Capítulo 93 - "A Semente"
O grande salão ficou grande demais quando as portas se fecharam atrás da comitiva de Altheria e os guardas foram dispensados por Melissa.
Aedin respirou fundo, mas o ar parecia mais pesado do que minutos antes.
Melissa aproximou-se primeiro, quieta como sempre.
— Aedin — começou ela, com aquela voz medida. — Não foi prudente provocá-lo.
Aedin girou o cálice quebrado na mão. Uma linha fina de vinho escorreu pelo metal partido.
— Não provoquei. — respondeu curto.
Melissa arqueou uma sobrancelha, um gesto que nele irritava mais do que qualquer ataque.
— Então o que foi aquilo? Aedin… o Guardião poderia ter congelado este salão inteiro sem se levantar da cadeira. — disse ela. — E você ainda pediu um duelo.
Eldrik se aproximou devagar.
— Pai… ele estava falando sério.
— Eu sei que estava falando sério, Eldrik.
Aedin passou a mão pelos cabelos num gesto que só fazia quando estava realmente frustrado.
— Ele não é rei. Não responde a ninguém. Eu só queria sondá-lo… — Aedin olhou para o filho, mais calmo, mas com um olhar preocupado. — Ele fala como se estivesse acima de tudo.
— E ele está, Pai. — Eldrik retrucou, sem arrogância, apenas fato. — Você ouviu sobre os feitos dele nas vilas.
Aedin fechou o cálice com força até finalmente largá-lo sobre a mesa.
Melissa cruzou os braços.
— O povo já gosta dele. Os relatos do Norte estão se espalhando. Ele virou quase um mito, Aedin.
Se quiser manter o controle político… precisa tratá-lo como aliado, não como rival.
Aedin apertou a mandíbula.
— Então vocês acham que eu deveria dar um passe livre para o Guardião do Norte?
— Ninguém disse isso — Eldrik rebateu. — Mas… talvez parar de tentar medir quem é mais forte seja um começo.
Silêncio.
Aedin suspirou, olhando para a porta.
— Eldrik, avise Dan e os usuários de Ordo para retornarem ao palácio.
Se algo ocorrer, é melhor que estejamos prontos.
Eldrik fez uma saudação militar e saiu da sala do trono.
— Vou aproveitar e já encontrar um bom lugar para montarmos a arena. Se o Guardião ou a discípula dele realmente participarem… é melhor que seja fora da cidade. — Melissa falou, respirando fundo.
— Faça isso, minha rainha. — Aedin respondeu, a voz mais baixa. — Eu vou ficar um pouco aqui para pensar.
O sol da tarde já estava alto quando Aedin deixou a sala do trono. Caminhou pelos corredores com passos rápidos, até encontrar Marta, a chefe das serviçais, coordenando três ajudantes no hall lateral.
Ela virou-se imediatamente ao vê-lo.
— Majestade — disse, fazendo uma reverência curta, sem perder o ritmo. Era prática, eficiente. — Imagino que veio pelos preparativos da reunião.
Aedin massageou a testa com dois dedos.
O dia mal começara e já estava sendo longo demais.
— Sim. Precisamos garantir que nada saia errado. — Ele respirou fundo. — Marta, quero o salão oeste preparado para receber três delegações. Mesa reforçada, tapetes novos e mantimentos suficientes para dois dias de festividades.
Ela assentiu, já mentalmente anotando tudo.
— E quanto aos aposentos? — perguntou.
— O quarto de hóspedes de alto nível será para o rei de Varyn. — Aedin respondeu sem hesitar. — Os restantes… escolha os que tiverem melhor visibilidade para as muralhas. Quero todos confortáveis, mas não cegos ao que acontece lá fora.
Marta fez um pequeno sorriso, discreto.
— Uma forma educada de lembrá-los que este ainda é o seu reino.
Aedin não sorriu de volta. Apenas moveu o queixo em afirmação.
— Também preciso de guardas à paisana nos corredores principais. Nada ostensivo. Apenas olhos atentos. — Ele olhou ao redor, como se a própria fortaleza estivesse ouvindo. — Depois do que aconteceu de manhã… não quero surpresas.
