Capítulo 10 - Fragmentos
O silêncio que seguiu a morte de Asmodeus era denso, quase sufocante. O domínio do demônio desmoronava ao redor de Ethan, como se o próprio espaço rejeitasse sua presença. O ar estava pesado, carregado de um poder resquicial que parecia grudar em sua pele como um veneno invisível.
Ele caiu de joelhos, sentindo o cansaço se abater sobre seu corpo como uma onda implacável. O sangue escorria de cortes abertos em seus braços e rosto, mas essa dor era insignificante comparada à tormenta que rugia dentro de sua mente.
“Eu fiz isso.”
A realidade de seus atos se abateu sobre ele como um trovão.
Ele havia matado Asmodeus.
Um Príncipe do Pecado.
Não apenas um inimigo qualquer, mas um governante de um dos sete domínios do Inferno. O impacto de sua morte não seria pequeno. Os alicerces do Vale dos Reis já tremiam, e Ethan podia sentir a vibração ecoando em sua alma.
E então veio a voz.
— E então, Ethan… como se sente?
Ele se encolheu, fechando os olhos com força. Mas não adiantava. A voz estava dentro dele.
Pazuzu.
— Você sabia que isso aconteceria, não sabia? Acha que pode atravessar esse mundo sem se sujar? Sem se tornar um de nós?
Ethan apertou a cabeça com as mãos. Sua respiração ficou irregular. As palavras de Pazuzu tinham garras afiadas, perfurando as rachaduras de sua consciência.
— Você sentiu, não sentiu? O poder? O controle?
A lembrança da batalha retornou como um relâmpago. O momento em que segurou Asmodeus. O instante em que sentiu o medo nos olhos do demônio. O êxtase. A certeza de que, pela primeira vez, ele tinha o controle.
Mas agora, com a adrenalina desaparecendo, restava apenas um vazio. Um peso.
Ele tinha gostado.
— Cala a boca. — Sua voz saiu fraca, rouca.
— E se eu não quiser?
O riso de Pazuzu ecoou dentro de sua cabeça, reverberando como uma tempestade. E então, o mundo ao seu redor mudou.
A escuridão se fechou sobre ele, e Ethan se viu em outro lugar.
Dentro de si mesmo.
O cenário era distorcido, nebuloso, mas familiar. As sombras se moviam ao seu redor, contorcidas, vivas. No centro, uma figura se erguia, um reflexo distorcido dele mesmo. Olhos dourados brilhando no breu.
Pazuzu.
Ethan sentiu um arrepio percorrer sua espinha ao encarar sua própria imagem corrompida.
— Eu não sou você. — Ele disse, forçando sua voz a sair firme.
Pazuzu sorriu.
— Não?
As sombras se contorceram, e, num piscar de olhos, Ethan viu-se cercado por memórias.
O momento em que arrancou o último suspiro de Asmodeus. O brilho selvagem em seus próprios olhos. O poder que pulsava em suas veias como um grito vitorioso.
Pazuzu deu um passo à frente.
— Você sente isso, Ethan? A mudança? O seu corpo aceitando a escuridão? Você já mudou. E não há volta.
Ethan cerrou os punhos.
— Não… não é verdade.
Pazuzu inclinou a cabeça, analisando-o como se estivesse estudando uma presa.
— Você acha que o Vale dos Reis vai simplesmente ignorar isso? Que os outros Príncipes não sentiram o que aconteceu? — Ele deu uma risada baixa. — Você tirou o equilíbrio. O lugar de Asmodeus está vazio, e agora o Inferno precisa de um novo governante para esse domínio.
Ethan arregalou os olhos.
— O que…?
Pazuzu abriu os braços, como se estivesse dando boas-vindas.
— Exato. Você não apenas matou um demônio. Você matou um Príncipe. Isso significa que seu trono está vago. O Inferno não aceita um vazio de poder. O Vale dos Reis não aceita um trono sem dono.
As palavras caíram como pedras sobre Ethan. Ele sentiu o impacto delas em seu peito, um peso que ia além da compreensão.
Ele sabia que suas ações teriam consequências. Mas isso…
— Você está mentindo. — Ele sussurrou, mas no fundo, sentia que não era mentira.
Pazuzu riu.
— Você acha que o Vale dos Reis vai te deixar simplesmente ir embora? Acha que os outros Príncipes vão aceitar a perda de um deles sem reclamar?
Ele começou a andar em círculos ao redor de Ethan, sua presença ficando cada vez mais sufocante.
— Você acabou de se tornar o inimigo de todos os governantes do Inferno.
Ethan sentiu um frio na espinha. As palavras se encaixavam como peças de um quebra-cabeça que ele não queria montar.
Ele desafiou o próprio Inferno.
— Mas tem um jeito de resolver isso. — Pazuzu murmurou, a voz macia como seda. — Você sabe qual é.
Ethan fechou os olhos, já sabendo o que viria.
— Tome o trono de Asmodeus para si.
O silêncio caiu entre eles como uma lâmina.
Ethan abriu os olhos, furioso.
— Eu nunca vou…
— Nunca vai o quê? — Pazuzu interrompeu, seus olhos brilhando. — Nunca vai se tornar o que já é?
A dor perfurou o peito de Ethan. Sua respiração falhou.
O que já é…?
A voz de Pazuzu soou mais suave agora.
— Você já fez a escolha, Ethan. O que resta agora é aceitar.
O chão sob seus pés tremeu, e o mundo ao redor começou a se desfazer. A sombra de Pazuzu começou a se dissipar, mas não antes de lançar uma última provocação:
— Quando chegar a hora… você vai ver que eu estava certo.
E então, tudo se apagou.
Quando Ethan abriu os olhos, estava de volta ao mundo real. Mas algo dentro dele havia mudado.
A verdade era clara.
O Vale dos Reis iria reagir. O Inferno não ignoraria a queda de um Príncipe.
E a luta dentro de si mesmo…
Estava apenas começando.
O ar ao redor de Ethan parecia vibrar. Algo invisível, mas esmagador, estava se formando no espaço deixado por Asmodeus. Ele conseguia sentir, como se o próprio tecido do Inferno se dobrasse sob um peso que não deveria existir.
O chão sob seus pés tremeu. Pequenas fissuras se espalharam pelo solo negro e estéril, expelindo um brilho carmesim que pulsava como um coração moribundo. A sensação era nauseante.
Então veio o som.
Não um som comum, mas um lamento.
Um uivo longo e doloroso que parecia vir de todos os cantos do Vale dos Reis ao mesmo tempo. Um chamado. Um aviso.
O corpo de Asmodeus estava caído à sua frente, mas já não parecia apenas um cadáver. Algo na morte de um Príncipe do Pecado fazia o próprio ambiente reagir, como se o Inferno estivesse sentindo a perda de um de seus senhores.
Ethan apertou os punhos. Ele ainda não entendia completamente o que havia acontecido. A batalha fora feroz, mas no fim, ele havia vencido. E agora, esse eco de morte, esse chamado distante, o fazia sentir que nada estava realmente acabado.
Então, ele sentiu.
Eles estavam vindo.
A morte de Asmodeus era como um farol para as entidades do Vale dos Reis. O Inferno não aceitava um vácuo de poder. Algo ou alguém teria que tomar esse lugar.
O horizonte ficou turvo. As sombras começaram a se mover, como se algo gigantesco estivesse se erguendo da própria escuridão.
Foi quando ele percebeu.
Asmodeus não era apenas um governante. Ele era um pilar que sustentava parte do equilíbrio do Inferno. E ao ser derrubado, os alicerces estavam desmoronando.
— Droga… — Ethan sussurrou, sentindo um calafrio subir por sua espinha.
O Vale dos Reis estava se agitando. Criaturas que haviam se mantido nas sombras agora espreitavam, atraídas pelo vazio de poder.
Príncipes do Pecado não eram apenas demônios. Eles eram peças fundamentais na estrutura do submundo. E quando um deles caía…
O caos se instalava.
— Ele está morto.
A voz surgiu como um trovão cortando o silêncio.
Ethan virou-se abruptamente, seu corpo ainda em alerta após a luta contra Asmodeus.
Na borda do que um dia foi o domínio de Luxúria, três figuras surgiam da escuridão. Suas presenças eram esmagadoras. Eles não eram como os demônios comuns que Ethan havia enfrentado antes.
Eles eram Príncipes do Pecado.
Ele não precisou de nomes para reconhecê-los. Ele sentiu.
Belfegor, o Príncipe da Preguiça, envolto em um manto de névoa escura, com olhos pesados como se estivesse entediado.
Mammon, o Príncipe da Avareza, sua pele dourada reluzindo mesmo na escuridão, e seu olhar afiado como lâminas.
E, no centro, com um sorriso que parecia um corte na realidade, Lúcifer.
O verdadeiro pecado do Orgulho.
O pai de Ethan.
Seus olhos se encontraram, e por um momento, o mundo pareceu congelar.
Ethan não sentia medo.
Não.
O que ele sentia era algo muito mais perigoso.
Raiva.
E no fundo, bem no fundo…
A tentação.
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