Capítulo 80 - Aedin II
Narrado por Aedin Valcor
Ao sair da sala do trono, senti a respiração pesada escapar de mim como se tivesse segurado ar demais durante a conversa com o andarilho. O corredor estava banhado pela luz suave que atravessava os vitrais, tingindo o chão de vermelho e dourado. A fortaleza ainda parecia viva, apesar de tudo.
— Majestade. — dois guardas inclinaram a cabeça quando passei.
Respondi com um gesto curto, mas sincero. Eu sabia os nomes deles, seus pais, suas cidades.
Eles sabiam disso também. E era por esse motivo que me olhavam com algo além de dever, algo que demorei para conquistar, respeito verdadeiro.
As serviçais que atravessavam o corredor fizeram pequenas reverências. Algumas sorriam, e eu retribuía com um sorriso leve, o tipo de sorriso que conserva dignidade, mas ainda entrega humanidade. Eu me orgulhava disso. De ser visto como alguém com quem podiam falar, rir, existir. Alguém acessível ao contrario de outros monarcas ou nobres.
A chefe das serviçais, se aproximou, secando as mãos no avental.
— Aedin… — ela sempre me chamava pelo nome quando não havia público.
— Marta — respondi sinalizando para que ela caminhasse comigo.
— Você quer que eu prepare algo mais forte para beber? — Ela perguntou.
— Não. — respondi, embora talvez eu quisesse sim.
Ela captou o silêncio que se seguiu.
— A Rainha está em seus aposentos. Não saiu… hoje…novamente.
Eu fechei os olhos por um instante. Senti um peso crescer entre as costelas.
— E Eldric?
— O jovem mestre está na área de treino desde cedo. — Marta hesitou. — Ele… não tem dormido muito.
— Obrigado, a partir daqui vou seguir sozinho.
Ela fez uma reverencia breve e recuou.
Bom… primeiro… ela.
Caminhei até nosso quarto os velhos corredores que era cheios de vida estavam quietos, apenas com a presença de alguns guardas. A porta do nosso quarto estava entreaberta.
Empurrei devagar. pisando com leveza, não queria perturbar um dos raros momentos em que ela conseguia dormir desde o incidente.
Mas ela estava ali, sentada no chão, encostada na lateral da cama, as pernas dobradas, um livro infantil aberto em seu colo. O livro dele. Do nosso primogênito.
A bandeja com comida estava intocada. Manchas de umidade marcavam o tapete… lágrimas recentes.
— Você precisa comer. — minha voz saiu mais baixa do que eu pretendia, enquanto eu pegava a bandeja e me aproximava.
Nenhuma resposta.
Me aproximei devagar e estendi a mão para tocar sua cabeça, mas ela se afastou, um movimento leve… quase um reflexo. Ainda assim, doeu mais que qualquer lâmina inimiga.
Eu recuei. Sabia muito bem o porque ela estava assim… só era duro admitir em voz alta.
— Eu sei. — minha voz falhou pela primeira vez em muito tempo. — Eu também queria ter sido… mais rápido. Ter visto antes. Ter entendido.
Fechei os punhos.
— Mas nós não podemos morrer com ele. — respirei fundo. — Eldric ainda está aqui. Ele precisa de nós. De nós dois.
Silêncio.
Ela virou a página do livro, embora não estivesse lendo.
Eu soube que era tudo o que podia fazer hoje.
lentamente me afastei, deixando a bandeja com frutas perto da cabeceia da cama antes de sair do quarto.
O caminho até a área de treino parecia mais longo do que realmente era, devido as memorias. Quando finalmente cheguei, ouvi o impacto seco do metal contra metal… seguido por um rugido ardente.
Eldric movimentava a espada em um arco largo, e chamas amarelas escorriam pelo fio. Ele estava suando, respirando pesado, mas concentrado.
Meu coração apertou.
Ele cresceu.
Rápido demais.
— Está desperdiçando energia. — anunciei, cruzando os braços. mas um sorriso involuntário se abriu no meu rosto.
Ele virou, surpreso, e um sorriso cansado surgiu em seu rosto.
— Pai.
— Filho…
…
Quando fiquei tão ruim em conversar com meu próprio filho?!
— O que você esta tentando fazer? — perguntei olhando a arena, que agora quase havia sido transformada em um bloco de carvão ardente.
— Quero controlar melhor o poder da nossa linhagem.
— Hum… entendi — Fazia sentido ele estar tentando controlar o poder da linhagem, afinal ao contrario de mim que não conseguiu despertar a linhagem dos Valcor, ele conseguiu.
— Que tal um duelo? — falei.
Ele piscou, confuso.
— Agora?
— Agora.
Ele sorriu mais amplo. Não um sorriso feliz, mas um sorriso de quem sente falta de algo que perdeu e tenta alcançá-lo pela luta.
A espada dele se ergueu. Eu não puxei arma nenhuma. Apenas ajeitei retirei o manto real e abaixei a postura.
Ele avançou primeiro. fazendo uma fita com a espada e atacando com um chute.
Eu desviei, segurei o pulso dele, e o desequilibrei com o ombro. Ele recuperou a base rapidamente… ele sempre foi rápido.
Ele me olhou com finalmente um sorriso verdadeiro.
As chamas dançaram na lâmina quando ele golpeou. Eu entrei por baixo do arco da espada, encaixei um, dois, três socos no tórax dele. Suficientes para fazer ele cair de joelhos.
Ele arfou.
— Ué já cansou? — Provoquei um pouco
— …Tudo bem. — ele murmurou, levantando-se. — Sem contenção, então.
Foi quando a chama mudou.
de um amarelo para um vermelho e azul.
A temperatura subiu tão rápido que meus olhos arderam.
A chama de Valcor.
A chama da nossa linhagem.
Eu ergui as mãos e os blocos de pedra da arena responderam me envolvendo.
Uma armadura rústica, irregular, mas seria o suficiente para evitar algumas queimaduras.
Foi quando o ataque veio.
Mas não era um simples golpe. Era fúria, dor e saudade, tudo flamejando.
A rocha começou a derreter.
Eu recuei, senti o calor forçar minha respiração. troquei a camada externa da minha armadura.
Ele gritou e quando atacou.
Meu garoto havia crescido… mas ainda continuava com esse mau habito de gritar quando ia usar tudo o que tinha.
Eu não gritei, apenas lutei.
Em um momento de abertura, ergui ambas as mãos para o chão e a arena obedeceu.
A pedra se ergueu formando uma esfera oca ao redor dele, rápida demais para ele reagir.
O calor dentro dela queimou o oxigênio. e junto com o fim do grito o folego se foi junto.
As chamas azuis morreram.
Ele caiu dentro da esfera, inconsciente, mas vivo.
A esfera se abriu em pó. e ele caiu completamente coberto de fuligem.
Eu me ajoelhei ao lado dele. Passei a mão em seu cabelo, e limpei o seu rosto com o manto.
— Você está ficando forte… — murmurei. — Desse jeito não vai demorar para eu não servir mais para treinar com você…
Ali, naquele momento, eu soube, havia me afastado deles por tempo demais, priorizei o povo e acabei negligenciando minha família…
Eu me levantei, respirando fundo, sentindo o peso… e a responsabilidade… e a dor…
Mas, pela primeira vez em muito tempo, senti também uma direção.
Eu ainda tinha algo para melhorar e proteger.
E isso…
era o suficiente por agora.

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