Marta suavizou o tom.
— A cidade está inquieta, Majestade. O povo ouviu histórias do Guardião. Alguns estão animados. Outros… assustados.
Aedin fechou a expressão.
— Histórias crescem rápido demais. — Ele desviou o olhar para uma das janelas. A luz alaranjada do fim da tarde começava a tingir o pátio. — Garanta que as cozinhas trabalhem dobrado. Quero fartura e ordem. Nada de improviso.
— Sim, senhor. — Marta respondeu. — E… o senhor gostaria de algo para si? Uma refeição, talvez?
Aedin hesitou.
Cansado. Irritado. Pensando demais.
— Aceito. Vou aproveitar para definir o que vai ser servido.
Marta inclinou a cabeça.
— Para a cozinha, então. — A voz dela era baixa, cuidadosa. — Majestade… o senhor parece… carregado hoje.
Aedin parou. Mas não se virou.
— Estou. — disse seco. — E temo que amanhã será pior.
A tarde passou antes que Aedin se desse conta, mas foi proveitosa: acertara todos os detalhes do que seria servido.
Ele seguiu pelo corredor, e sua sombra se alongou pela pedra à medida que o sol descia.
Quando chegou à entrada da sala do trono, a luz do pôr do sol alcançava exatamente o centro do salão, banhando o trono com um dourado irregular.
Um presságio ou uma provocação — difícil saber.
Aedin inspirou lentamente e entrou.
A sala estava vazia.
Pelo menos… por enquanto.
O Andarilho não tardaria a fazer sua entrada. Aedin passou pelos guardas e fechou as portas do salão. Mas, antes mesmo de começar a caminhar em direção ao trono, ele ouviu:
toc… toc… toc…
O som alto e claro de uma bengala, vindo de trás do trono, seguido pela voz:
— Majestade. — a voz do Andarilho veio suave, envolta em paciência. — Parece que está precisando dormir hoje, não é?
Aedin não se virou.
— Você poderia simplesmente entrar pela porta, Andarilho.
— E desperdiçar o único talento que tenho?
Ele surgiu atrás de uma coluna, a bengala arrastando como se precisasse dela apenas para lembrar o corpo de continuar andando. Um velho curvado, túnica cinza, bengala gasta.
— Ser discreto é… eficiente.
Aedin caminhou até a escadaria do trono e se sentou. O cansaço era nítido.
— Relatórios.
O Andarilho inclinou a cabeça, como quem hesita antes de apresentar algo delicado.
— Sobre?
— …Os nobres primeiro.
— Sem muitas novidades. Todos parecem preocupados por motivos diferentes, mas nada que valha sua intenção.
— E sobre o Guardião? — Aedin falou ajeitando a postura de forma inconsciente.
— Sobre o Guardião do Norte… — começou devagar. — Há pequenas… inconsistências nesse tal “Guardião”, mas ele parece ter se dado bem com a rainha, certo?
Aedin fechou o punho.
— O que está insinuando?
— Eu? Insinuando? — o velho abriu um sorriso leve, quase ofendido. — Só estou dizendo o que observo. Ele chegou, cumprimentou, sorriu… mas seus olhos, Majestade. Sempre observando. Sempre medindo.
Aedin desviou o olhar.
— Ian não é meu inimigo.
— Eu jamais sugeri isso. — o Andarilho ergueu a mão. — Só digo que… pessoas isoladas por muito tempo criam seus próprios códigos. E eles não necessariamente convergem com os do reino.
Aedin apertou os dentes.
— Ele salvou nossos vilarejos ao norte. Derrotou bestas que nós levaríamos semanas para repelir. E você mesmo falou que ele não parece saber nada sobre o dragão.
— Feitos incríveis. — o velho concordou com um suspiro. — Mas Aedin… você cresceu sendo treinado para notar ameaças. Para enxergar além do óbvio.
Ele deu um passo à frente.
— Não reconheceu o olhar de uma besta enjaulada, mesmo olhando de perto?
O golpe foi cirúrgico.
Seco.
Cruel.
Aedin ergueu os olhos devagar, como um animal que detecta provocação.
