O ar estava denso, pesado como chumbo derretido. O Vale dos Reis, sempre sombrio e inóspito, parecia ainda mais opressor agora. O brilho carmesim das rachaduras no chão lançava sombras dançantes nas ruínas ao redor. O cheiro de enxofre e ferro queimado impregnava o ambiente, como se o próprio Inferno estivesse prendendo a respiração diante do que estava prestes a acontecer.

    Ethan não desviou os olhos.

    Ele manteve sua postura firme, mesmo sentindo o peso esmagador da presença dos três Príncipes diante dele.

    Belfegor, envolto em sombras, parecia quase indiferente. Seu corpo flutuava levemente, como se a gravidade não tivesse efeito sobre ele. Seus olhos, meio cerrados, brilhavam fracamente, sem qualquer sinal de emoção real. Ele parecia… cansado. Como se estar ali fosse um incômodo.

    Mammon, por outro lado, irradiava uma ganância sufocante. Seu corpo dourado refletia a luz carmesim ao redor, dando-lhe uma aparência quase divina. Mas seus olhos… aqueles olhos de um âmbar profundo, estavam cravados em Ethan com um brilho perigoso. Ele avaliava o garoto como se fosse um objeto, um bem a ser adquirido.

    E então, havia Lúcifer.

    A silhueta de seu pai se destacava entre os outros. Alto, esguio, vestindo um manto negro que se fundia à escuridão ao redor. Seus olhos eram de um dourado incandescente, penetrantes e inabaláveis. O sorriso em seus lábios era sereno, quase acolhedor.

    Quase.

    Mas Ethan conhecia a verdade.

    Lúcifer era o pecado do Orgulho. Seu olhar não era de carinho. Era de superioridade.

    A voz que rompeu o silêncio veio como um trovão abafado.

    Você matou um Príncipe.

    Foi Mammon quem falou. Sua voz era firme, mas não carregava emoção, apenas curiosidade. Como se estivesse tentando calcular o valor do ato de Ethan.

    Belfegor suspirou, sem nem ao menos abrir completamente os olhos.

    Que trabalho desnecessário. Agora o equilíbrio está comprometido.

    Ethan sentiu os músculos do maxilar tensionarem. Ele já esperava uma reação assim. Mas o que lhe incomodava não era a presença deles.

    Era o silêncio de Lúcifer.

    Seu pai ainda não havia dito uma palavra sequer.

    E isso fazia seu sangue ferver.

    Ele tentava me matar. — Ethan respondeu, sua voz cortando o ar como uma lâmina. — Não tive escolha.

    Mammon sorriu de canto.

    Tentar matar, tentar sobreviver… tudo isso faz parte do jogo, garoto. Mas quando um Príncipe morre, as peças mudam. E agora, há um trono vazio.

    Ethan sentiu um arrepio na espinha.

    Era isso.

    O vazio deixado por Asmodeus.

    E então? — Ethan rosnou. — Vieram me matar também?

    Belfegor soltou um bocejo arrastado.

    Muito esforço. Mas alguém precisa pagar o preço pelo vácuo que você criou.

    Mammon deu um passo à frente, seus olhos brilhando em expectativa.

    Ou… você pode preenchê-lo.

    O coração de Ethan parou por um instante.

    O que ele quis dizer com aquilo?

    Mammon sorriu mais abertamente, vendo a hesitação nos olhos do garoto.

    É simples. Você derrotou Asmodeus. Pela lei do Inferno, o direito ao trono da Luxúria é seu.

    Ethan sentiu seu sangue gelar.

    Ele… um Príncipe do Pecado?

    A ideia era absurda. Ele nem ao menos pertencia a esse mundo!

    E então, pela primeira vez, Lúcifer se moveu.

    Com passos lentos e calculados, ele caminhou até ficar diante de Ethan. Seu olhar escaneava o garoto com uma calma perturbadora.

    Você já se perguntou por que ainda está vivo?

    Ethan ficou tenso.

    O que quer dizer?

    O sorriso de Lúcifer se alargou levemente.

    Asmodeus era forte. Um dos Príncipes mais antigos. Você não deveria ter sido capaz de matá-lo.

    O coração de Ethan acelerou.

    Ele sabia que tinha lutado com tudo o que tinha… mas Lúcifer tinha razão.

    Ele não deveria ter vencido.

    A menos que…

    A resposta veio como um sussurro sombrio dentro dele.

    A menos que Pazuzu tenha ajudado.

    O pensamento fez seu estômago revirar. Ele lembrou-se dos momentos em que a fúria tomou conta, da violência cega, dos instantes em que sua mente ficou turva e tudo o que restou foi destruição.

    Não foi apenas ele lutando contra Asmodeus.

    Pazuzu estava lá.

    E, no fundo, ele sabia que havia cedido um pouco mais do controle.

    Lúcifer percebeu a perturbação em seu rosto e riu baixinho.

    O caminho já foi traçado, Ethan. Você só precisa decidir para onde ele vai te levar.

    O silêncio caiu sobre o Vale dos Reis.

    Ethan sabia que estava diante de uma encruzilhada.

    Se aceitasse o trono de Luxúria, ele entraria oficialmente no jogo do Inferno. Se recusasse, precisaria enfrentar as consequências de deixar um vácuo de poder.

    E então, como se sentisse a hesitação do garoto, Pazuzu sussurrou dentro dele.

    Aceite, garoto. Você já está mais perto do que imagina.

    Ethan fechou os olhos por um instante.

