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    O corredor parecia se estreitar ainda mais conforme Karl avançava pelos tuneis da periferia de Altheria. As paredes de pedra carregavam marcas de séculos, fissuras que se cruzavam como cicatrizes, musgo enegrecido em alguns pontos e gotas escorrendo até formar poças rasas no chão. Cada passo dele arrancava um respingo que ecoava, como se os corredores quisessem repetir sua presença para todos os cantos.

    O ar cheirava a poeira molhada, misturada ao ferrugem de metais. A tocha na mão de Karl lançava um clarão vacilante, revelando símbolos esculpidos em baixo-relevo nas pedras do teto. Não entendia o significado, mas a forma deformada deixava claro que o tempo havia apagado quase tudo.

    — Finalmente um bom sinal… — murmurou, erguendo a tocha mais alto.

    O corredor terminou numa abertura torta, onde um arco de pedra, outrora imponente, estava quebrado. Metade dele jazia no chão, coberta de pó. Passar por ali dava a sensação de atravessar a boca de algo morto.

    Do outro lado, a sala se abria em desordem. O teto havia cedido em alguns pontos, revelando pedras partidas e pilhas de entulho. Colunas caídas jaziam como ossos espalhados. No centro, erguia-se ainda de pé um único pilar, mas rachado de cima a baixo.

    Das fendas, escapava um brilho azulado, pulsante, como se algo respirasse dentro da pedra.

    Karl assobiou, baixo. O som morreu rápido no ar pesado.

    — E não é que eu achei coisa grande mesmo? — ajeitou a alça da sacola e bateu no próprio peito, forçando um ar de orgulho. — Só falta eu morrer esmagado.

    Deixou a tocha encaixada em uma rachadura da parede, e o fogo tremeluzente fez as sombras dançarem nas colunas caídas. O lugar parecia menor do que era, como se as paredes estivessem prestes a fechar sobre ele.

    Aproximou-se do pilar. Passou a mão pela pedra fria e áspera, sentindo a vibração quase imperceptível do que estava preso dentro dela. O azul escapava pelas frestas como se o chamasse.

    — Bonito. — o tom foi mais sério dessa vez, até que forçou um sorriso curto. — Bonito e perigoso.

    Circulou devagar a base do pilar, atento ao menor estalo. O chão estava coberto de fragmentos, alguns afiados como lâminas quebradas. Em um canto, o que parecia um pedaço de lança ou suporte antigo: uma barra de ferro enferrujada, grossa, curvada.

    Karl se abaixou, ergueu o ferro com esforço e apoiou contra o pilar.

    — Se quebrar, serve de lápide improvisada. — rosnou, pressionando a alavanca.

    O pilar gemeu. Pedaços menores se soltaram, rolando pelo chão e produzindo ecos curtos. A cada pressão, uma nova fissura se espalhava, até que a pedra cedeu de vez.

    Do interior, dezenas de cristais do Véu brilharam como estrelas presas em rocha. O clarão azul encheu a sala, pintando as paredes e as sombras de outra cor.

    Karl prendeu o fôlego por um instante.

    — Caramba…

    Então estreitou os olhos.

    No meio daquele mar de cristais, algo destoava: um pequeno baú metálico, ornamentado com entalhes apagados, repousava bem no centro, encaixado como se tivesse sido guardado ali.

    Karl coçou a testa, desconfiado.

    — Isso aqui tá com mais cara de armadilha do que de sorte…

    O silêncio respondeu, pesado, como se a ruína esperasse a escolha dele.

    O dilema ficou pendurado no ar. O baú brilhava como promessa, mas também podia ser armadilha. E Karl não tinha luxo para apostas burras.

    — Baú bonito demais pra não ser maldição. Você fica aí.

    Afastou o olhar e se concentrou no que sabia lidar. Um a um, retirou os cristais sem marcas. Usou a barra para desprender os menores e as mãos para recolher os maiores. A sacola foi ficando pesada, quase vinte cristais, todos limpos, de brilho intenso.

    — Isso aqui vale mais que a casa inteira. — A risada escapou, curta, nervosa.

    O problema era óbvio. Aquela ruína estava no território de uma das grandes famílias. Em teoria, tudo que fosse encontrado ali pertencia a Altheria. Em teoria…, mas não havia guardas, nem supervisores. Só ele.

    — Se os “grandes exploradores” não viram… azar deles. — Murmurou, puxando a sacola pro ombro.

    Mesmo a contra gosto Karl se afastou deixando o baú para trás.


    O alívio veio só ao entrar em casa. O espaço estreito cheirava a terra molhada, mas a luz dos cristais espalhados pelas paredes suavizava o ambiente. No canto, a estufa improvisada brilhava, mantendo as mudas vivas.

    Laura estava ajoelhada, mexendo nas plantas. O cabelo preto preso de qualquer jeito, a pele pálida refletindo o azul da mana.