— Cuidado com o que diz.
O Andarilho sorriu, quase paternal.
— Só estou dizendo: nenhum homem tão poderoso e que viveu por tanto tempo permanece… obediente para sempre. Às vezes a lealdade parece zelo. Às vezes parece… vigilância.
Aedin ficou em silêncio.
Não acreditava. Ian parecia humano demais para ser uma ameaça desse porte.
Mas algo, lá no fundo, começou a se perguntar:
E se…?
O velho se afastou um passo, satisfeito.
— Eu apenas observo, Majestade. E compartilho o que vejo. O que faz com isso… não cabe a mim. Afinal, o meu rei — e o rei de Cervalhion — é você.
E, como veio, sumiu nas sombras.
Aedin ficou nos degraus do trono até o dia virar noite.
Quando finalmente se levantou, o cansaço o dominou.
Nos corredores iluminados por tochas, caminhou devagar até seu quarto. Empurrou a porta, apagou as velas… e deitou-se no tapete.
Essa noite, ele precisava de um lugar mais estável.
O cansaço mental venceu.
Aedin estava exausto demais para perceber quando apagou.
A sala do trono de Cervalhion estava à sua frente.
Vazia.
Fria.
Mas não silenciosa.
Havia algo respirando junto com as sombras.
Aedin estava sentado no trono, porém não sentia o peso da coroa. Sentia apenas o frio pulsante das correntes de luz azul que prendiam seus pulsos aos braços da cadeira.
A mesma magia da corte.
A mesma cor.
A mesma sensação do dia em que revelaram seu sangue real.
Elas vibravam, vivas, como serpentes de luz apertando suas veias.
— Não… — Aedin sussurrou, tentando puxar as mãos. Quanto mais força fazia, mais as correntes respondiam apertando, afundando na pele como garras de ferro quente.
Um passo ecoou sobre o mármore.
Outro.
E então a figura atravessou o vazio, caminhando como quem visita um jardim.
Tulius Valcor.
Vivo.
Inteiro.
Carregando a mesma presença que dominava um salão sem levantar a voz.
Aedin sentiu o estômago afundar. Era exatamente como lembrava — só que pior.
— Você achou que podia escapar disso? — Tulius perguntou, aproximando-se com a calma de quem já sabe a resposta. — Sangue é destino, garoto.
Aedin rosnou contra as correntes, a dor queimando intenso demais para ser sonho.
— Eu não sou você.
Tulius sorriu.
Aquele sorriso.
O mesmo sorriso que vinha antes do corte, antes da humilhação, antes do sermão que arruinava semanas de esforço — e vidas — por mera diversão.
— Não ainda.
Ele estalou os dedos.
As correntes tremeram.
E Aedin viu, refletido na luz azul, sua própria imagem distorcida:
Ele mesmo sentado no trono.
Olhos duros.
Rosto marcado.
Mãos cobertas de sangue seco.
E atrás dele, Tulius com a mão pousada em seu ombro, como um pai orgulhoso do monstro que criou.
Aedin sentiu o peito travar.
— Eu não vou repetir o seu caminho — disse, cuspindo as palavras como se fossem ácido.
Tulius inclinou-se até quase encostar suas testas.
O hálito dele era frio como gelo de túmulo.
— A questão não é querer, Aedin… — sua voz virou um sussurro que parecia vir de dentro da cabeça do próprio rei. — A questão é se você consegue proteger alguma coisa sem se tornar igual a mim.
Aedin tentou retrucar. Tentar qualquer coisa.
Mas o chão se abriu.
Ele caiu.
O mundo virou fumaça.
E quando seus pés tocaram algo sólido—
Era ele aos dezesseis anos.
Uniforme simples, joelhos tremendo, rosto jovem demais para tanto medo.
Dentro do círculo dos magos.
Aedin adulto viu a cena de fora.
Mas também de dentro.
Era como engolir duas memórias ao mesmo tempo, sem conseguir respirar.
Os magos murmuravam ao redor:
— I-isso é impossível…
— Um filho da realeza…
— Bastardo útil…
— Que desperdício…
Aedin jovem gritava quando as luzes do ritual apertavam.
