Índice de Capítulo

    Karl terminou de ajustar a fivela da bota quando percebeu que a mãe o observava havia tempo demais.

    — Você apertou errado — Laura disse, aproximando-se. Ajoelhou sem pedir permissão e refez o ajuste com dedos firmes, experientes demais para alguém que “apenas” curava feridos.

    — E desde quando prendo as fivelas errado? — Karl respondeu, contido.

    Ela ergueu o olhar devagar.

    — É exatamente isso que me preocupa. Está distraído.

    O quarto que receberam da família Krosys era simples, funcional. Equipamentos organizados em silêncio. Nada ali lembrava despedida, mas Laura sabia reconhecer o peso escondido nas pequenas pausas.

    — Não confie cegamente no seu treinamento filho — ela continuou. — E essa expedição sob a bandeira Krosys… está errada. Até para eles.

    Karl respirou fundo antes de responder.

    — Eu sei. Mas agora eu tive instrução adequada. Técnica de leitura estrutural, protocolos de recuo, detecção rúnica… — abriu um meio sorriso. — Se eu já era bom antes, imagina agora.

    Ela não sorriu de volta de imediato. Apenas assentiu, como quem aceita uma mentira necessária.

    — Ainda assim — disse — lembre-se: eu estarei lá.

    Karl piscou.

    — Como médica.

    — Como alguém que não pretende enterrar o próprio filho — corrigiu, levantando-se. — Não fui contratada como exploradora, mas sei muito bem o que fazer quando alguém para de respirar.

    O silêncio entre os dois foi quebrado apenas pelo som das correias sendo ajustadas.

    Minutos depois, seguiram juntos para o ponto de encontro.


    O pátio do Jardim inferior de Altheria fervilhava de gente. E ainda assim, o clima era de velório.

    Muitos exploradores se cumprimentavam, enquanto muitas famílias ainda desabrigadas após a explosão, buscavam por uma esmola. Karl avistou Gustav primeiro, encostado em uma pilha de caixas, girando uma lâmina curta entre os dedos como se fosse um truque barato.

    — Olha só — Gustav disse ao vê-lo. — Sobrevivemos ao treinamento. Isso já é estatisticamente impressionante.

    — Não fala isso em voz alta — Karl respondeu. — Ta querendo jogar azar na gente?.

    Dois jovens se aproximaram, reconhecíveis antes mesmo dos rostos.

    — Olha só, os heróis da sobrevivência — disse Renn, batendo no ombro de Gustav com força demais. — Prontos para ficarem famosos?

    — Já estou ensaiando a pose — Gustav respondeu, girando a lâmina entre os dedos. — “Responsável pelo sucesso da incursão”. Soa bem em placas de taverna.

    O riso veio fácil. Alto demais.

    Ivar, ajeitava as correias do peitoral pela terceira vez seguida, mesmo já estando firmes.

    — Se isso der certo… a gente nunca mais entra numa ruína sem contrato vitalício. — comentou.

    — Desde que o meu nome não apareça numa lista de mortos — Karl disse, sem tirar os olhos do movimento no pátio.

    Ivar abriu um sorriso rápido, tenso.

    — Detalhes.

    Renn cruzou os braços, olhando para a entrada da ruína ao longe.

    — Lembram quando quase matamos aquele instrutor na câmara de pressão? — disse. — Se passamos por aquilo, passamos por qualquer coisa.

    — Aquilo foi simulação — Karl respondeu. — Isso aqui não é.

    O silêncio durou um segundo a mais do que o confortável.

    Gustav quebrou primeiro.

    — Ei, olha o lado bom — disse. — Se morrermos, pelo menos morremos juntos. Isso cria laço.

    Renn riu, rápido demais.

    — No caso não seria finaliza um?!

    Ivar assentiu, engolindo em seco.

    — se tudo der certo… — completou — daqui a alguns meses a gente ri disso numa mesa quente, com vinho caro.

    Ninguém respondeu de imediato.

