Capítulo 72 - Oitavo Dia.
As rodas das carruagens da Casa Krosys avançavam devagar pela estrada úmida, o som das ferraduras e do metal ecoando entre as colinas cobertas por névoa. O brasão azul e prateado nas laterais ainda brilhava, mesmo após dias de viagem, símbolo de uma casa antiga, influente e orgulhosa de seu nome.
Dentro da carruagem, o seu interior era amplo e silencioso. Cortinas de veludo azul escuro bloqueavam parte da luz, e o aroma leve de chá de folhas secas se misturava ao cheiro de couro novo.
A jovem herdeira da Casa, Seris Krosys, observava a estrada pela janela, o olhar frio e distante.
— Irel — murmurou em um tom audível. — O território de Cervalhion… está pior do que imaginávamos. Desde o segundo vilarejo, os ataques não param.
Do outro lado, a administradora da casa, uma mulher de meia-idade dona de uma calma estudada respondeu.
— Sim. As bestas estão maiores. E mais coordenadas. Não é algo comum, nem para os padrões do sul.
Seris cruzou as pernas, pensativa. — Talvez seja coincidência. Mas não sei… — ela parou, franzindo a testa. — Talvez algo esteja afetando o equilíbrio natural.
— Você está pensando na Barreira? — comentou Irel, sem erguer os olhos dos relatórios que revisava.
Seris apenas assentiu.
A terceira ocupante da carruagem, a capitã de escolta, uma mulher de armadura leve e expressão implacável, levantou o olhar. — Com todo respeito, senhoras, desde que o Guardião do Norte se juntou à caravana, os ataques ficaram mais intensos, não menos.
Irel a olhou de soslaio. — Está insinuando o quê?
— Nada. — a capitã respondeu com neutralidade. — Só que a presença de alguém com tanto poder pode atrair coisas que normalmente ficariam quietas.
O silêncio que se seguiu foi interrompido pelo som de cavalos, do lado de fora.
Seris desviou o olhar para o seu irmão. que olhava fixamente para fora.
— Sylas? — ela perguntou. — O que foi?
O rapaz piscou, distraído, e apontou. — Aquela garota… — disse em voz baixa. — Ela está correndo desde o amanhecer?
Seris seguiu o olhar dele.
Lá fora, entre a poeira e lama da estrada, uma jovem corria ao lado das carruagens.
O vento agitava os cabelos negros dela que estavam presos em uma trança solta que caía sobre o ombro. A pele tinha um tom moreno-claro, e os olhos âmbar, quase dourados, refletiam o brilho do sol como se guardassem luz própria.
Apesar da velocidade constante da caravana, ela mantinha o ritmo sem demonstrar esforço, o olhar firme à frente, o corpo inclinado para frente em perfeita sincronia.
Era uma visão curiosa, enquanto todos os outros guardas seguiam montados em cavalos, ela corria, acompanhando o passo das carruagens com a naturalidade de quem fazia aquilo há anos.
Ao lado dela, em um cavalo escuro, o Espectro das areias observava, às vezes dizendo algo que ela respondia com visível irritação.
— Quem é ela? — perguntou Daren, intrigado. — E por que está correndo assim?
A capitã inclinou-se levemente, olhando na mesma direção. — Ela não é uma guarda. É uma discípula do Guardião do Norte.
Os dois herdeiros se entreolharam.
— Discípula? — Seris repetiu, surpresa. — Aquela garota?
A capitã assentiu. — Dizem que ele a treina pessoalmente desde que deixou Altheria.
Seris voltou o olhar para Aisha, avaliando-a de forma quase analítica.
— Ela é… bonita. — comentou, num tom neutro, quase acadêmico. — Cabelos negros, pele uniforme e olha que olhar determinado… mas.. ela não meio baixa?
Irel riu discretamente. — Está tentando adivinhar a idade dela, senhorita?
— Exato. — Seris respondeu, divertida. — Eu diria… vinte e dois.
A capitã cruzou os braços se divertindo com o jogo que se formava. — Olhar frio, postura rígida, passos precisos… acredito que tenha vinte e cinco. Soldados assim costumam ter alguma idade.
Irel, fingindo reflexão, completou: — Vinte e quatro. Só pra ficar no meio-termo.
Sylas arqueou uma sobrancelha. — Jura? a meu ver ela parece mais nova. — Um leve sorriso surgiu em seus lábios. — Aposto que não tem nem vinte.
As três o encararam com expressões diferentes, ceticismo, ironia e curiosidade.
— E o que apostaremos, então? — perguntou Irel, divertida.
— Que tal o direito de fazer a próxima escolha de parada? — propôs Sylas. — Quem acertar escolhe onde descansamos amanhã.
A herdeira concordou, cruzando os braços. — Fechado.
— Então, quando pararmos, perguntamos a ela. — concluiu Irel, rindo.
A carruagem voltou ao silêncio, quebrado apenas pelo som ritmado das rodas sobre o solo e o eco distante do vento.
Mas lá fora, o foco estava longe de apostas.
Aisha mantinha o ritmo. O ar frio queimava nos pulmões, mas o corpo já ameaçava falhar devido ao esforço prolongado. Cada passo era medido, cada respiração controlada.
O som constante dos cascos ao lado a lembrava de Thamir, que seguia montado, observando-a com o mesmo olhar zombeteiro de sempre.
— Que respiração curta é essa? — disse ele. — está parecendo um peixe fora d’água. não me diga que já cansou?!…
— Eu… Juro — respira — vou te enfiar no rio quando a gente parar! — retrucou Aisha, sem perder o passo.
Thamir soltou uma risada seca. — Agradeço, mas devia se concentrar em não cair.
Ela bufou, o suor escorrendo pela têmpora. — Fácil falar de cima do cavalo.
— Olha só, então ainda tem energia para retrucar… — respondeu ele, ajustando as rédeas. — Então vamos acelerar. E tenta não morrer.
Aisha estreitou os olhos, xingando internamente mas obedeceu.
Aumentou o ritmo, sentindo o corpo tremer e o vento rasgar os pulmões. O chão passava rápido sob seus pés, e, quando Thamir percebeu que ela estava no limite, falou com calma:
— Agora usa a mana. Só o suficiente pra estabilizar o corpo.
— Você quer que eu canalize mana agora? — ela retrucou, incrédula.
— O que? — Thamir deu de ombros olhando para Aisha — A prodígio não consegue?
Aisha rosnou algo ininteligível, mas tentou.
Um brilho tênue percorreu a pele dela por um instante, a mana fluindo de forma irregular, instável, mas presente.
O corpo respondeu. Os passos ficaram mais leves, o cansaço diminuiu.
— Melhor. — Thamir comentou. — Pelo menos agora não parece um javali manco.
— Você é um idiota! — retrucou ela, sem perder o ritmo.
— Acho que vou ter que aumentar o ritmo já que ainda consegue falar — respondeu ele, com um sorriso discreto.
Aisha fingiu não ouvir, mas um pequeno sorriso cruzou seu rosto antes de continuar a correr, o vento e a poeira se misturando ao riso contido que escapou dela. Havia algo naquele tom de voz, aquele sarcasmo paciente, quase protetor que lembrava as manhãs antes da guerra, quando o irmão a fazia correr entre as colinas, dizendo que ela precisaria ter pernas fortes para fugir de pretendentes sem noção.
Por um instante, o peso do cansaço pareceu leve. O frio não incomodava tanto, e o passo ficou mais firme.
Thamir percebeu a mudança e arqueou uma sobrancelha.
— O que foi agora? — perguntou, curioso.
— Nada. — ela respondeu, enxugando o suor com o dorso da luva. — Só lembrando de alguém que também achava que mandava em mim.

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