Aedin adulto também gritava, embora sua boca não mexesse.
A magia não apenas pressionava.
Ela arrancava.
Puxava pedaços de lembranças, rasgava memórias que ele nunca quis revisitar, torcia sentimentos até o ponto de ruptura.
— PAREM! — a voz dele saiu duplicada, triplicada, ecoando como se estivesse presa entre paredes invisíveis.
Os magos olharam para ele, todos com o rosto de Tulius.
Aedin tentou correr.
Mas o círculo se fechou sobre ambos como mandíbulas.
Um clarão.
Um estalo seco.
E silêncio.
Ele despertou.
Estava deitado na cama do palácio.
Respiração pesada, suor descendo pelo pescoço.
A vela mais próxima queimada até a metade.
O ar denso demais.
Ele passou a mão no rosto.
O cheiro de terra molhada, do ritual, do salão, do túmulo de Tulius, ainda agarrado à garganta.
— Merda… — sussurrou. — Justo quando achei que estava bem… vou ter qu—
Foi então que algo cortou seu pensamento.
Ele percebeu.
Não estava sozinho.
A sombra junto à porta se moveu um segundo antes de acertá-lo com um soco violento no lado do rosto.
Aedin caiu de joelhos, o gosto de sangue subindo à boca.
O golpe foi forte o bastante para romper sua conexão com a mana por alguns instantes.
— Boa noite, Majestade — disse uma voz distorcida.
Ecoava como metal arranhando pedra, sem nenhum tom humano.
Aedin ergueu os olhos.
E o mundo dele implodiu.
Melissa estava caída perto da porta.
De bruços.
Corpo torto, como se tivesse tentado alcançar Aedin antes de cair.
O cabelo espalhado pelo chão.
E os olhos abertos.
Fixos nele.
Como se perguntassem por que ele não chegou a tempo.
Aedin não conseguiu respirar.
— Não… Melis… — O nome não saiu inteiro. Foi um soluço esmagado.
A figura encapuzada arrastava algo pesado no chão, deixando um rastro úmido sobre as tábuas.
Algo rolou.
Aedin reconheceu o cabelo antes de reconhecer o rosto.
A cabeça de Eldrik.
O mundo dele se partiu exatamente ao meio.
Tentou gritar.
Nada saiu.
Tentou levantar.
As pernas não responderam.
Nem os braços.
Nem a voz.
— Por… quê? — conseguiu forçar, rouco, quebrado, quase inaudível.
A figura parou.
Ergueu o capuz.
Ian.
O Guardião do Norte.
Mas não o Ian que ele conhecia.
Esse tinha olhos vazios e um sorriso quebrado demais para ser humano.
— Porque ele era fraco — disse Ian, levantando a cabeça de Eldrik como um troféu de caça. — E você já sabia disso.
Aedin sentiu os ossos tremerem.
Ian deu um passo à frente.
— E você também não é.
O chão sumiu novamente.
Aedin acordou pela segunda vez, agora no tapete.
As velas apagadas.
A escuridão total.
O ar frio.
O coração martelando tão forte que fazia seu peito doer.
Por alguns segundos, permaneceu parado, tremendo, tentando entender se ainda estava preso em alguma camada do sonho.
— Eldrik… — murmurou, sem voz.
Levantou-se e cambaleou até a porta.
Abriu-a num tranco que ecoou pelo corredor.
Correu.
E, ao abrir a porta do quarto do filho—
Eldrik despertou assustado, sentado na cama.
— P-pai?
Aedin não conseguiu falar de imediato.
O corpo dele simplesmente… cedeu.
Exausto.
Aliviado.
Devastado.
— Oi, filho… — disse, quase num sussurro.
— O que foi? Você está bem?
— Sim. — Aedin engoliu seco. — Pode voltar a dormir.
Ele fechou a porta com cuidado.
Encostou a testa contra a madeira.
E ficou ali, imóvel, deixando o tremor passar.
Respirou fundo. Uma, duas vezes.
Recobrou a postura.
Mas a pergunta ficou presa como espinho atrás da mente:
— O que foi isso?..

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