    — Trouxe uns novos. — Karl colocou quatro cristais sobre a mesa. — Vai segurar a estufa por meses.

    Ela ergueu os olhos, tocando os cristais com cuidado. — Você anda se arriscando demais. Imagino que entrou em algum lugar que não devia para achar um cristal desse tipo…

    Karl deu de ombros, escondendo a sacola maior ao lado da cama.

    — Só faço o que precisa ser feito.

    — Apenas tome cuidado.

    Ela se sentou sobre as mantas, ajeitando os cristais no suporte da estufa. A luz azulada iluminou o rosto dela, suavizando o cansaço.

    — Aos poucos estou me sentindo mais forte. — Sorriu de leve. — Logo posso voltar a ajudar.

    Karl riu. — Ajudar? Você mal sobe dois lances de escada sem parar pra respirar.

    — Foi a minha experiência que te manteve inteiro lá dentro, moleque. — Rebateu, arqueando a sobrancelha. — Se não tivesse aprendido a reconhecer armadilhas, já teria perdido uma perna. Talvez a cabeça.

    Ele ergueu as mãos, rendido. — Tá bom, tá bom. Mas não quero te ver carregando peso.

    Ela ajeitou o xale ignorando as falas de Karl. — Hoje vamos ao mercado juntos. Quero sentir o sol no rosto, nem que seja só aquele fiapo da fenda.

    Karl suspirou, mas não discutiu. Não tinha como ele convencer a sua mãe quando ela colocava algo na cabeça, era simplismente teimosa demais…


    Os túneis úmidos os levaram até a rua estreita que servia de passagem para o mercado. A caminhada era lenta respeitando o ritmo mais vagaroso de Laura. No caminho, encontraram Gustav um velho amigo de Karl que se tornou um explorador.

    — Karl! Dona Laura! — cumprimentou animado, batendo no ombro do rapaz. — Vocês ouviram? A Casa Seryn tá contratando exploradores. Pagamento gordo.

    Karl arqueou a sobrancelha. — Desde quando família rica paga bem sem segundas intenções?

    Laura soltou uma risada seca. — Se a promessa é alta e chamam muita gente, só significa uma coisa.

    Gustav piscou. — O quê?

    — Encontraram uma ruína nova. E não têm ideia do que vão achar. — Ajeitou o xale. — Dinheiro fácil das famílias sempre custa caro garoto.

    O mercado surgiu logo à frente, tendas improvisadas e grutas adaptadas ao redor de uma grande fenda por onde a luz do sol atravessava. A claridade dourada iluminava o espaço como se fosse outro mundo.

    Cheiros de especiarias se misturavam ao mofo. Vozes altas ecoavam pelas paredes. Karl, Laura e Gustav seguiram até um velho vendedor conhecido, acostumado com gente como eles. O homem sorriu quase sem dentes, olhando de soslaio para a sacola que Karl carregava.

    Laura foi direta: — Vamos pra um lugar isolado. Só então mostramos.

    O velho os guiou até uma gruta lateral, escura e úmida. Ali, longe dos olhares, Karl abriu a sacola. O azul dos cristais iluminou o espaço, refletindo nos olhos do comerciante.

    — Alta pureza… — murmurou. — Sorte grande.

    — Sorte não paga arroz. — Karl cruzou os braços.

    O velho riu, tossindo. — Arroz, ferramentas, sementes… Isso sim. Dinheiro não. Você sabe. Se aparecer com moedas, as famílias farejam a origem. E então você perde tudo.

    Laura assentiu. — Queremos mantimentos, sementes, remédios. E informações.

    — Informações? — o homem ergueu as sobrancelhas. — Quais?

    — As que valham o troco que você não pode dar.

    Ele riu de novo. — Muito bem… Sabia que esses cristais do Véu não passam de armazéns? Mana bruta em forma sólida. É por isso que toda armadilha antiga tem deles por perto. São a fonte de energia.

    Karl sentiu um frio correr pela espinha. Lembrou do pilar rachado… e do baú encravado no centro.

    — E tem mais. — O vendedor baixou a voz. — Os Guardiões são reais. Vieram até Altheria. Agora o Guardião do Norte está a caminho de Cervalhion. Dizem que pra consertar a Barreira.

    Karl franziu o cenho. — Guardiões… achei que fossem só histórias.

    — Pois é. Mas se até eles estão se movendo, o continente vai ficar bem mais interessante.

    Karl fechou a sacola. — Então é isso. Os cristais por aquilo que pedimos.

    — Exato. Mas lembrem-se: nunca mexam com runas que não entendem. Já vi mais de um corpo carbonizado por isso.

    Laura pousou a mão no ombro do filho. O olhar dela era firme.

    Karl respirou fundo. Parece que deixar o baú para trás tinha sido a decisão certa.

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