Índice de Capítulo

    O cheiro do cozido se espalhava pelo acampamento, misturando-se à fumaça e ao vento frio que vinha do norte.
    O fogo crepitava baixo sob a panela, lançando pequenas faíscas que subiam como vaga-lumes antes de se apagarem no ar. As sombras das tendas se alongavam sobre a grama, e o ar carregava o aviso silencioso de que a neve não estava longe.

    Thamir mexia o conteúdo com um pedaço de madeira, distraído.

    O movimento repetido parecia mais um exercício de paciência do que de culinária. O som do caldo borbulhando se misturava às vozes distantes dos vigias, até que o acampamento começou a se acalmar, embalado pelo cheiro de temperos e madeira queimada.

    Quando serviu a tigela para Elenys, havia no gesto uma satisfação silenciosa, o tipo de orgulho que ele jamais admitiria em voz alta.

    Ela aceitou, observando o caldo espesso e fumegante antes de provar. O sabor era forte, quase rude, mas surpreendentemente equilibrado para um cozido feito em uma caravana com carne de baixa qualidade.
    Ela ergueu as sobrancelhas.

    — Está bom — disse, sincera.

    Thamir apoiou o cotovelo no joelho, o olhar meio divertido.
    — Bom? Ou muito bom?

    Elenys o olhou por cima da borda da tigela. O tom dela era calmo, a postura impecável, mas havia uma leveza escondida ali.
    — Eu fiz um elogio. Não exagere.

    — Ah, então é isso. Um prêmio raro, sem direito a repetição. — retrucou ele, com ironia contida.

    Serena, sentada próxima ao tecido da tenda, observava os dois com um sorriso que era metade divertimento, metade curiosidade. Por mais que Elenys nunca fosse admitir, aos poucos ela estava se aproximando e cada vez mais gostando da presença de Thamir.

    Isla observava a interação entre a sua Tia e Thamir, prestando ainda mais atenção aos detalhes, por mais que os seus olhos lhe mostrassem ela teimava em acreditar que podia ser verdade, afinal ela sabia que sua Tia era uma mulher incrível mas, porque ele a escolheria sabendo que ela é comprometida?!…

    Assim que recebeu sua tigela, provocou:
    — Vocês dois não se cansam?

    Thamir deu de ombros, lançando-lhe um olhar breve antes de voltar para Elenys.
    Ela respondeu, sem sequer dirigir-lhe o rosto:
    — Ao que parece… ele não.

    Dessa vez, ele não rebateu de imediato. Apenas soltou o ar e mexeu o cozido, o fogo parecia refletir a mistura de sentimentos que agitavam o peito de Isla, ela estava frustrada, triste por ter sido derrotada antes mesmo de poder cumprir o eu dever, mas ao mesmo tempo também estava um pouco feliz por ver sua tia mais “viva”.

    A voz de Thamir a puxou de volta de seus pensamentos.
    — Bom, até a liga mais forte se desgasta com o tempo — disse, em tom neutro.

    O comentário pairou no ar.
    Isla piscou, confusa.
    — Perdão… mas eu não compreendi.

    Elenys deixou escapar um riso breve, mas sem humor.
    — É essa a sua tática agora? Persistir até cansar e depois desistir fingindo educação?

    Thamir ergueu o olhar, sereno, mas firme.
    — Não. Só prefiro honestidade a floreio. Não faz sentido insistir em ficar perto de alguém que só quer correr pra longe.

    O tom era direto, sem amargura. Ainda assim, a sinceridade crua das palavras o tornou mais pesado do que qualquer provocação.
    Serena arqueou a sobrancelha, Elenys desviou o olhar para o fogo, disfarçando a tensão com a elegância de quem sabia manter o rosto imóvel mesmo quando o coração vacilava.

    Serena ergueu a tigela, quebrando o clima.
    — Seja como for, o cozido está ótimo. Você acaba de ganhar o direito de cozinhar pelas próximas noites.


    — Castigo disfarçado de elogio. — Thamir resmungou — Você devia trabalhar como diplomata.

    — Já faço isso o suficiente — respondeu Serena, sem perder o sorriso. — Mas aceito negociar… você cozinha, eu avalio o sabor.

    Isla, que observava tudo em silêncio, inclinou-se um pouco mais para o fogo.
    — Eu não sabia que você sabia cozinhar.

    Thamir deu um meio sorriso.
    — Quando se passa tempo demais viajando sozinho, o mínimo é aprender a não morrer de fome.

    Ela se aproximou mais, curiosa.
    — E gosta de viajar sozinho?

    Ele mexeu a panela devagar, pensativo.
    — “Gostar” é exagero. Eu diria que aprendi a tolerar.

    Serena apoiou o queixo na mão.
    — E o que fazia antes de se juntar à caravana?

    Thamir levantou o olhar, e o reflexo do fogo deu aos olhos dele um tom âmbar, quase dourado.
    — Pesquisava ruínas. No deserto de Nar’Shal. Trabalhei com cartógrafos, magos, exploradores… Caçávamos templos soterrados, runas perdidas, coisas que ninguém mais queria encontrar.

    Elenys o encarou, intrigada. — Um pesquisador? Você não parece o tipo.

    Thamir sorriu de canto. — É. Eu também achava isso.

    — E o que encontrava nessas ruínas? — Isla perguntou, encantada.

    — Poeira, escorpiões e arrependimentos. — respondeu ele, sem hesitar.

    Serena riu. — Isso é o que você chama de pesquisa?

    — É o que eu chamo de vocação mal paga. — Thamir serviu-se de novo, com calma. — Às vezes a gente encontra história. Mas ela costuma vir coberta de areia e cheia de dúvidas.

    Elenys o observava com o olhar calculado de quem tenta não demonstrar interesse, mas falha.
    — Parece um trabalho ingrato.

    — É. — ele respondeu. — Mas andar por lugares onde ninguém mais pisa tem um certo encanto. É como conversar com o passado, às vezes ele responde, às vezes só te faz de idiota.

    Isla o observava atentamente.
    — E não sente falta de ter companhia?

    Thamir parou. O fogo estalou, e o vento soprou entre as tendas.
    Depois, um sorriso leve.
    — Sinto. — disse, sincero. — Por mais bonito que seja o deserto, conversar com as próprias sombras enjoa.

    Serena cruzou os braços, satisfeita.

    — Então finalmente admite que é melhor viajar em grupo.

    Thamir ergueu o olhar, com um meio sorriso cansado. — Admito. Mas só porque vocês cozinham pior do que eu.

    Isla riu, e até Elenys deixou escapar um pequeno sorriso antes de escondê-lo atrás da tigela.
    Por um instante, o som do vento e do fogo substituiu as palavras.

    A lua subia devagar no céu, prateando os rostos cansados dos soldados da caravana. O fogo lançava reflexos sobre a madeira, e por um breve momento para Thamir, parecia que o mundo inteiro cabia naquele pequeno círculo de luz.

    Ele apoiou o queixo na mão, olhando o fogo como quem lê o próprio passado nas chamas.
    Pensou em tudo o que havia dito e em tudo o que nunca diria.
    Talvez estivesse, de fato, cansado de andar sozinho.
    Mas isso, ele preferia guardar para si.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota