vai sentir.
Ela desvia. Mas isso a forçou a abrir a guarda. Giro o corpo, concentro mana nos pés, Thamir me ensinou isso. Um sopro de velocidade. Quase um pequeno voo.
Mas Lys já se recuperou.
Rápida, mais do que imaginei.
Mas isso não importa já testou perto. A força sozinha não basta, velocidade sozinha não basta.
Eu tento misturar as duas, mas a mana escorrega. Pesada demais no golpe, instável no passo seguinte. O corpo me obedece, mas sem harmonia.
Não paro. Não posso.
Cortes retos, giros bruscos, o fio buscando brechas.
Ela tem que errar. Todo mundo erra, e durante uma fração ela pareceu desequilibrar.
“Vai acabar…” murmuro entre dentes, certa de que a vitória está a um passo.
E então sinto.
O ar muda. Fica frio. Não frio comum frio de mana.
O solo treme de leve. Demorei um instante para entender o padrão, mas quando percebo… já é tarde para reagir.
O chão sob meus pés congela.
Um estalo seco.
Perco o apoio. Caio de lado, a espada escapa da mão por um instante.
O som da voz de Ian corta o ar.
— Basta.
Fecho os punhos, o coração acelerado, os pulmões ardendo. Apoio o joelho, levanto devagar. O olhar fixo em Lys.
Perdi novamente, mas eu estava melhorando.
— Vamos lá. — A voz de Ian é firme na minha direção — Muitos pontos fracos Aisha, te falta de força bruta, falta de controle da mana — ele começou se aproximar de nós duas — E você esta com foco cego no inimigo e zero atenção ao ambiente.
Engulo seco.
— Eu…
— Se fosse um inimigo criativo de verdade, você já estaria morta. — Ele me corta sem piscar.
Aperto os punhos, o peito queimando. Mas não desvio os olhos, já havia entendido a tempos que quando Ian corrigia e apontava um erro era algo que faria diferença em uma luta.
— Certo.
— De todos esses problemas foque em resolver primeiro a percepção. — Ele cruza os braços. — Se não souber usar o ambiente, não vai importar se a lâmina é rápida ou pesada.
Assinto. Sem discutir. Só absorvo.
— Entendido.
Ele inclina a cabeça. Quase parece que vai sorrir.
— Mas admito, copiar o estilo de dois guardiões na cara dura assim.. nada mal.
Meus olhos se acendem antes que eu consiga evitar.
— De verdade?
— Não sou de elogios Aisha. — Ele fala seco dando de ombros, mas ainda firme. — Ainda falha na mistura dos estilos, mas quando acertar… vai ser assustadora.
Meu rosto esquentou. Rio baixo, nervosa. Mas feliz fiquei muito tempo tentando copiar o estilo de luta de Thamir e Naira, foi bom ser reconhecida.
— Então não estou tão mal assim.
Ele já se vira para Lys, que estava em silêncio até agora.
— E você? — O olhar dele é direto. — O que precisa melhorar?
Ela pisca, surpresa.
— Eu?
— Sim. — Ele dá de ombros. — Não adianta treinar se não sabe onde erra.
O silêncio pesa. Só o vento na clareira. Eu seguro a respiração esperando a resposta dela.
Lys ergue o queixo. — Eu não acho que tenha cometido tantos erros assim.
Arqueio as sobrancelhas, mas Ian é mais rápido.
— Então é perfeita. — Ele começa a se afastar. — Ótimo, vou arrumar outra pessoa para ensinar.
— Não foi isso que eu disse. — Lys rebate, firme.
— Foi exatamente isso. — Ele retruca, gelado. — Nenhum deslize? Nada?
Ela respira fundo. — No início… a velocidade dela me pegou desprevenida.
Um “bom começo” e ele continuou pressionando e ela cada vez fala mais.
Admitindo que reagiu em vez de controlar.