    Karl observou os três. Sabia exatamente quando aquela amizade tinha nascido: noites mal dormidas, exercícios até a exaustão, pequenas ajudas silenciosas quando os instrutores viravam as costas.

    Os exploradores mais velhos falavam pouco. Ajustavam equipamentos com precisão quase ritualística. Alguns evitavam olhar para o grupo da Broca, jovens demais, muitos da periferia, carregando o peso de uma função que ninguém queria nomear como descartável.

    A Broca iria primeiro. Sempre.

    — Vamos sobreviver — ele disse por fim. — Não por fama. Nem por contrato. Só vamos nos proteger.

    Karl não fazia parte deles. Seu desempenho o colocara entre os Ratos, o grupo de vinte exploradores que seguia atrás, verificando falhas, garantindo que as armadilhas realmente haviam sido neutralizadas.

    Era uma honra. E um fardo diferente.

    O burburinho cessou quando Malrik subiu no palanque improvisado.

    Ele não sorriu. Não abriu os braços.

    — Vocês sabem por que estão aqui, não pretendo fazer um discurso, se quiserem ouvir um discurso meu… sobrevivam as ruinas — disse, a voz seca. — Encontramos uma passagem de ruína próxima à superfície. Bem preservada para o conforto de qualquer um com cérebro.

    Alguns riram, nervosos.

    — Não tenham medo — continuou. — Mas não sejam imprudentes. E quem erra aqui, morre. Simples assim. Se alguém cair, estará mostrando o caminho para os que estão atrás, e aos que estão atrás não deixem seus companheiros morrerem em vão!

    Malrik desceu sem aplausos.

    Os exploradores começaram a se organizar em suas equipes. E então partiram.

    A entrada da ruína era um rasgo de pedra oculto entre estruturas antigas. O ar lá dentro era frio, parado. Não cheirava a mofo.

    A equipe Broca avançou primeiro, atentos às paredes, ao chão, às runas visíveis. Tudo parecia… comum demais.

    — Estranho — murmurou um deles que estava na dianteira. — Quase nenhum desgaste.

    Runas ainda nítidas. Mecanismos sem ferrugem. Madeira intacta.

    — Talvez nunca tenham sido ativadas — alguém sugeriu.

    O túnel se expandia à medida que avançavam, paredes de pedra antiga ainda marcadas por sulcos rituais. Não eram rachaduras do tempo, Pareciam marcas deixadas às pressas, mãos diferentes, recursos escassos. Conforme avançavam começaram a encontrar alguns itens quebrados, o que devia ser parte de potes de cerâmica, e resto de ossos.

    Eles avançavam atentos.

    Eles procuravam armadilhas, como sempre. Lâminas laterais. Placas de pressão com disparos frontais. Pressão de entrada.

    Até que o primeiro passo acionou o mecanismo.

    Um estalo seco ecoou no teto.

    O explorador reagiu seguindo o treinamento e recuou.

    As lanças desceram onde ele estava um instante antes.

    E então o chão atrás dele explodiu.

    Estilhaços de pedra e metal atravessaram o ar num cone brutal. Não houve grito completo. Apenas impacto, um som oco, e o corpo lançado contra a parede.

    Silêncio.

    Por um segundo, ninguém se moveu.

    Karl que acompanhava o grupo broca na retaguarda sentiu o frio subir pela espinha. Não porque a armadilha fora engenhosa, mas porque fora simples. Funcional.

    — Ele.. Morreu? — Alguém atrás de Karl perguntou

    — O-o que aconteceu? — Um dos exploradores o mais ruivo da equipe broca que estava próximo a explosão perguntou com as pernas tremulas.

    — Eu não sei.. — O líder da equipe broca um homem baixo e magro se aproximou lentamente do corpo que agora estava todo perfurado por lascas de cerâmica.

    — …Ele fez certo. — a voz saiu errada. — Fez exatamente o que treinamos.

    Eles se aproximaram da armadilha com cuidado redobrado agora.

    Ninguém falava.

    Karl observava em silêncio enquanto analisavam os mecanismos expostos pela explosão. As lanças ainda cravadas. As marcas na parede.

    Algo não encaixava.

    — Espera… — murmurou um dos Ratos, ajoelhando-se. — Olhem isso.

    As marcas de impacto estavam atrás do ponto de ativação. Não à frente.

    — Isso não faz sentido — disse outro.

    O líder da Broca franziu o cenho.

    — O disparo veio de trás.

    — Mas isso não faz sentido, capitão.

    Silêncio.

    Karl sentiu o estômago afundar.

    — Essa armadilha.. não parece feita pra parar quem entra — disse Gustav, baixo, ainda pálido.

    — Então pra quê? — alguém perguntou.

    Karl respondeu antes de pensar:

    — As armas estão viradas para dentro.

    Ninguém contestou.

    Os olhares se voltaram para o túnel adiante.

    — Eles não estavam defendendo a ruína — concluiu o capitão, a voz seca. — Estavam tentando impedir algo de sair.

    O avanço retomou em silêncio pesado. Conforme os ratos passavam pela área da explosão, Karl pode ver o que sobrara do explorador, mas o que fez o seu estomago embrulhar foi quando reconheceu de quem era.

    O corpo do primeiro morto foi sendo carregado por dois membros da Broca. Não por protocolo já que a responsabilidade era da equipe medica. Mas pela insistência o capitão autorizou. Ele se chamava Toren, filho de ferreiro. Karl lembrava dele reclamando das botas novas durante o treinamento. Lembrava do riso fácil. Agora, o peso morto parecia maior do que devia.

    — Não era para ele estar na frente — murmurou Renn, com a voz rouca. — Ele era melhor lendo que nisso.

    Ninguém respondeu.

    Avanço continuou devagar demais para quem sabia que cada passo consumia tempo, e rápido demais para quem sabia que o erro não perdoava repetição.

    — Vocês perceberam…? — Gustav disse baixo, apontando com o queixo para a parede.

    Karl seguiu o olhar.

    Nada.

    — O que?

    — Cristais do Véu — Gustav completou. — Nenhum.

    Normalmente, mesmo túneis colapsados exibiam seus brilhos brancos incrustados na rocha. Pequenos, às vezes rachados, mas sempre ali. O subsolo de Altheria praticamente respirava aquela energia.

    Ali, não.

    — Talvez tenham sido extraídos — sugeriu Ivar, sem convicção.

    Karl se agachou, passando a mão pela parede nua.

    — Não — respondeu. — Não há marcas de extração. Nenhuma cicatriz recente. Eles… nunca estiveram aqui.

    O capitão da Broca parou.

    — Isso não é natural — disse. — Um túnel tão fundo deveria estar saturado.

    — Ou drenado — alguém arriscou.

    Ninguém gostou da ideia.

    Continuaram.

    A boa conservação da passagem começava a se impor como vantagem incômoda. O chão era firme. As paredes, íntegras. Arcos bem distribuídos. Aquilo permitia avanço rápido, leituras claras, menos entulho.

    A caminhada foi intensa, fazendo a maioria dos exploradores perderem a noção de tempo. Até que a segunda armadilha revelou-se.

    Diferente da anterior, ela não estava escondida.

    Um grande pote cerâmico, suspenso por suportes antigos, rachados, claramente visível no teto baixo de uma passagem estreita.

    — Isso é provocação — disse o capitão. — Eles queriam que vissem.

    — Líquido inflamável — Um dos exploradores da Broca o mais baixinho de todos falou. — Está Instável.

    O nome do explorador à frente era Havel. Veterano o suficiente para ter sobrevivido a três incursões. Ele levantou os olhos para o pote e balançou a cabeça.

    — Não gosto disso.

    — Ninguém gosta — respondeu o capitão. — Mas vamos conter. Devagar.

    Eles montaram a operação com cuidado excessivo. Havel segurava o suporte secundário enquanto outro explorador ajustava a contenção. Quando o terceiro explorador segurou o vaso, seu rosto empalideceu.

    — O peso não está certo — avisou. — A cerâmica está cedendo—

    O estalo do pote soou alto..

