Capítulo 82 - Aedin IV
Narrado por Aedin Valcor
A poeira ainda dançava no ar quando dei o primeiro passo para fora do salão. Ela se misturava ao cheiro de sangue, pedra partida e fumaça fina. O chão estava coberto de fragmentos de vidro e madeira, e cada passo ecoava como algo irregular, como se o castelo respirasse com dificuldade.
— Reúnam os feridos na ala sul! — gritei para os guardas que ainda estavam se recuperando do impacto. — Se alguém não conseguir andar, me digam. Eu cuido disso. VÃO REPASSEM A ORDEM!
Meu ombro ardia, mas não importava. Havia muito mais para fazer do que se preocupar com dor.
Eldric e Melissa estavam ao meu lado.
Eldric não falou nada, não perguntou nada. Apenas ficou ali, atento, aguardando a próxima ordem. Foi nessa hora que percebi, ele estava pronto. Talvez pronto há muito tempo e eu não estava vendo.
— Comigo. — falei.
Corremos.
As escadarias externas estavam parcialmente destruídas. O corrimão de pedra desabara, partes inteiras do terraço tinham cedido. Lá embaixo, o pátio central estava tomado por gritos, feridos sendo carregados, servas improvisando torniquetes com aventais e guardas tentando colocar ordem no caos.
— Vão ! — Melissa falou indo na frente. — Ajudem a pulação eu cuido do castelo.
O tom dela não deu margem para discussão. Descemos pelo pátio interno novamente quando gritos cortaram o ar. Assim que saímos da dependência do castelo começamos a ouvir os gritos e pedidos de ajuda.
— Ali! — um soldado gritou. — Tem gente presa sob os escombros da muralha leste!
Corri até lá. Partes enormes de pedra bloqueavam a passagem. Três pessoas gritavam do outro lado, duas crianças e uma mulher pela voz.
— Eldric, recua todo mundo. — ordenei.
Ele ergueu a mão e fez sinal para afastarem. Guardas puxaram os feridos, servas se afastaram.
Respirei fundo. eu precisaria ser cuidadoso um descuido e eu poderia esmaga-las.
Mana percorreu meu corpo, lenta primeiro, rápida depois, queimando sob a pele como algo vivo. meu corpo se fortaleceu e eu foquei em ouvir a terra, afinal uma coisa era usar a mana para só arremessar uma rocha em alguém, outra bem diferente era levantar com calma e cuidado. comecei a recitar um encantamento curto.
— Levantar. — murmurei, tocando a pedra. Não era força não apenas força.
A muralha respondeu.
Rachou.
Moveu-se.
Se ergueu, de forma lenta abrindo espaço para elas sairem.
Eldric correu antes mesmo que eu dissesse qualquer coisa, puxando as crianças e a mulher, ajudando-as a sair antes que o peso voltasse a ceder.
Quando ele voltou, tocou meu ombro.
— Ainda aguenta?
Eu olhei para ele.
— Esta brincando ne?!..
Ele sorriu. E seguimos em frente ajudando o máximo de pessoas que encontramos, até que o líder de patrulha se aproximou de nós.
— Majestade… O celeiro! O celeiro principal está pegando fogo!
Eu e Eldric trocamos um olhar.
O celeiro central de grãos de Cervalhion não era apenas um prédio.
Era nossa sobrevivência.
Era inverno. Era vida.
Se ele queimasse, não haveria colheita suficiente. Não haveria pão para as aldeias menores. Não haveria como sustentar exércitos principalmente com o ataque das bestas. Não haveria como manter alianças.
A fumaça podia ser vista de longe, negra e espessa, subindo em colunas que arranhavam o céu. Pessoas tentavam carregar baldes de água, mas o fogo era quente demais, rápido demais.
Quando chegamos o silo ainda não estava gravemente afetado pelas chamas, já que o fogo estava concentrado nas vigas de sustentação., o calor atingiu meu rosto de forma intensa.
O telhado já havia começado a ceder.
E mais. Eu conhecia aquele tipo de incêndio.
se o silo caísse todo o pó de grão iria entrar em suspensão. E se a concentração fosse alta… corria o risco de explodir.
Uma explosão de um silo seria tudo menos simples de resolver.
— TODOS AFASTEM-SE! — gritei com todo o ar que possuía.
As pessoas pararam. Recusaram. Não quiseram.
— MAS OS GRÃOS!—
— EU DISSE AFASTEM-SE! — e minha mana saiu na voz.
A terra vibrou sob meus pés ressoando.
Eles recuaram.
Eldric chegou ao meu lado, já com as mãos cerradas.
— O teto vai cair em minutos.
