Índice de Capítulo

    O grande salão ficou grande demais quando as portas se fecharam atrás da comitiva de Altheria e os guardas foram dispensados por Melissa.
    Aedin respirou fundo, mas o ar parecia mais pesado do que minutos antes.

    Melissa aproximou-se primeiro, quieta como sempre.

    — Aedin — começou ela, com aquela voz medida. — Não foi prudente provocá-lo.

    Aedin girou o cálice quebrado na mão. Uma linha fina de vinho escorreu pelo metal partido.

    — Não provoquei. — respondeu curto.

    Melissa arqueou uma sobrancelha, um gesto que nele irritava mais do que qualquer ataque.

    — Então o que foi aquilo? Aedin… o Guardião poderia ter congelado este salão inteiro sem se levantar da cadeira. — disse ela. — E você ainda pediu um duelo.

    Eldrik se aproximou devagar.

    — Pai… ele estava falando sério.

    — Eu sei que estava falando sério, Eldrik.

    Aedin passou a mão pelos cabelos num gesto que só fazia quando estava realmente frustrado.

    — Ele não é rei. Não responde a ninguém. Eu só queria sondá-lo… — Aedin olhou para o filho, mais calmo, mas com um olhar preocupado. — Ele fala como se estivesse acima de tudo.

    — E ele está, Pai. — Eldrik retrucou, sem arrogância, apenas fato. — Você ouviu sobre os feitos dele nas vilas.

    Aedin fechou o cálice com força até finalmente largá-lo sobre a mesa.

    Melissa cruzou os braços.

    — O povo já gosta dele. Os relatos do Norte estão se espalhando. Ele virou quase um mito, Aedin.
    Se quiser manter o controle político… precisa tratá-lo como aliado, não como rival.

    Aedin apertou a mandíbula.

    — Então vocês acham que eu deveria dar um passe livre para o Guardião do Norte?

    — Ninguém disse isso — Eldrik rebateu. — Mas… talvez parar de tentar medir quem é mais forte seja um começo.

    Silêncio.

    Aedin suspirou, olhando para a porta.

    — Eldrik, avise Dan e os usuários de Ordo para retornarem ao palácio.
    Se algo ocorrer, é melhor que estejamos prontos.

    Eldrik fez uma saudação militar e saiu da sala do trono.

    — Vou aproveitar e já encontrar um bom lugar para montarmos a arena. Se o Guardião ou a discípula dele realmente participarem… é melhor que seja fora da cidade. — Melissa falou, respirando fundo.

    — Faça isso, minha rainha. — Aedin respondeu, a voz mais baixa. — Eu vou ficar um pouco aqui para pensar.


    O sol da tarde já estava alto quando Aedin deixou a sala do trono. Caminhou pelos corredores com passos rápidos, até encontrar Marta, a chefe das serviçais, coordenando três ajudantes no hall lateral.

    Ela virou-se imediatamente ao vê-lo.

    — Majestade — disse, fazendo uma reverência curta, sem perder o ritmo. Era prática, eficiente. — Imagino que veio pelos preparativos da reunião.

    Aedin massageou a testa com dois dedos.
    O dia mal começara e já estava sendo longo demais.

    — Sim. Precisamos garantir que nada saia errado. — Ele respirou fundo. — Marta, quero o salão oeste preparado para receber três delegações. Mesa reforçada, tapetes novos e mantimentos suficientes para dois dias de festividades.

    Ela assentiu, já mentalmente anotando tudo.

    — E quanto aos aposentos? — perguntou.

    — O quarto de hóspedes de alto nível será para o rei de Varyn. — Aedin respondeu sem hesitar. — Os restantes… escolha os que tiverem melhor visibilidade para as muralhas. Quero todos confortáveis, mas não cegos ao que acontece lá fora.

    Marta fez um pequeno sorriso, discreto.

    — Uma forma educada de lembrá-los que este ainda é o seu reino.

    Aedin não sorriu de volta. Apenas moveu o queixo em afirmação.

    — Também preciso de guardas à paisana nos corredores principais. Nada ostensivo. Apenas olhos atentos. — Ele olhou ao redor, como se a própria fortaleza estivesse ouvindo. — Depois do que aconteceu de manhã… não quero surpresas.

    Marta suavizou o tom.

