O silêncio era absoluto.

    A escuridão envolvia Ethan como um véu sufocante. Sua mente girava, tentando entender o que havia acontecido. A última coisa que lembrava era o olhar penetrante daquela criatura grotesca, os olhos múltiplos e famintos, o cheiro de podridão invadindo seus pulmões. Agora, tudo que restava era um vazio opressor.

    A visão começou a retornar, distorcida e nebulosa. O chão sob ele era pegajoso, como se estivesse pisando em carne apodrecida. O ar estava denso, impregnado de um odor pútrido que parecia se agarrar à sua pele. Seu coração acelerou quando percebeu que não estava sozinho.

    — Ainda vivo, pequeno príncipe? — A voz de Belzebu ecoou ao seu redor, carregada de zombaria e algo mais… uma fome insaciável. — Você não deveria ter acordado tão cedo.

    Ethan se levantou cambaleante, sentindo o chão se mover sob seus pés. Ele olhou ao redor e finalmente viu a criatura. Belzebu era imenso, sua pele pálida coberta de feridas abertas, onde larvas se contorciam sem descanso. Seus seis olhos brilhavam na penumbra, e sua boca grotesca exibia fileiras de dentes afiados, manchados com sangue coagulado. A criatura trajava um manto negro esfarrapado, que parecia pulsar como se estivesse vivo.

    — O que você quer de mim? — Ethan perguntou, sua voz vacilante.

    — O que eu quero? — Belzebu lambeu os lábios ensanguentados. — Não, garoto, a pergunta correta é: o que você deseja? Porque a gula não é apenas sobre comida… é sobre desejo. Sobre querer mais quando já se tem o suficiente. Você já se perguntou o que realmente te faz continuar?

    Ethan apertou os punhos. Aquilo era um jogo psicológico, assim como os desafios anteriores. Mas dessa vez, algo parecia diferente. Belzebu não era apenas um obstáculo, ele era uma entidade que testava os limites da sanidade.

    — Eu só quero sair daqui. — Ethan respondeu, firme.

    Belzebu gargalhou, um som grotesco e dissonante que fez o estômago de Ethan revirar.

    — Sair? Hahaha! Mas por que sair se pode ter mais? — A criatura se inclinou para frente, seus olhos brilhando com malícia. — O verdadeiro desafio, pequeno príncipe, não é apenas resistir à fome. É resistir ao que você deseja acima de tudo.

    Antes que Ethan pudesse reagir, o ambiente ao seu redor se transformou. Ele não estava mais naquele solo pegajoso, mas sim diante de uma mesa grandiosa, coberta com os mais exuberantes e suculentos banquetes que já havia visto. Carnes suculentas, frutas brilhantes, vinhos dourados, doces de cores vibrantes… Era o tipo de visão que atiçava os sentidos e aguçava os instintos.

    Mas o que realmente chamou sua atenção foi algo muito mais pessoal.

    No centro da mesa, sentado tranquilamente, estava seu pai. Não Lúcifer, mas o homem que ele acreditava ser seu verdadeiro pai. Ele estava ali, com um olhar tranquilo, um sorriso nostálgico nos lábios.

    — Ethan. — A voz dele era calma, exatamente como Ethan se lembrava. — Venha, sente-se comigo. Vamos conversar… como nos velhos tempos.

    Ethan sentiu seu coração apertar. Seu pai estava morto. Ele sabia disso. Mas ali estava ele, tão real quanto a dor que crescia dentro de si.

    — O que… — Ethan deu um passo à frente, hesitante. — Isso é uma ilusão. Só pode ser…

    — Se é uma ilusão, por que hesita? — Belzebu apareceu ao lado dele, um sorriso macabro no rosto. — Não era isso que você queria? Ter mais um momento com ele? Sentir a presença dele de novo? Uma pequena mordida na ilusão não faria mal… certo?

    Ethan sentiu seu corpo tremer. Belzebu estava brincando com sua mente, explorando suas fraquezas. O verdadeiro desafio não era resistir a um banquete, mas sim ao desejo profundo de reviver algo perdido.

    Seu pai estendeu a mão, um convite silencioso. Ethan sabia que se desse mais um passo, talvez não houvesse volta.