    Seu destino estava prestes a ser selado.

    O silêncio se estendeu como uma sombra sufocante sobre o Vale dos Reis. Ethan podia sentir o olhar dos três Príncipes sobre ele, como predadores observando a presa hesitante. Mas, mais do que isso, ele sentia algo ainda pior.

    Sentia Pazuzu.

    O demônio dentro de si pulsava, faminto, esperando a decisão do garoto.

    Ele engoliu em seco.

    Ser um Príncipe do Inferno? Isso era um absurdo. Ele não pertencia a esse lugar. Ele não queria um trono, poder ou qualquer coisa desse mundo deturpado. Ele só queria…

    Voltar para casa.

    Queria ver sua mãe. Queria sentir o cheiro do café pela manhã, escutar as reclamações de Clara sobre seu uniforme bagunçado. Queria voltar a ser apenas um garoto normal.

    Mas então, como se a realidade risse da sua ilusão, sua mente lhe trouxe a verdade cruel.

    Ele não era mais um garoto normal.

    Não depois de tudo o que aconteceu.

    Não depois de matar Asmodeus.

    Não depois de se tornar algo… diferente.

    Seus punhos se fecharam com força.

    Ele queria negar tudo isso. Queria gritar que ainda era o mesmo. Que ainda era Ethan.

    Mas o reflexo no chão rachado lhe dizia outra coisa.

    Seus olhos agora tinham um brilho amarelado e profundo, como brasas vivas. Sua pele parecia mais pálida, e em seus braços, marcas negras se estendiam como rachaduras.

    Não importava o quanto negasse.

    Ele estava mudando.

    Lúcifer observava cada expressão no rosto de Ethan com aquele olhar indecifrável.

    Você parece dividido.

    A voz de seu pai era calma, quase gentil. Mas Ethan sabia que não havia nada de gentil nele.

    Não preciso do seu joguinho psicológico. — Ethan cuspiu as palavras, sua voz carregada de irritação.

    Lúcifer apenas sorriu de leve.

    Mammon cruzou os braços, a paciência se esgotando.

    Chega de hesitação. Você pode aceitar o trono e governar, ou pode recusar e lidar com as consequências. Mas não vai sair ileso de nenhuma das opções.

    Ethan sentiu um frio no estômago.

    Se recusasse, sabia que o Inferno entraria em caos. Haveria guerra pelo trono vazio. Seria caçado por outros demônios. Poderia até mesmo ser acusado de usurpar poder sem assumir as responsabilidades.

    Se aceitasse…

    Ele perderia o pouco que ainda restava de Ethan dentro de si.

    Pazuzu parecia se divertir com o dilema do garoto.

    Por que você está relutando tanto? Você já fez coisas que nunca poderá desfazer. Você já pertence a este lugar. Aceite. Sente-se no trono e reivindique o que é seu.

    Ethan cerrou os dentes, lutando contra a presença dentro de si.

    Não.

    Ele não ia se render.

    Ele não era um demônio.

    Ele não era Pazuzu.

    Ergueu a cabeça e, com a voz firme, declarou:

    Eu não quero esse trono. Eu só quero ir embora.

    O vento no Vale dos Reis pareceu parar.

    Por um momento, ninguém disse nada.

    Então, Mammon começou a rir.

    Um riso baixo, que foi crescendo aos poucos, até se tornar algo genuíno e perigoso.

    Ir embora? — Ele repetiu, quase incrédulo. — Você realmente acha que pode simplesmente sair daqui?

    Belfegor suspirou, esfregando a têmpora.

    Que perda de tempo. O garoto ainda não entendeu.

    Lúcifer, no entanto, apenas manteve o olhar fixo no filho.

    Você quer reencontrar sua família? — Sua voz era serena, mas carregada de algo velado.

    Ethan assentiu.

    Quero. E vou fazer isso, com ou sem a ajuda de vocês.

    O silêncio caiu novamente.

    Então, Lúcifer fez algo inesperado.

    Ele sorriu.

    Mas dessa vez, havia algo de genuíno naquele sorriso.

    Muito bem.

    Ethan franziu a testa.

    Muito bem? O que isso significa?

    Lúcifer ergueu uma mão e, com um gesto sutil, uma energia negra se formou no ar.

    Uma fenda começou a se abrir, rodopiando com sombras e centelhas douradas.

    Você quer sair? Então saia.

    Ethan sentiu seu coração disparar.

    Era um truque? Uma armadilha?

    Mas antes que pudesse reagir, Lúcifer deu um passo à frente e murmurou próximo ao ouvido do garoto:

    Mas saiba disto, Ethan… Pazuzu já é parte de você. Ele pode estar adormecido, mas nunca desaparecerá completamente. E no momento em que você pisar fora deste reino, o mundo que você conhece não será mais o mesmo.

    Ethan se afastou, sentindo um arrepio subir por sua espinha.

    O que isso significava?

    Antes que pudesse perguntar, Mammon deu de ombros.

    Decida logo, garoto. Ou entra na fenda ou assume seu lugar. Não temos a eternidade toda.

    Ethan olhou para a fenda.

    Se aquilo era uma chance real de sair… ele tinha que tentar.

    Respirando fundo, reuniu toda sua determinação e deu o primeiro passo em direção à escuridão.

    Mas antes de atravessar completamente, sentiu um último sussurro de Pazuzu ecoando dentro de si.

    Você pode fugir deste lugar… mas não de mim.

    E então, tudo ficou negro.

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