— Eu sei.
— E se o pó explodir—
— Eu sei.
Por um instante, ele ficou em silêncio.
— Pai… — sua voz falhou.
Eu o olhei.
— Eu não pretendo morrer. — ele disse com calma. — Mas alguém precisa entrar. Se deixarmos isso se espalhar, perdemos a cidade.
— Ninguém precisa entrar não — falei agitando concentrando minha mana.
Ele respirou fundo. E assentiu.
— Do que precisa?
— Que corte as vigas que ainda não estão danificadas — respondi.
Ele arregalou os olhos.
— O que??
— ANDA LOGO ELDRIK!
Ele apertou os dentes. Mas obedeceu.
— Sim, senhor.
Não foi “pai”.
Foi “comandante”.
Eu já sabia o que tinha que fazer só precisava finalizar as preparações.
Foi então que ouvi.
— SOCORRO! — uma voz fraca, abafada.
Eu congelei. tinha alguém dentro do silo, Eldrik me olhou e eu apenas acenei e ele entendeu, entrou correndo por entre as chamas,
O calor estava ficando intenso. A fumaça, sufocante.
Eu puxei mana. E condensei, agora só espera aguardar ele sair.
Foram os segundo mais longos da minha vida. preferiria muito mais ser eu a entrar no fogo, mas não temos tempo, foi quando na mesma velocidade que ele entrou ele saiu do celeiro carregando uma criança,
Concentrei a energia em torno da cabeça e pulmões, criando um fluxo mínimo de ar filtrado. Uma técnica antiga, ensinada para mineiros da montanha.
O fogo já lambia as paredes do silo . O cheiro de madeira queimada, fibra e grãos torrando se misturava ao ar. Se eu não agisse agora…
Estendi as mãos.
— OS PILARES! — Gritei para Eldrik que já havia deixado a criança com os guardar e voltava na minha direção, ele passou por mim em alta velocidade e cortou tres pilares principais em um corte.
Foi lindo assistir a eficiência e a técnica do corte. mas agora eu tinha que agir.
A mana da terra não apaga fogo.
Mas ela afoga.
O chão tremeu. A pedra sob o piso subiu, densa, formando um canal para bloquear as chamas na direção da queda do silo que já começava a se inclinar. Eu canalizei a mana, erguendo duas paredes de terra nas laterais da vala, eu teria que ser rápido se eu atrasasse apenas um segundo o pó de grão iria se espalhar com a força do impacto, então eu teria que selar igual se fecha a tampa de um bau, so que enorme, e feito de terra. o silo despencou no canal, e eu derrubei as paredes de terra por cima, o impacto levantou uma nuvem de poeira, mas eu podia sentir a terra, havia dado certo!
respirei fundo e me aproximei de Eldrik, apesar da alta resistência fogo… ele não era imune
— Você está queimado. — disse.
— Foi pouca coisa. — respondeu. — Ainda não acabou.
Voltamos as ruas, mas por sorte, não encontramos outros problemas graves como o do armazém passamos algumas boas horas ajudando nos resgates, quando finalmente decidimos voltar para o castelo.
Quando voltamos ao pátio, outro tipo de grito ecoava, não era mais de dor, mas que pareciam.. exigências?
E, mesmo em meio a tudo isso, todo o caos, as familias nobres estavam em pânico. Gritando para os guardas ordens desconexas.
Ricos demais para ajudar. Ricos demais para correr com propósito. Mas não ricos o suficiente para manter dignidade diante do medo.
— Aedin. — ouvi a voz antes de vê-la.
Melissa.
Ela caminhava pelo salão, os passos firmes. Havia poeira na barra do vestido, mas ela não parava. Estava com o queixo erguido, olhos frios e decididos. Era a rainha que Cervalhion lembrava, e que eu pensei ter perdido.
— Os lordes já saíram para ajudar na cidade, reunimos as familias na ala oeste — ela disse. — Estão em desespero. Estão fazendo perguntas que não fazem sentido. Estão atrapalhando.
Eu respirei fundo.
— Deixe comigo. — falei.
— Não. — ela colocou a mão no meu braço. — Você precisa estar nos resgates. As pessoas vão viver ou morrer dependendo do que você fizer agora. Com os nobres… esses eu resolvo.
Ela disse com uma calma que parecia aço.
Eu apenas olhei para ela.
A mulher que ontem mal conseguia segurar um livro sem tremer…
Agora caminhava diretamente para uma sala cheia de homens que, se deixados sozinhos, deixariam a cidade ruir.
Eu assenti.
Ela segurou meu pulso, apertou. Não foi carinho. Foi força.
— Aedin. Respire. Você sabe o que fazer.
E então ela se virou, e desapareceu pelo corredor, a postura majestosa como quando éramos jovens e o mundo parecia claro, possível, compartilhado.
Eu senti Eldric ao meu lado.
— Ela voltou. — ele murmurou.
— Sim. — respondi, sem conseguir esconder a emoção. — E nós também.
O resto do dia foi resgate.
Servos, ferreiros, camponeses, soldados. Uns vivos. Outros… já não.
Encontramos uma menina de doze anos presa sob o terraço sul. Quando tiramos a pedra, ela não respirava.
A mãe dela gritou até a voz acabar.
Quando a noite finalmente caiu, Eldric estava coberto de poeira e sangue. Eu também. Melissa estava apoiada contra uma coluna, exausta, mas firme.
Eu olhei ao redor:
feridos sendo tratados, corpos cobertos, paredes reforçadas, fogo contido. A cidade estava viva..
Ferida, mas viva.
Nos sentamos na escadaria da entrada do castelo, meu corpo pesado, é duro perceber o efeito do tempo começando a te afetar. respirei fundo quando ouvi uma pequena comoção entre os guardas na entrada no jardim, quando olhei com atenção entendi o que era, era a Guardiã enviada por Elandor, desde a sua chegada em Cervalhion havia a cumprimentado apenas uma vez. sinalizei para os guardas abrissem passagem, e ela se aproximou, devia ter a idade de Eldrik, mas já possuía uma força impressionante. Ela parou na nossa frente e fez uma reverencia.
— Majestade, Príncipe — ela levantou a cabeça — É bom ver que estão bem.
— Digo o mesmo — Eldrik respondeu tirando a sua manopla.
A Guardião estava parecendo que acabara de sair de um campo de batalha seus cabelos negros estavam amarrotados com fuligem e terra, suas mãos estavam sujas de sangue e lama e sua mana estava instável, provavelmente por causa do efeito coice, mas o que eu poderia dizer eu não estava muito melhor, devia esta parecendo um camponês novamente.
— É bom ver que esta bem Guardiã…
A Guardiã voltou a postura ereta mas ainda estava ofegando.
— Houve perdas no distrito oeste. — disse direto, sem rodeios. — As casas próximas ao portão cederam com o impacto.
Melissa fechou a mão na própria saia. Eldric ficou imóvel.
Eu apenas respirei.
— Quantas casas? — perguntei.
— Não tenho certeza acredito que trinta. — Ela engoliu seco. — E… parte da comitiva de Elandor que estava hospedada lá foi atingida pelo desabamento. Três morreram. Mais quatro estão desaparecidos. Os demais estão ajudando nos resgates.
O silêncio que se seguiu não foi vazio.
Foi pesado.
O tipo de silêncio que fica preso no peito.
Ela então ergueu o olhar para mim não como súdita, mas como representante de outra força, outra nação que havia confiado em Cervalhion.
— Rei Aedin… — sua voz falhou apenas uma vez — …o que quer que tenha sido essa onda de mana… veio de dentro do seu território.
A pergunta que viria a seguir foi fácil de deduzir.
— Vocês sabiam disso?
Ela não perguntou com acusação. Também não perguntou com medo.
Eu a encarei.
Sem desviar.
Sem tentar enfeitar.
— Não. — falei. — Não sabíamos.
Minha voz saiu baixa, firme.
— Mas vou descobrir. E quando descobrir, ninguém será deixado no escuro. Nem seu povo. Nem o meu.
A Guardiã fechou os olhos apenas por um instante como alguém que precisava ouvir aquilo para manter-se de pé.
Eu gesticulei para o degrau ao nosso lado.
— Sente-se. Você está com coice de mana.
Ela abriu a boca para recusar mas foi interrompida.
Melissa colocou a mão no ombro dela, suave, mas incontestável.
— Foi uma ordem. — disse.
A Guardiã deu um sorrio curto e se sentou.
Eldric chamou um curandeiro e começou a examinar superficialmente as queimaduras.
Eu olhei para o horizonte da cidade se é que ainda podia chamar de horizonte.
Fumaça, poeira, telhados partidos, postes tombados, ruas que agora eram corredores de lama e sangue.
Do pátio, não tínhamos visão do lado oeste, mas dava para ver as zonas mais atingidas do lado leste da cidade.
O mercado interno estava escurecido por fuligem. mas intacto
A praça das caravanas cheia de barracas derrubadas e fogueiras acesas improvisadas.
As torres de vigia ainda estavam de pé mas uma delas inclinada.
Eu teria muitos problemas para resolver nos próximos dias..

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