    — A cidade está inquieta, Majestade. O povo ouviu histórias do Guardião. Alguns estão animados. Outros… assustados.

    Aedin fechou a expressão.

    — Histórias crescem rápido demais. — Ele desviou o olhar para uma das janelas. A luz alaranjada do fim da tarde começava a tingir o pátio. — Garanta que as cozinhas trabalhem dobrado. Quero fartura e ordem. Nada de improviso.

    — Sim, senhor. — Marta respondeu. — E… o senhor gostaria de algo para si? Uma refeição, talvez?

    Aedin hesitou.

    Cansado. Irritado. Pensando demais.

    — Aceito. Vou aproveitar para definir o que vai ser servido.

    Marta inclinou a cabeça.

    — Para a cozinha, então. — A voz dela era baixa, cuidadosa. — Majestade… o senhor parece… carregado hoje.

    Aedin parou. Mas não se virou.

    — Estou. — disse seco. — E temo que amanhã será pior.

    A tarde passou antes que Aedin se desse conta, mas foi proveitosa: acertara todos os detalhes do que seria servido.

    Ele seguiu pelo corredor, e sua sombra se alongou pela pedra à medida que o sol descia.

    Quando chegou à entrada da sala do trono, a luz do pôr do sol alcançava exatamente o centro do salão, banhando o trono com um dourado irregular.

    Um presságio ou uma provocação — difícil saber.

    Aedin inspirou lentamente e entrou.

    A sala estava vazia.

    Pelo menos… por enquanto.

    O Andarilho não tardaria a fazer sua entrada. Aedin passou pelos guardas e fechou as portas do salão. Mas, antes mesmo de começar a caminhar em direção ao trono, ele ouviu:

    toc… toc… toc…

    O som alto e claro de uma bengala, vindo de trás do trono, seguido pela voz:

    — Majestade. — a voz do Andarilho veio suave, envolta em paciência. — Parece que está precisando dormir hoje, não é?

    Aedin não se virou.

    — Você poderia simplesmente entrar pela porta, Andarilho.

    — E desperdiçar o único talento que tenho?

    Ele surgiu atrás de uma coluna, a bengala arrastando como se precisasse dela apenas para lembrar o corpo de continuar andando. Um velho curvado, túnica cinza, bengala gasta.

    — Ser discreto é… eficiente.

    Aedin caminhou até a escadaria do trono e se sentou. O cansaço era nítido.

    — Relatórios.

    O Andarilho inclinou a cabeça, como quem hesita antes de apresentar algo delicado.

    — Sobre?

    — …Os nobres primeiro.

    — Sem muitas novidades. Todos parecem preocupados por motivos diferentes, mas nada que valha sua intenção.

    — E sobre o Guardião? — Aedin falou ajeitando a postura de forma inconsciente.

    — Sobre o Guardião do Norte… — começou devagar. — Há pequenas… inconsistências nesse tal “Guardião”, mas ele parece ter se dado bem com a rainha, certo?

    Aedin fechou o punho.

    — O que está insinuando?

    — Eu? Insinuando? — o velho abriu um sorriso leve, quase ofendido. — Só estou dizendo o que observo. Ele chegou, cumprimentou, sorriu… mas seus olhos, Majestade. Sempre observando. Sempre medindo.

    Aedin desviou o olhar.

    — Ian não é meu inimigo.

    — Eu jamais sugeri isso. — o Andarilho ergueu a mão. — Só digo que… pessoas isoladas por muito tempo criam seus próprios códigos. E eles não necessariamente convergem com os do reino.

    Aedin apertou os dentes.

    — Ele salvou nossos vilarejos ao norte. Derrotou bestas que nós levaríamos semanas para repelir. E você mesmo falou que ele não parece saber nada sobre o dragão.

    — Feitos incríveis. — o velho concordou com um suspiro. — Mas Aedin… você cresceu sendo treinado para notar ameaças. Para enxergar além do óbvio.

    Ele deu um passo à frente.

    — Não reconheceu o olhar de uma besta enjaulada, mesmo olhando de perto?

    O golpe foi cirúrgico.
    Seco.
    Cruel.

    Aedin ergueu os olhos devagar, como um animal que detecta provocação.

    — Cuidado com o que diz.

    O Andarilho sorriu, quase paternal.

    — Só estou dizendo: nenhum homem tão poderoso e que viveu por tanto tempo permanece… obediente para sempre. Às vezes a lealdade parece zelo. Às vezes parece… vigilância.

    Aedin ficou em silêncio.
    Não acreditava. Ian parecia humano demais para ser uma ameaça desse porte.
    Mas algo, lá no fundo, começou a se perguntar:

    E se…?

    O velho se afastou um passo, satisfeito.

    — Eu apenas observo, Majestade. E compartilho o que vejo. O que faz com isso… não cabe a mim. Afinal, o meu rei — e o rei de Cervalhion — é você.

    E, como veio, sumiu nas sombras.

    Aedin ficou nos degraus do trono até o dia virar noite.
    Quando finalmente se levantou, o cansaço o dominou.

    Nos corredores iluminados por tochas, caminhou devagar até seu quarto. Empurrou a porta, apagou as velas… e deitou-se no tapete.
    Essa noite, ele precisava de um lugar mais estável.

    O cansaço mental venceu.

    Aedin estava exausto demais para perceber quando apagou.


    A sala do trono de Cervalhion estava à sua frente.

    Vazia.

    Fria.

    Mas não silenciosa.
    Havia algo respirando junto com as sombras.

    Aedin estava sentado no trono, porém não sentia o peso da coroa. Sentia apenas o frio pulsante das correntes de luz azul que prendiam seus pulsos aos braços da cadeira.

    A mesma magia da corte.
    A mesma cor.
    A mesma sensação do dia em que revelaram seu sangue real.

    Elas vibravam, vivas, como serpentes de luz apertando suas veias.

    — Não… — Aedin sussurrou, tentando puxar as mãos. Quanto mais força fazia, mais as correntes respondiam apertando, afundando na pele como garras de ferro quente.

    Um passo ecoou sobre o mármore.

    Outro.

    E então a figura atravessou o vazio, caminhando como quem visita um jardim.

    Tulius Valcor.

    Vivo.
    Inteiro.
    Carregando a mesma presença que dominava um salão sem levantar a voz.

    Aedin sentiu o estômago afundar. Era exatamente como lembrava — só que pior.

    — Você achou que podia escapar disso? — Tulius perguntou, aproximando-se com a calma de quem já sabe a resposta. — Sangue é destino, garoto.

    Aedin rosnou contra as correntes, a dor queimando intenso demais para ser sonho.

    — Eu não sou você.

    Tulius sorriu.
    Aquele sorriso.
    O mesmo sorriso que vinha antes do corte, antes da humilhação, antes do sermão que arruinava semanas de esforço — e vidas — por mera diversão.

    — Não ainda.

    Ele estalou os dedos.
    As correntes tremeram.
    E Aedin viu, refletido na luz azul, sua própria imagem distorcida:

    Ele mesmo sentado no trono.

    Olhos duros.
    Rosto marcado.
    Mãos cobertas de sangue seco.

    E atrás dele, Tulius com a mão pousada em seu ombro, como um pai orgulhoso do monstro que criou.

    Aedin sentiu o peito travar.

    — Eu não vou repetir o seu caminho — disse, cuspindo as palavras como se fossem ácido.

    Tulius inclinou-se até quase encostar suas testas.
    O hálito dele era frio como gelo de túmulo.

    — A questão não é querer, Aedin… — sua voz virou um sussurro que parecia vir de dentro da cabeça do próprio rei. — A questão é se você consegue proteger alguma coisa sem se tornar igual a mim.

    Aedin tentou retrucar. Tentar qualquer coisa.

    Mas o chão se abriu.

    Ele caiu.
    O mundo virou fumaça.
    E quando seus pés tocaram algo sólido—

    Era ele aos dezesseis anos.

    Uniforme simples, joelhos tremendo, rosto jovem demais para tanto medo.
    Dentro do círculo dos magos.

    Aedin adulto viu a cena de fora.
    Mas também de dentro.
    Era como engolir duas memórias ao mesmo tempo, sem conseguir respirar.

    Os magos murmuravam ao redor:

    — I-isso é impossível…

    — Um filho da realeza…
    — Bastardo útil…
    — Que desperdício…

    Aedin jovem gritava quando as luzes do ritual apertavam.
    Aedin adulto também gritava, embora sua boca não mexesse.

    A magia não apenas pressionava.
    Ela arrancava.
    Puxava pedaços de lembranças, rasgava memórias que ele nunca quis revisitar, torcia sentimentos até o ponto de ruptura.

    — PAREM! — a voz dele saiu duplicada, triplicada, ecoando como se estivesse presa entre paredes invisíveis.

    Os magos olharam para ele, todos com o rosto de Tulius.

    Aedin tentou correr.
    Mas o círculo se fechou sobre ambos como mandíbulas.

    Um clarão.
    Um estalo seco.

    E silêncio.

    Ele despertou.
    Estava deitado na cama do palácio.
    Respiração pesada, suor descendo pelo pescoço.
    A vela mais próxima queimada até a metade.
    O ar denso demais.

    Ele passou a mão no rosto.
    O cheiro de terra molhada, do ritual, do salão, do túmulo de Tulius, ainda agarrado à garganta.

    — Merda… — sussurrou. — Justo quando achei que estava bem… vou ter qu—

    Foi então que algo cortou seu pensamento.

    Ele percebeu.

    Não estava sozinho.

    A sombra junto à porta se moveu um segundo antes de acertá-lo com um soco violento no lado do rosto.

    Aedin caiu de joelhos, o gosto de sangue subindo à boca.
    O golpe foi forte o bastante para romper sua conexão com a mana por alguns instantes.

    — Boa noite, Majestade — disse uma voz distorcida.
    Ecoava como metal arranhando pedra, sem nenhum tom humano.

    Aedin ergueu os olhos.

    E o mundo dele implodiu.

    Melissa estava caída perto da porta.
    De bruços.
    Corpo torto, como se tivesse tentado alcançar Aedin antes de cair.
    O cabelo espalhado pelo chão.

    E os olhos abertos.
    Fixos nele.
    Como se perguntassem por que ele não chegou a tempo.

    Aedin não conseguiu respirar.

    — Não… Melis… — O nome não saiu inteiro. Foi um soluço esmagado.

    A figura encapuzada arrastava algo pesado no chão, deixando um rastro úmido sobre as tábuas.

    Algo rolou.

    Aedin reconheceu o cabelo antes de reconhecer o rosto.

    A cabeça de Eldrik.

    O mundo dele se partiu exatamente ao meio.

    Tentou gritar.
    Nada saiu.
    Tentou levantar.
    As pernas não responderam.
    Nem os braços.
    Nem a voz.

    — Por… quê? — conseguiu forçar, rouco, quebrado, quase inaudível.

    A figura parou.
    Ergueu o capuz.

    Ian.

    O Guardião do Norte.
    Mas não o Ian que ele conhecia.
    Esse tinha olhos vazios e um sorriso quebrado demais para ser humano.

    — Porque ele era fraco — disse Ian, levantando a cabeça de Eldrik como um troféu de caça. — E você já sabia disso.

    Aedin sentiu os ossos tremerem.

    Ian deu um passo à frente.

    — E você também não é.

    O chão sumiu novamente.


    Aedin acordou pela segunda vez, agora no tapete.

    As velas apagadas.
    A escuridão total.
    O ar frio.
    O coração martelando tão forte que fazia seu peito doer.

    Por alguns segundos, permaneceu parado, tremendo, tentando entender se ainda estava preso em alguma camada do sonho.

    — Eldrik… — murmurou, sem voz.

    Levantou-se e cambaleou até a porta.
    Abriu-a num tranco que ecoou pelo corredor.

    Correu.

    E, ao abrir a porta do quarto do filho—

    Eldrik despertou assustado, sentado na cama.

    — P-pai?

    Aedin não conseguiu falar de imediato.
    O corpo dele simplesmente… cedeu.
    Exausto.
    Aliviado.
    Devastado.

    — Oi, filho… — disse, quase num sussurro.

    — O que foi? Você está bem?

    — Sim. — Aedin engoliu seco. — Pode voltar a dormir.

    Ele fechou a porta com cuidado.
    Encostou a testa contra a madeira.
    E ficou ali, imóvel, deixando o tremor passar.

    Respirou fundo. Uma, duas vezes.

    Recobrou a postura.

    Mas a pergunta ficou presa como espinho atrás da mente:

    — O que foi isso?..

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