Índice de Capítulo

    O vilarejo de Noren ainda cheirava a terra molhada e sangue.
    Os soldados terminavam de prender as carroças, revisar equipamentos, ajustar cordas e limpar lâminas. O som metálico das fivelas se misturava ao burburinho da multidão. Rostos sujos, olhares ansiosos, todos fitando Ian como se estivessem diante de uma lenda viva atravessando a rua principal.

    Ele fingia não notar. Ajustou o sobretudo, verificou o cavalo da carruagem e esperou em silêncio.

    — Guardião! — chamou o capitão da guarnição, apressado. — Ainda não sei como agradecer… sem você, teríamos perdido metade do destacamento.

    — Não precisa agradecer. — Ian respondeu com a mesma calma indiferente de sempre.

    — Mas—

    Antes que o capitão terminasse, o líder do vilarejo subiu numa carroça e ergueu as mãos, a voz cortando o pátio como um trovão.

    — Povo de Noren! — bradou. — Ontem vimos a sombra da morte, e com ela, a força do Norte! O Guardião Ian ergueu lanças de gelo contra as feras! Nenhuma vida foi perdida sob sua vigília!

    Um coro de gritos e aplausos percorreu a multidão. Ian fechou os olhos por um instante e suspirou.
    Mais um discurso.

    — Acho que ganhou outro memorial. — murmurou Naira, divertida, atrás dele.

    — Tomara que escolham um nome melhor que Lança do Norte. — respondeu, seco.

    Naira riu alto demais, atraindo olhares. Ian apenas seguiu até a carroça, ignorando as reverências que o seguiam como uma sombra.
    Quando o discurso terminou, ele acenou brevemente para o povo e subiu. O vilarejo foi ficando para trás, envolto pelas muralhas de pedra escura que pareciam absorver o sol.

    De frente para ele, Lysvallis o observava com um meio sorriso.

    — A essa altura, metade de Cervalhion já deve saber quem você é.

    Ian arqueou uma sobrancelha. — Ótimo. Assim não terei paz nem quando chegar lá.

    — Não parece o tipo de homem que foge da atenção. — Lys cruzou as pernas, ajeitando o cabelo sobre os ombros.

    — Não fujo. Evito. — Ian olhou pela janela, o tom contido. — Gente demais olhando costuma significar problemas.

    Lys riu. — Sabe que essa sua pose de desinteressado não engana ninguém, certo?

    — Engana o suficiente. — respondeu ele, e um leve sorriso escapou no canto dos lábios.
    Desde a última conversa, a presença de Lys ao seu lado havia se tornado quase… confortável.

    A carroça seguia num ritmo constante. O vento frio entrava pelas frestas da janela, trazendo o cheiro de terra úmida e folhas esmagadas. Ian quebrou o silêncio:

    — Por que não aproveita o tempo e treina?

    Lys arqueou uma sobrancelha. — Aqui dentro?

    — Não me diga que a grande Rainha de Altheria não consegue se concentrar em uma carroça em movimento.

    Ela estreitou os olhos, divertida.

    — Não foi você quem disse que não queria perturbar a mana aqui dentro pra não destruir a carroça?

    Ian coçou a cabeça, resignado.

    — …Você tem um ponto. — Então indicou o espaço à frente dela. — Comece com a mana bruta. É mais estável de lidar.

    Lys respirou fundo e fechou os olhos. O ar vibrou levemente não o bastante para gerar forma, mas suficiente para Ian perceber o esforço.

    — Está empurrando demais. — ele disse. — Deixa fluir.

    — Fluir? — Lys abriu um olho, confusa. — Isso não é água.

    — É mais próximo disso do que imagina. — Ian ergueu a mão e deixou uma linha de gelo surgir entre os dedos antes de dissipá-la. — A mana não gosta de ser forçada.

    — Você tem noção de que eu faço isso a vida inteira? — ela retrucou, impaciente. — Desde o início, todos aprendem a empurrar a mana pra controlar. E agora você me diz que é errado?

    Ian sorriu de leve. — Eu só disse que existe um jeito melhor.

    Lys tentou novamente, mais concentrada. O ar tremeu, e um brilho azul começou a tomar forma.

    — Melhor. — Ian observou. — Mas ainda mistura emoção demais.

    — Difícil não fazer isso quando se trata de gelo. — Lys resmungou. — A mana reage ao que eu sinto, não dá pra desligar.

    — Você não precisa desligar. — Ian inclinou-se um pouco à frente. — Só não pode deixar que ela siga o fluxo das emoções. Você conduz o fluxo, não o contrário.

    Ela o olhou de lado, cética. — E é assim tão simples?

    — É simples. — Ian respondeu. — Só não é fácil.

    O silêncio que veio depois foi confortável. Apenas o som das rodas sobre a terra e o vento nas árvores. Lys respirou fundo e tentou de novo.

    O brilho azul retornou mais limpo, mais firme. Pequenos flocos se formaram entre os dedos dela, dançando no ar.

    Ian observou, atento.

    — Melhor. Agora ouça. — A voz dele tornou-se baixa, quase didática. — A mana bruta é o início. Quando você a estabiliza, ela assume uma natureza. A sua é o gelo; esqueça fogo, vento, o que for. Foque no frio.

    Lys manteve o olhar nos flocos. — Nunca ouvi falar disso.

    — Bom… agora ouviu. — disse Ian, com naturalidade.

    — E o que essa natureza tem de especial? — ela perguntou, curiosa.

    Ian apoiou os cotovelos nos joelhos, analisando-a.

    — A mana de gelo é moldável. Responde ao pensamento. Se ajusta à forma que você imaginar. Pode criar e moldar com precisão, mas tem um preço: amplifica o que você sente.

    Lys desviou o olhar. — Isso explica algumas coisas.

    — Por isso eu disse pra não usar emoção como combustível. — Ian comentou, quase divertido. — O gelo não precisa de raiva, nem medo. Só de foco.

    — E se eu perder o controle? — Lys perguntou.

    — As emoções te engolem. — respondeu ele, sem hesitar. — Ilusões, dor, lembranças distorcidas. Tudo o que você teme, o gelo devolve em dobro.

    Lys ficou em silêncio, observando o floco derreter na palma da mão. — E mesmo assim você usa isso como se fosse natural.

    — Tenho anos de prática. — Ian deu de ombros. — Esqueceu?

    Ela tentou outra vez. O ar ficou mais frio. Um cristal de gelo pequeno surgiu sobre sua palma… trêmulo, mas firme.

    Ian sorriu de canto.

    — Agora sim. Está sentindo a diferença?

    — É mais… leve. — Lys respondeu, surpresa. — Como se o ar se movesse junto comigo.

    — Isso é controle. — Ian cruzou os braços. — Quando dominar isso, a força vem sozinha.

    Lys sorriu, ainda concentrada no cristal.

    — Então quer dizer que estou melhorando.

    — Um pouco. — Ian respondeu, seco.

    Ela riu. — Esse foi o elogio mais generoso que já ouvi de você.

    — Aproveite. — Ian encostou-se no assento. — Não vai acontecer de novo tão cedo.

    A carroça seguiu seu caminho, embalada pelo vento frio que soprava das colinas. Lys voltou ao treino, a respiração calma, o olhar firme.
    Ian a observava em silêncio e pela primeira vez em muitos dias, permitiu-se relaxar.

    Sabia que muito em breve, a calmaria teria fim.

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