Índice de Capítulo

    O aroma de pão quente e ervas pairava no salão menor, mas naquela manhã parecia tudo amortecido, como se a mesa tivesse absorvido parte do silêncio acumulado da noite anterior.

    Aedin estava sentado à cabeceira, praticamente imóvel, apoiado nos antebraços. Nem tocara no prato. A vela ao lado dele ainda queimava, curta, como se tivesse sido acesa tarde demais.

    Melissa notou assim que entrou.

    — Bom dia… — disse ela, num tom que mais soava como um teste do terreno.

    Aedin ergueu o olhar devagar.

    — Bom dia.

    Eldrik estava ali desde o início, observando o pai com cautela. A cena de Aedin entrando no quarto no meio da noite desesperado era coisa rara, quase inédita, e o silêncio que veio durante esse café foi ainda mais estranho.

    Melissa sentou-se, serviu-se de chá e então o serviu também. O cheiro da bebida subiu no ar, mas Aedin nem pareceu notar.

    — Dormiu mal? — perguntou ela, com gentileza controlada.

    Aedin respirou fundo pela primeira vez desde que ela entrara.

    — Pesadelos — respondeu, seco.

    Eldrik, que estava quieto, aproveitou a brecha.

    — Por isso o senhor foi ao meu quarto? — perguntou, direto, mas sem agressividade.

    Aedin fechou os olhos por meio segundo.
    Ele não gostava de parecer vulnerável diante dos dois.
    Mas Eldrik merecia a explicação.

    — Sim — disse ele, enfim, abrindo os olhos. — No sonho… achei que você estava em perigo.

    Melissa parou com a jarra na mão.
    Aedin estava com medo? Era raro ele admitir medo, mesmo de forma tão sutil.

    Eldrik franziu a testa.

    — Perigo como?

    Aedin hesitou um instante, medindo palavras, pesando o que valia ser dito.

    — Vi o palácio vazio. E vocês dois… — respirou fundo — não estavam lá.

    Ele não descreveu a cena.
    Não mencionou sangue, nem gritos, nem a imagem distorcida de Ian.
    Mas o modo como a voz dele endureceu falava mais do que qualquer detalhe.

    Melissa pousou a jarra devagar, com mais suavidade do que fazia normalmente.

    — Foi só um sonho, Aedin — disse ela, com firmeza suave.

    — Eu sei — respondeu ele. Mas o “eu sei” não convenceu ninguém na mesa.

    Aedin empurrou o prato um pouco para a frente, mas não comeu.

    — Estou bem. Só… cansado. A reunião dos reinos finalmente está perto de acontecer. Há muito a preparar.

    Eldrik insistiu, preocupado:

    — Pai… se quiser, eu posso assumir algumas das revisões. O senhor não precisa—

    — Não foi trabalho — cortou Aedin, sem irritação, apenas exausto. — Foi só um sonho.

    Silêncio.

    Melissa trocou um olhar com Eldrik, um daqueles olhares que diziam mais do que palavras.
    Ele não está bem…

    Aedin finalmente se levantou.

    — Preciso checar os preparativos com Marta. Depois, passo no Salão Oeste. Você deveria voltar aos treinos, Eldrik.

    Melissa o observou contornar a mesa com passos pesados.
    Ele parecia maior do que nunca e, ainda assim, parecia perturbado.

    — Aedin… — chamou ela, antes que ele saísse.
    Ele virou o rosto só um pouco.
    — Se acontecer de sonhar com isso de novo… me acorde. Não carregue sozinho.

    Os olhos dele suavizaram por um instante.

    — Eu vou, minha rainha — disse.

    E então saiu.

    Melissa soltou o ar, respirando fundo.

    Eldrik mexeu no pão sem fome.

    — Ele pareceu assustado — disse o garoto, quase sussurrando.

    — Ele está… pressionado — corrigiu Melissa, mesmo sabendo que não era só isso. — Mas ele vai se ajustar. Seu pai sempre encontra o centro, só precisa de um tempo.


    Aisha terminou a segunda tigela antes de qualquer um.

    — Caramba… quase esqueci como é comer uma comida assim — disse, limpando a boca com as costas da mão.

    Lys revirou os olhos.

    — Isso porque você nunca foi a uma festa de verdade.

    — E você já foi? — Aisha rebateu.

    Lys abriu um sorriso pequeno.

    — Eu sou a rainha, esqueceu? Ia às que me importavam.

    Ian apoiou os cotovelos na mesa.

    — Se acabaram, vamos pro pátio depois daqui.

    Aisha engasgou no próprio suco.

    — Agora?

    — Antes que alguém resolva se aproximar fazendo perguntas demais — ele respondeu.

    Lys pousou a xícara, calma.

    — Você sabe que tem que ser sociável, certo?

    — Sei — Ian corrigiu. — Só quero alinhar algumas coisas com vocês antes que eu comece a andar pela cidade.

    Lys arqueou a sobrancelha.

    — Por quê? Está preocupado que nós não vamos saber nos cuidar?

    — Não com relação a isso. Mas precisamos ser prudentes — Ian bebeu um gole. — Se você mostra tudo o que pode fazer, Cervalhion vai preparar uma defesa. Afinal, é o mais prudente; eles já devem ter planos de contenção contra mim, e não vai demorar para fazerem um para vocês. Então vocês têm que mostrar um pouco das suas forças, mas só um pouco.

    Lysvallis respirou fundo, com um pequeno brilho de compreensão surgindo.

    — Se não mostrarmos nada… eles vão desconfiar.

    Ian levantou os olhos, concordando.

    — E eu não gosto dessa opção.

    Lys cruzou as pernas.

    — Você realmente enxerga o mundo inteiro como um campo de batalha?

    Ian sequer hesitou.

    — É por isso que eu ainda estou vivo depois de tanto tempo.

    Aisha, que até então só observava, inclinou-se para a frente.

    — Então… por que você falou tanto na arena… durante os duelos? — perguntou. — Gritou, provocou, fez aquele discurso gigante…

    — Porque ali eu não estava sendo eu — Ian respondeu. — Eu estava desempenhando uma função. Criar medo. Desmoralizar.
    Era o que o Guardião precisava ser naquela situação.

    Aisha estreitou os olhos.

    — Mas… então por quê? — perguntou, a voz oscilando levemente. — Por que os desafios? Se você queria amedrontar, por que se dar ao trabalho? Para quê fazer um terceiro desafio? E até a morte?

    A mana oscilou levemente quando Ian respirou fundo.

    — Eu só não queria perder a minha humanidade, Aisha… quando se vive por tanto tempo, e ainda isolado, é difícil se manter são.

    Ian estava calmo quando falava, mas Lys podia ver a mana, conseguia ver Ian a suprimindo e suprimindo as emoções enquanto falava.

    — Eu precisava achar uma nova âncora para minha humanidade, por isso os desafios… e por isso eu nunca matava mais de um.

    — Como assim? — Aisha murmurou.

    — Eu esperava o grupo escolher quem seria o sacrifício. Sempre funciona. Sempre revela quem eles são. Se um grupo escolhe o terceiro desafio contra alguém que não pode vencer, sabendo que alguém do grupo vai morrer… — Ele apoiou o garfo. — … eu não preciso ver mais nada. Já sei quem tenho na frente.

    Lys ficou alguns segundos quieta, absorvendo tudo o que podia.

    — Uma boa estratégia.

    — Funcionou por duzentos anos — Ian respondeu.

    “Duzentos anos…” A frase reverberou na cabeça de Lys. Era fácil esquecer. Ele falava como um homem jovem. Parecia um homem jovem. Mas nada nele era jovem. Nem o peso nos olhos, nem a forma como ele segurava a mana como se ela fosse um animal tentando escapar.

    E ela tinha certeza de uma coisa: aquilo estava cobrando um preço.
    A mana o corroía. O tempo o corroía.
    E Ian insistia em se manter inteiro, mesmo que isso o estivesse matando por dentro.

    Aisha cruzou os braços.

    — Então hoje… a gente só vai treinar?

    — Treinar leve, fingindo pegar pesado — Ian confirmou. — E conversar enquanto isso. Eu preciso entender como Cervalhion pensa.

    Lys deu um leve sorriso.

    — Você fala como se fosse simples.

    — Não é — Ian disse. — Mas eu gosto de desafios.

    Aisha abriu um sorriso.

    — Então vamos logo. Quero tentar de novo a troca de guarda.

    — E quer cair de cara no chão de novo? — Lys lembrou.

    Aisha ficou vermelha.

    — EU ESTAVA QUASE ACERTANDO!

    Ian levantou-se.

    — Por isso vamos treinar — ele olhou para as duas. — E porque, se o rei daqui decidir fazer algo com vocês…
    quero estar perto quando isso acontecer.

    Lys se levantou também, sorrindo.

    — Sempre dramático. Aedin não é do tipo que ataca pelas costas; ele grita ao mundo antes.

    — Melhor estar preparado — Ian respondeu, dando de ombros.

    Aisha levantou por último, empolgada.

    — Então… pátio?

    — Pátio — Ian confirmou.

    — Na verdade… — Lys interrompeu, levantando-se — conheço um lugar melhor.


    O campo de treino ficava na ala leste do palácio, cercado por colunas altas e abertas que deixavam o vento da tarde atravessar o pátio. O chão era de pedras claras, polidas pelo uso, marcado por círculos de combate e suportes de armas. Estátuas de antigos capitães de Cervalhion observavam silenciosas, projetando sombras longas sob o sol amarelado.

    Eldrik treinava sozinho.

    Vestia a roupa típica dos guerreiros do palácio: calças de linho grosso, botas altas, bandagens nos antebraços e uma camisa sem mangas, aberta no peito, revelando o suor e a respiração pesada. O príncipe movia o bastão de madeira com firmeza, golpeando o boneco com vigor.

    Aisha, Lysvallis e Ian o viram antes que ele percebesse.

    Quando Eldrik finalmente percebeu passos, girou o bastão, se virou e, por um instante, congelou.

    Aisha usava uma calça de treino e uma blusa longa simples azul-escuro; Lys, a túnica branca com bordados de flocos de gelo; Ian, por outro lado, vestia algo simples para a expectativa de Eldrik sobre o grande Guardião: calças escuras, botas reforçadas, camisa leve presa por uma faixa na cintura. Tinha as mangas dobradas até os antebraços e uma postura tão relaxada que contrastava com a intensidade nos olhos.

    Seu olhar encontrou o de Lys.

    O tempo entre eles carregava dez anos inteiros.

    — Lysvallis… — disse ele, voz baixa, reverente. Ele limpou o suor com o antebraço, tentando recuperar a postura. — Não… não esperava vê-la aqui.

    Lys hesitou antes de responder, mas a voz saiu tranquila.

    — Só estávamos buscando um local de treino no palácio. Não pretendíamos interrompê-lo.

    Eldrik percebeu então Ian parado alguns passos atrás, observando. Não com ameaça, mas com a calma predatória de alguém que mede tudo. O príncipe endireitou o corpo por reflexo.

    — Lorde Ian — saudou, cauteloso.

    Ian apenas inclinou o queixo, neutro.

    — Continue. Não queremos atrapalhar.

    — Vocês não atrapalham. Se quiserem, podem fazer uso do espaço. Normalmente sou o único que vem aqui nesse horário.

    Aisha avançou com um sorriso educado.

    — Alteza — disse com cortesia impecável. — Espero que não tenhamos interrompido seu treino.

    Eldrik piscou como quem busca por algo na memória.

    — Não, claro. Minha lady… Aisha?!… vi você na sala do trono.

    — É uma honra revê-lo — ela disse.

    A tensão diminuiu um pouco.

    Lys e Eldrik permaneciam presos num silêncio cheio de passado.
    Ian percebeu a situação. E se afastou meio passo, cruzou os braços e ficou observando como se estudasse uma equação viva.

    Aisha notou.
    E tomou a iniciativa.

    — Se não for incômodo… eu adoraria treinar um pouco.

    Eldrik pareceu agradecer internamente por aquilo.

    — Treinar comigo? Tem certeza?

    Aisha sorriu.

    — Confio que saberá ajustar o nível.

    Antes que ele respondesse, Lys interveio.

    — Não pegue leve, Eldrik. Aisha treinou comigo. Ela aguenta mais do que parece.

    Ian e Aisha olharam para Lys com um pouco de confusão…

    O príncipe quase perdeu o ar por um segundo, aquela voz, aquele tom familiar, atingindo memórias que ele tentava manter enterradas.

    — Pois bem — disse, postura adotada. — Sem cortesias.

    Aisha pegou um bastão. Entrou no círculo.

    Eldrik também.

    O ar ficou denso.

    Lys recuou para observar, parando ao lado de Ian.

    Ian inclinou a cabeça para ela, sem tirar os olhos da arena:

    — O que foi aquilo?

    — Eldrik nunca luta de verdade contra damas. Achei que precisava avisá-lo.

    — Mas e o nosso acordo sobre fazer um treino leve? — Ian perguntou, baixo.

    Lys endureceu levemente o rosto.

    — Não me diga que esqueceu… — Ian perguntou, parcialmente incrédulo.

    — Eu… não esque—

    — Que merda, Lys…

    — Eu não esqueci!

    — Então espero que tenha um plano, ou então ore para que Aisha perca sem mostrar tudo e se deixe levar…

    Os golpes começaram.

    Aisha desviando leve. Eldrik avançando com precisão de guerreiro treinado.
    Lys observava com um leve nervosismo transparecendo…
    Ian observava com atenção, vendo exatamente onde Eldrik exagerava força, onde Aisha compensava técnica com agilidade, onde cada um deixava brecha.

    A luta intensificou-se, com Eldrik usando as chamas para ofuscar a visão de Aisha enquanto descia o bastão com precisão, nas mãos de Aisha a desarmando com um movimento limpo.

    — Você é uma boa espadachim.

    Aisha, parecendo sem fôlego mas feliz, recuperou o bastão.

    — É… tenho treinado com quem sabe me forçar a melhorar — ela disse.

    O olhar de Eldrik foi para Lys e para Ian, parando mais tempo em Lys.

    Uma troca silenciosa.

    Aisha viu.
    Ian viu.

    Lys se aproximou.

    — Isso foi… surpreendente — disse ela. — Ambos melhores do que eu esperava.

    — Eu só tentei acompanhar esta jovem — Eldrik murmurou. — É bom ter uma parceira de treino eficiente.

    Aisha respirou fundo, com um sorriso.

    — Que tal amanhã treinarmos de novo? Os três.

    Ela olhou para Ian ao dizer isso.

    Ele não cruzou o olhar, apenas assentiu, curto, eficiente.

    Lys e Eldrik se encararam.

    — Amanhã — disseram juntos.

    Ian deu meio sorriso.

    — Então está decidido — disse ele. — Amanhã, o treino continua.

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