    A pergunta de Belzebu ecoava em sua mente: O que você realmente deseja?

    Ethan manteve os olhos fixos na figura sentada à mesa. Seu peito subia e descia em uma respiração irregular, seu coração batendo forte como um tambor de guerra. Seu pai estava ali, sorrindo para ele, como se tudo fosse normal. Como se não tivesse morrido anos atrás.

    Belzebu permaneceu ao seu lado, observando cada reação com uma expressão de puro deleite. Seus seis olhos brilhavam na penumbra do local, refletindo os sentimentos conflitantes que lutavam dentro de Ethan.

    — Você sempre quis isso, não é? — Belzebu sussurrou, sua voz grave e pegajosa como mel envelhecido. — Só mais um momento… só mais uma chance de falar com ele. Diga-me, Ethan… qual é o gosto da esperança?

    Ethan engoliu em seco. Era verdade. Quantas vezes, nas noites mais solitárias, ele desejara ter mais um dia com seu pai? Quantas vezes sonhara em ouvir sua voz, sentir sua presença, receber um conselho, um abraço? E agora… tudo estava ali, ao alcance de sua mão. Bastava um passo.

    — Filho — a figura à mesa chamou. Sua voz era doce e cheia de carinho. — Venha se sentar. Você parece cansado.

    Ethan estremeceu. Ele conhecia esse tom. Era o mesmo que seu pai usava quando chegava do trabalho e o encontrava acordado até tarde, esperando por ele. O mesmo tom que o fazia se sentir seguro. Mas havia algo errado ali. Algo profundamente errado.

    Ele fechou os olhos e inspirou profundamente, buscando clareza. Isso era um teste. Um desafio. E Belzebu estava jogando com sua mente, explorando seus desejos mais profundos e dolorosos. Não era só comida ou fome de carne. Era fome de algo mais. De algo insaciável.

    — O que você deseja acima de tudo? — Belzebu repetiu, dando um passo ao lado de Ethan. — Você pode ter um último jantar com seu pai. Pode ouvir sua voz de novo, compartilhar risadas. Pode dizer a ele tudo o que nunca teve a chance de dizer.

    Ethan sentiu as pernas tremerem. Seu pai parecia tão real. Ele poderia sentar-se ali, poderia abraçá-lo, poderia…

    Não.

    Ele cerrou os punhos, o ar ao seu redor parecia se tornar ainda mais denso. Belzebu sorriu.

    — Hahaha… você sente, não é? Essa ânsia… essa necessidade incontrolável… — Belzebu inclinou-se, seus olhos brilhando com algo sombrio. — Todos têm um apetite que nunca pode ser saciado, Ethan. O seu… é por respostas. Por um passado que não pode mudar. Mas e se pudesse? E se tudo isso fosse real? Você comeria essa ilusão até não restar nada, até que ela te devorasse por completo?

    Ethan olhou novamente para a mesa. Seu pai ainda estava ali, o sorriso calmo nos lábios. Mas agora, algo parecia estranho. Pequenos detalhes começaram a se destacar. A forma como as sombras se moviam ao redor dele, como se não houvesse uma fonte de luz consistente. O leve tremor de seus dedos, quase imperceptível, como se fosse uma marionete segurando os próprios fios. E, o pior de tudo, os olhos. Eles eram gentis, sim, mas não continham vida. Não tinham a mesma luz de quando Ethan era criança.

    Era uma mentira.

    Ethan soltou o ar com força. Seu peito ainda doía, sua garganta estava seca, e a tentação de ceder era esmagadora. Mas ele não podia se deixar levar. Não importava o quanto doía, não importava o quanto desejasse que fosse real.

    — Eu não preciso disso. — Sua voz saiu rouca, mas firme. — Isso não é real.

    Belzebu inclinou a cabeça, um sorriso cruel se alargando.

    — Ah… mas não é? — ele gesticulou, e de repente, a figura à mesa se levantou.

    Ethan arregalou os olhos quando seu “pai” começou a caminhar lentamente em sua direção. Os passos eram hesitantes, como se cada um exigisse um grande esforço. Mas os olhos… aqueles olhos vazios estavam fixos nele.

