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    Narrado por Elenys

    A água fria já levara a poeira do dia e o cansaço, mas não os pensamentos.
    O vento que vinha das tendas trazia o cheiro de fumaça e couro, sinal de que o acampamento já se ajeitava.
    Serena nos esperava no caminho, tocha em punho, o semblante calmo como sempre.

    — Finalmente. — disse ela assim que nos viu. — O jantar está quase pronto.

    — O jantar? — perguntei, ajustando o manto nos ombros. — Achei que quem cuidaria disso seria você.

    — Thamir resolveu assumir. — respondeu com leveza. — Montou sua tenda e agora está cozinhando. Disse que precisava compensar pelo atraso na montagem da nossa tenda.

    Suspirei.
    — Claro que disse.

    Serena arqueou uma sobrancelha. — Ele parece determinado a te agradar. E, pra ser justa, ele não cozinha mal.

    — Não é questão de agradar. — murmurei. — É a insistência dele.

    — Hm. — Ela me observou, cruzando os braços. — Bem… Ele já deixou claro o interesse.

    — O interesse dele… é um luxo que eu não posso me permitir. — respondi, seca. — Tenho um dever com a Casa Seryn.

    Serena riu baixo. — Você fala como uma política, mesmo fora das reuniões.

    — E você como uma administradora cansada. — retruquei, mas sorri.

    Ela devolveu o sorriso. — O que eu quis dizer é simples, às vezes é preciso arriscar. Ficar parada demais faz o tempo decidir por você. Em algum momento, ele pode simplesmente ir embora.

    Antes que eu pudesse responder, passos se aproximaram pela trilha.
    Naira surgiu, ainda prendendo o cabelo molhado, as botas marcadas de barro.

    — Arriscar o quê? — perguntou, direta, parando ao nosso lado.

    Apesar da expressão dura que costumava afastar as pessoas, nos últimos dias ela havia se mostrado uma boa companhia o tipo de mulher que dizia pouco, mas falava o necessário.

    Serena deu de ombros. — O coração da nossa amiga aqui anda indeciso.

    — Ah. — Naira bufou uma risada curta. — Isso explica a cara dela. Quem é o infeliz?

    — Thamir. — respondeu Serena antes que eu pudesse impedir.

    Naira arqueou as sobrancelhas, surpresa. — Olha só… — um sorriso rápido apareceu. — Só pra confirmar. Thamir, o das piadas ruins e que quando está com Ian e Kael vira um garoto?

    — Ele não vira um garoto. — corrigi. — E é apenas… atencioso demais.

    — Eu só tô brincando, ele só é direto demais. — comentou Naira com um sorriso curto. — Sempre foi assim. Se gosta de alguém, deixa claro. Não tem medo de rejeição. — Ela inclinou a cabeça. — Mas isso não deveria ser um problema… qual é o problema, então?

    Serena interveio, o tom mais suave. — Ela só não sabe o que fazer.

    — É simples. — disse Naira, direta. — Faz o que você quer. E aguenta o que vier depois.

    — Se fosse assim tão simples… — murmurei.

    Naira deu uma risada breve, sem humor. — Nunca é. Mas é melhor do que passar a vida se perguntando como teria sido. — Fez uma pausa, o olhar distante. — Eu fiz isso com Kael.

    Serena ergueu os olhos. — O Kael o da forja?

    — Esse mesmo. — Naira respondeu, firme, mas com a voz mais baixa. — Ficamos juntos seis anos. Passamos por muita coisa. Mas aí, do nada, ele me pediu em casamento… e eu fugi.

    O olhar dela vagou por um instante, despindo a guerreira da armadura.
    — Achei que ele não ficaria, que iria pro próximo campo, pra próxima guerra. E quando percebi o erro, ele já tinha ido. Só quando o reencontrei agora, depois de tanto tempo, percebi o quanto me arrependia. A vida tem esse dom… de esfregar nossas decisões na cara.

    Serena baixou o olhar, pensativa. — Então o que você diria pra alguém no lugar dela?

    Naira deu de ombros. — Que se jogue. Que pare de fingir que dá pra viver pela metade.

    Serena virou-se pra mim. — Ouviu? A guerreira lendária e a administradora concordam. Isso é raro.

    Demorei alguns segundos antes de responder. — Vocês não entendem. Eu… o que vou fazer com Veynar?

    — Quem é Veynar? — Naira perguntou, confusa.
    Serena respondeu por mim: — Ninguém importante, só marido dela.

    O silêncio que veio foi quase físico.
    Serena parou no meio do passo. Naira apenas piscou, como se achasse que ouviu errado.

    — Espera… você é casada? — repetiu, devagar. — Está brincando comigo?

    Balancei a cabeça. — Não exatamente. É um casamento político. Arranjado desde que assumi o título.
    E, mesmo assim, tentei fazer dar certo.

    — E ele? — perguntou Naira, cruzando os braços.

    — Ele não tentou. — respondi, sem emoção. — Antes da viagem, tentei mudar as coisas… ele recusou até conversar. Disse que o que tínhamos era suficiente, e que eu devia continuar “cumprindo o meu dever”.

    Serena soltou um riso amargo. — “Dever”. É a palavra favorita dele. Aliás, Naira, talvez isso ajude a entender o tipo de homem de quem falamos. Antes da viagem, ele sugeriu oferecer Isla que acabou de fazer quinze anos para Thamir. Como gesto político.

    Naira parou de andar. O olhar dela mudou, não de surpresa, mas de pura fúria contida.
    — Ele fez o quê?

    — Foi recusado. — acrescentei rápido. — Thamir ainda não soube, mesmo com Veynar tentando influenciar minha sobrinha. Mas… é isso. É por isso que não sei o que fazer. Tudo parece errado.

    Naira ficou em silêncio por um instante, respirando fundo. Depois, falou baixo, mas firme:
    — Esse homem não te vê como esposa. Te vê como moeda. E, sinceramente, se for pra viver como propriedade… é melhor viver por si.

    As palavras dela ficaram no ar, pesadas, diretas, impossíveis de ignorar.
    Serena assentiu em silêncio, e seguimos pela trilha de volta ao acampamento. apesar da conversa estranha o silencio era confortável para mim.

    O cheiro do jantar chegou antes da luz das tochas.
    Quando a luz das fogueiras surgiu entre as árvores, vimos Thamir agachado diante do fogo, mexendo a panela enquanto Isla falava sem parar ao lado dele, sorridente.

    — Ele levou a sério a parte do jantar. — comentou Serena, seca.

    — E Isla levou a sério a parte do “dever”, aparentemente. — respondi, antes de perceber que falei alto demais.

    Naira deu uma risada curta. — Então… o que vai fazer?

    Olhei pra frente, o fogo refletindo nos olhos dele.
    Não respondi.
    Porque, no fundo, eu ainda não sabia.

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