Que subestimou o alcance das minhas técnicas.
Eu só observo.
Ian dá um meio sorriso. — Viu só? Consegue admitir quando para de se esconder atrás da coroa.
O olhar de Lys escurece.
— Não estou me escondendo.
— Está sim. — Ele se aproxima um passo. — Você acha que ganhou porque é boa. Mas não ganhou eu interrompi antes.
— Então o que sugere? — Ela desafia.
Ele inclina-se, olhos brilhando em desafio.
— Outro duelo. Contra mim.
Eu fecho os dedos no punho da espada caída ao meu lado. Sei que aquilo não vai terminar leve.
Ian e Lys frente a frente. O ar na clareira mudou. Não parecia mais um simples treino. Era… outra coisa.
Eu fiquei parada, a espada ainda firme na mão, mas a respiração acelerada não tinha nada a ver com a luta anterior. Era como assistir dois mundos colidirem.
Lys foi a primeira a mover-se. As lâminas de gelo se ergueram rápido, afiadas, fechando Ian dentro de uma jaula brilhante. Pareciam incontáveis. Por um segundo, até achei que tinha chance.
Mas Ian só suspirou.
— Primeiro erro. — A voz dele soou firme.
Ele fechou a mão. E tudo ruiu. A jaula que Lys havia moldado quebrou como vidro fino, caindo em estilhaços aos pés dele.
Um estalo percorreu minha espinha, eu teria recuado sem pensar duas vezes. Ian não. Ele devolveu o movimento, erguendo outra prisão ao redor dela. O gelo dele não era nem parecido com o dela, parecida denso. Sólido. Como se tivesse veias correndo por dentro, sustentando cada parte.
— Quer olhar de perto e dizer o que vê?. — ele apenas disse de forma relaxada.
Vi Lys deslizar a mão pelo gelo. O olhar dela mudou.
— Mais resistente… — murmurou.
Ian desfez a jaula devagar, como quem quer ensinar até na forma de destruir.
— Você deixa o gelo crescer como quer. Bonito. Mas quebradiço.
Ele avançou sem pressa, desviando das lâminas que ela voltou lançar. Nenhuma o atingiu. Era como se já soubesse onde cada golpe nasceria.
— Segundo erro. — falou, a voz baixa mas implacável. — Você não usa a mana do ambiente. Tudo nasce de você, se você lutar com alguém que consegue ver o fluxo da mana, não vai conseguir fazer nada. Se torna Previsível.
Previsível.
A palavra soou mais pesada do que deveria.
Lys franziu o cenho, mas não desacelerou os ataques.
Ian girou nos calcanhares, rápido, e apontou direto para ela.
— E o mais gritante de todos, você é estática.
— Estática? — ela rebateu, quase ofendida.
— Sim. — Ele deu mais um passo. — Você ergue, lança, molda. Sempre no mesmo lugar. Não muda ângulo. Não muda posição. Você não se move, os pés congelaram?
— Eu mantenho a base firme. — ela respondeu, a voz carregada de orgulho.
Ian riu. Riu baixo.
— Base firme? Isso é desculpa de estátua. — A mana explodiu ao redor dele, e o frio me arrepiou os ossos. — Você acha que uma besta vai respeitar sua “base firme”?
O gelo no chão estalou. O ar pareceu ficar pesado. E mesmo sem lutar, eu entendi, Ian estava dizendo que ela ia morrer parada daquele jeito.
— Vamos de novo. — Ele baixou o tom, mas era quase uma ameaça. — Se ficar parada, eu derrubo você antes que perceba.
Era diferente de tudo que já tinha visto. Um duelo que não era sobre vencer, mas sobre expor falhas. Cada movimento dele era uma lição. Cada defesa dela, uma confissão.
E eu, caída de lado, observava. Gravando cada palavra, cada erro, cada detalhe.
Não podia desperdiçar essa chance de entender como os tecelões de gelo lutam..
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