    — Ethan… — a voz era doce, mas agora havia algo errado nela, como um eco distorcido. — Você realmente não quer ficar? Não quer aproveitar essa oportunidade? Me diga… eu não sou real para você?

    A dor no peito de Ethan se intensificou. Ele queria dizer que sim. Queria correr para os braços daquela figura e esquecer toda a dor, toda a miséria que estava vivendo. Mas não podia. Se ele cedesse, estaria perdido. Assim como tudo que já enfrentou até agora, esse era mais um truque, um jogo cruel do Vale dos Reis Eternos.

    Com um movimento brusco, Ethan deu um passo para trás, desviando o olhar daquela figura que se aproximava lentamente.

    — Você não é meu pai. — Ele disse, cada palavra sendo um golpe contra sua própria alma. — Meu pai morreu. E nada do que eu fizer vai mudar isso.

    A sombra do que antes parecia seu pai parou. Seus olhos vazios brilharam por um instante, e então, sua boca começou a se abrir. Primeiro lentamente, depois em um ângulo impossível, sua mandíbula se deslocando para os lados, revelando fileiras de dentes afiados. Um som gutural emergiu da garganta da criatura, um lamento distorcido e grotesco.

    — Tsc. — Belzebu suspirou, decepcionado. — Você poderia ter aproveitado um pouco mais.

    Num piscar de olhos, a ilusão se desfez. A mesa sumiu, os aromas desapareceram, e Ethan estava de volta ao solo pegajoso e pútrido do Vale. O cheiro de podridão voltou com força total, fazendo seu estômago revirar. E Belzebu? Ele estava ali, rindo baixo, como se tudo não passasse de um mero entretenimento para ele.

    — Você realmente é teimoso, pequeno príncipe. — Ele cruzou os braços, analisando Ethan com um olhar calculista. — Mas… você venceu. Sobreviveu ao banquete.

    Ethan respirou fundo, seu corpo exausto. Mas ele não poderia demonstrar fraqueza ali.

    — Então me deixe passar. — Ele exigiu, firme.

    Belzebu ergueu uma sobrancelha. — Passar? Oh, não, garoto… você apenas terminou o primeiro curso. Ainda há muito mais para digerir.

    Antes que Ethan pudesse reagir, o solo sob seus pés se abriu. Ele sentiu seu corpo despencar no vazio, a risada macabra de Belzebu ecoando ao longe. O próximo desafio o aguardava… e ele não sabia se estava pronto para o que viria a seguir.

    O aura do Vale dos Reis Eternos era um peso esmagador, tão denso que parecia se agarrar à pele de Ethan. Ele sentia o vazio se expandindo ao seu redor, um espaço sem forma, sem horizonte, onde a única coisa concreta era ele mesmo – ou pelo menos o que restava dele.

    O chão sob seus pés não era feito de pedra ou terra, mas de algo que se assemelhava a cinzas compactadas, macias e traiçoeiras, como se ele pudesse afundar a qualquer momento. O ar era denso e pesado, carregado com o cheiro de carne queimada, de algo que já fora vivo, mas que agora só existia como uma sombra de sua antiga forma. Havia uma constante neblina amarelada no ar, que obscurecia sua visão e distorcia as formas ao redor, tornando impossível distinguir o que era real e o que era apenas mais uma ilusão daquele lugar.

    Ethan estava imóvel no meio desse nada, seus olhos fixos em suas próprias mãos. Tremiam. Estavam pálidas, os dedos ligeiramente mais longos do que ele lembrava, as unhas afiadas demais. Pequenos detalhes que antes não estavam ali.

    Ele respirou fundo, mas o ar não parecia preencher seus pulmões da maneira certa. Sua mente rodava, lembrando-se da última visão de Belzebu e do banquete ilusório. O gosto amargo ainda persistia em sua língua, como se ele tivesse realmente provado algo que não deveria. Ele fechou os olhos por um momento e tentou se concentrar, mas tudo que encontrou foi um vazio crescente dentro de si.

    Ethan não sabia dizer quando começou a sentir aquilo, mas agora era inegável. Algo dentro dele estava mudando. Cada desafio, cada encontro, parecia arrancar mais um pedaço de sua humanidade e substituí-lo por algo frio, algo monstruoso.

    Ele apertou os punhos, tentando conter um tremor involuntário. Não era apenas a exaustão física – ele já estava acostumado com dor e esforço –, era algo muito mais profundo. O Vale estava devorando-o aos poucos, moldando-o naquilo que ele mais temia.

    “Pazuzu…”

    O nome ecoou em sua mente, sussurrado por uma voz que ele não reconhecia, mas que parecia estranhamente familiar. Era como se um espectro antigo se aninhasse dentro dele, esperando a hora certa para assumir o controle.

    Ethan cambaleou para frente, seus pés afundando levemente na terra cinzenta, e olhou para a névoa adiante. Seu reflexo piscou em um espelho invisível diante dele – mas não era ele. Os olhos eram mais escuros, quase sem brilho, as feições endurecidas, sem qualquer traço da humanidade que um dia possuíra.

    Era Pazuzu.

    A visão o atingiu como um soco no estômago, e ele se afastou bruscamente, respirando com dificuldade. Não. Ele não podia deixar isso acontecer. Não podia perder quem era. Mas… quem era ele agora?

    O Ethan que chegou ali não era mais o Ethan que estava de pé agora. Cada pecado, cada provação, arrancava um pedaço de sua identidade e deixava para trás um espaço vazio que logo era preenchido por algo diferente, algo cruel.

    “Será que ainda sou eu?”

    O pensamento o atingiu com força, e ele sentiu o peso da dúvida se instalar em seus ombros. Odiava Lúcifer. Odiava aquele lugar. Mas mais do que tudo, odiava não saber se, no fim, ele ainda poderia ser Ethan ou se já estava destinado a se tornar Pazuzu.

    O vento soprou ao redor, carregando sussurros distantes, como vozes perdidas tentando chamá-lo de volta. Ele cerrou os olhos por um momento, buscando um resquício de si mesmo, qualquer coisa que pudesse agarrar antes de se perder completamente. Mas tudo que encontrou foi um silêncio profundo e absoluto.

    Então, um som diferente atravessou a névoa.

    Um riso suave, quase sedutor, ecoou pelo vazio. Era um som doce, envolvente, mas carregado de algo perigoso, algo que fez a pele de Ethan se arrepiar. O cheiro de carne podre e sangue seco desapareceu, substituído por algo floral e enjoativo, um perfume forte que invadiu seus sentidos sem aviso.

    Ele se virou lentamente, e a névoa começou a se dissipar, revelando um novo cenário diante de si.

    Desta vez, não havia cinzas ou sombras. Em seu lugar, um palácio de mármore branco se erguia, imaculado e brilhante, como se nada no mundo pudesse corrompê-lo. Lustres de ouro pendiam do teto, iluminando o salão opulento com uma luz suave e convidativa. Tapetes de veludo vermelho forravam o chão, e móveis de mogno entalhado estavam dispostos com perfeição, como se tivessem sido meticulosamente organizados para impressionar.

    E ali, no centro do salão, sentado em um trono de ébano, estava o próximo desafio de Ethan.

    Asmodeus, o pecado da luxúria.

    Com um sorriso que era ao mesmo tempo acolhedor e predatório, ele cruzou as pernas e observou Ethan como se estivesse diante de um brinquedo novo e interessante. Seu rosto era impecável, sua pele pálida contrastava com os olhos vermelhos intensos, e seus cabelos vermelhos caíam em ondas perfeitas até os ombros. Vestia-se com um manto de seda carmesim que deslizava sobre seu corpo como se fosse parte dele.

    — Ah, então você finalmente chegou, pequeno príncipe. — Sua voz era sedosa, quase um sussurro. — Eu estava esperando ansiosamente por você.

    Ethan engoliu em seco, sentindo o peso daquele olhar sobre ele. Depois do que havia passado com Belzebu, sabia que esse desafio não seria diferente. Mas, dessa vez, não era apenas seu corpo ou sua mente que seriam testados.

    Era sua alma.

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