    O suporte principal falhou.

    O pote se rompeu ao cair.

    O líquido se espalhou no ar e no chão como uma chuva grossa, e então o fogo nasceu, súbito, brutal, preenchendo o túnel com calor esmagador.

    O impacto térmico foi imediato.

    Não havia para onde correr.

    — MURO! — gritou alguém.

    O capitão da Broca reagiu sem pensar.

    Cravou as mãos no chão e puxou.

    A terra respondeu.

    Uma parede de lama espessa ergueu-se violentamente entre o grupo e as chamas, selando a passagem em segundos. O fogo bateu contra ela como uma criatura viva, rugindo, tentando avançar.

    O calor ainda atravessava.

    Respirar doía.

    Havel caiu de joelhos, parte do corpo queimado, o couro grudado à pele. Laura já estava sobre ele aplicando os primeiros socorros, mesmo com o ar quase irrespirável.

    — Fica comigo — ela ordenou. — Olha pra mim.

    O fogo perdeu força lentamente, sufocado. mas o calor gerado já fazia a sua parte, transformando o túnel em um forno estreito, o calor se manteve por alguns segundos até que uma nevoa fria refrescou o ambiente, Karl olhou para trás a tempo de ver a Líder da expedição se aproximando. enquanto a nevoa fria emanava do seu corpo densa o suficiente para esconder os seus pês a fazendo parecer um fantasma.

    — Obrigado pela resposta rápida Sr.Dorman. — Ela falou se aproximando do líder da Equipe broca, se ele era os pés da operação responsável por realizar o avanço com o mínimo de danos, a mulher diante dele era o cérebro.

    — Lady Nyr — O capitão falou se aproximando da mulher — É sempre bom vê-la, foi um alivio para mim saber que você seria a líder dessa expedição.

    — Agradeço o elogio, mas vim aqui para tratar outros temas.

    Dorman, concordou com a cabeça enquanto sinalizava para os membros das equipes Broca e ratos presentes se afastarem.

    Eles recuaram rapidamente dando o que era possivel ceder de privacidade naquela situação.

    — Se essa parede não subisse… — Ivar começou.

    — nenhum de nós estaria aqui ainda.

    eles pararam sentindo finalmente a adrenalina diminuir um pouco e com isso o cansaço da jornada começou a os afetar, as duas equipes se sentaram lado a lado nas laterais do tunel.

    — Não acredito que Toren morreu.. — Um jovem de cabeça raspada comentou olhando para o chão.

    — Isso é uma ruina — Um homem mais velho comentou enquanto apertava as fivelas — Nós ainda estamos dando sorte garoto.

    Karl respirou fundo, ele queria retrucar o que o veterano disse, mas ele sabia que era verdade, ele passou muitos anos explorando as ruinas sozinho e viu de perto os horrores que elas causavam as expedições.

    Após alguns minutos Dorman se aproximou deles acompanhado de Lady Nyr.

    — Levantem — Ele ordenou — Ainda temos que achar um ponto para montar o ponto de controle.


    A macha continuou por quase meio dia, felizmente para esse grupo eles não encontraram mais armadilhas durante o trajeto nem bifurcações, até que apareceu uma mudança..

    O túnel se abriu.

    Não em uma câmara ritual com grandes colunas. Nem em um salão cheio de armadilhas.

    Mas em uma clareira interna.

    O teto se elevava. As paredes se afastavam. Havia divisões claras, restos de estruturas internas.

    Uma casa.

    Ou o que restava dela.

    Karl observava os detalhes: marcas de uso cotidiano, pequenos nichos nas paredes, restos de cerâmica doméstica.

    — Eles moravam aqui — disse.

    O grupo parou na entrada da clareira.

    Ninguém falou em avançar de imediato.

    Porque, pela primeira vez, não parecia que estavam entrando numa ruína.

    Parecia que estavam invadindo um lar abandonado às pressas.

    — Muito bem senhores — Sr Dorman voltou a falar se virando para as duas equipes dianteiras. — Vamos montar nosso posto avançado.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota