Capítulo 13 - O Pássaro na Gaiola
A culpa era um veneno lento. A dúvida, um atenuante terrível. O som que Hermes ouvira da janela do Jovem Lorde — aquele choro abafado, aquela ordem cruel e sibilante — recusava-se a se encaixar na narrativa que o esmagava. Ele tentou ignorá-lo, tentou se afundar de volta no deserto de sua própria miséria, mas o eco daquele som o assombrava, uma dissonância na sinfonia de seu sofrimento.
Ele começou a observar Agouri, não mais com a distância de um juiz, mas com a intensidade de alguém tentando resolver um enigma impossível. O rapaz era um fantasma. Cumpria suas tarefas com uma precisão vazia, o corpo presente, mas o espírito ausente. Hermes viu quando, um dia, Agouri deixou cair um cântaro de água, e o som do barro se quebrando o fez encolher-se e proteger a cabeça, como se esperasse um golpe que não veio. Viu como ele comia, sem gosto, sem prazer, apenas o movimento mecânico de levar o alimento à boca. O luto não se parecia com aquilo. Aquilo era medo.
Incapaz de suportar mais a dissonância, Hermes o encurralou dois dias depois, no mesmo lugar onde sua aliança frágil havia se formado: a agora silenciosa e vazia ala médica. O cheiro de ervas ainda pairava no ar, um fantasma do tempo em que Teseu e a esperança ainda viviam ali.
— Agouri.
O rapaz se virou, e ao ver a intensidade no rosto de Hermes, tentou recuar.
— Nós precisamos conversar.
— Não temos nada para conversar — disse Agouri, a voz baixa e sem vida. — Me deixe em paz.
— O que o filho do Lorde fez? — Hermes perguntou, sua voz mais dura do que pretendia. — À noite. Naquele quarto.
O terror inundou o rosto de Agouri. Foi uma transformação instantânea, o vazio sendo preenchido por um pânico puro e animal. — Não sei do que você está falando! Ele… ele é bom para mim. Ele me ensina coisas. Você… você não entende nada!
— Tsc — Hermes estalou a língua, dando um passo à frente. — Aquele choro que eu ouvi na outra noite… era seu?
A pergunta atingiu Agouri como um soco. Ele balançou a cabeça freneticamente, as lágrimas brotando em seus olhos. — Não! Não era! Você está louco! São essas suas conclusões precipitadas que acabam matando todo mundo! Me deixe em paz!
A última frase fez Hermes vacilar, seu aperto fraquejou. Essa era a janela que Agouri precisava. Ele arrancou seu braço do aperto de Hermes e fugiu, correndo como se o próprio Hades estivesse em seus calcanhares.
Hermes ficou parado no meio da sala vazia. Nada havia sido descoberto, no entanto, ele tinha certeza pela reação do garoto. A história oficial era uma mentira. A culpa que o acorrentava era uma mentira. E o que quer que estivesse acontecendo na realidade era uma verdade tão horrível que Agouri preferia se afogar na mentira a encará-la.
Naquela noite, a determinação de Hermes era de aço. Ele não era mais movido pela dúvida, mas pela necessidade desesperada de compreender a natureza do monstro que havia quebrado seu amigo. Ele esperou a villa mergulhar no silêncio da madrugada, o único som sendo o do vento que soprava do mar.
Ele se moveu pelas sombras, um espectro de vingança em uma casa de segredos.
Enquanto se movimentava próximo ao jardim, ouviu algo estranho.
Um gemido abafado.
Ele ergueu a sobrancelha. Depois de tempos trabalhando, conhecia cada centímetro daquele jardim.
Ele sabia a rota perfeita para atravessar a propriedade e não ser pego, no entanto, essa noite algo parecia distinto.
Ele se esgueirou por trás dos arbustos e flores e então, com cuidado, pôs-se a observar o interior do jardim.
Foi aí que viu algo inesperado na fonte central do jardim.
Lady Kratos, a esposa do patrão, estava nua, agarrada com outra figura, obscurecida pelas sombras.
A voz feminina então sibilou.
— Aan- Saulo-
Com a boca aberta, Hermes encaixou uma das peças do quebra cabeças. Lembrou da satisfação de seu algoz, que nem conhecia, ao torturá-lo. Do rancor que sentia e demonstrava ao machucá-lo.
“Parece que você finalmente teve o que queria, não é maldito?” Pensou.
Por mais chocante que fosse a descoberta, estava na hora de seguir com seu plano. O destino era a ala médica.
Passou direto pela casa da família, despistando os guardas com a perícia de quem cunhou o título de Deus dos Ladrões.
Chegando no dormitório do médico, esperou até que o guarda que rondava a região fosse em outra direção, e entrou pela janela, sem qualquer barulho.
O médico jazia num descanso profundo em sua enxerga.
Hermes, sorrateiramente, se aproximou das mesas no cômodo, procurando por algo. Pegou uma pequena lâmina, usada por ele para fazer incisões simples, e testou seu corte no ar.
Ouviu o médico suspirar, e sobressaltou, olhando para trás. Nada. Ainda dormia.
SLAP
O pobre médico acordou alarmado, com os olhos arregalados. E, sem tempo para gritar encarou em choque a figura sombria que, com um sorriso macabro, ordenava com um dedo na frente dos lábios que ele permanecesse em silêncio.
A lâmina pressionando seu pescoço não permitia qualquer movimento.
O guarda do lado de fora, em sua ronda, passa mais uma vez pela porta da ala médica e boceja.
Dentro da casa, um interrogatório se inicia.
— Eu só vou fazer cada pergunta uma vez, e caso eu não me sinta satisfeito com alguma delas- — Hermes sussurrou com uma expressão séria e, ao terminar de falar, pressionou a lâmina contra o pescoço do homem, reafirmando sua ameaça.
Um discreto aceno de cabeça foi a resposta.
— O que houve com Teseu?
A lâmina se afrouxou um pouco.
O curandeiro engoliu em seco.
— E-ele morreu depois que o tratamento foi interrompido-
— E por que o tratamento foi interrompido?
— E-e-eu nã- — A tom do curandeiro demonstrou um pouco de desespero.
Antes que ele pudesse terminar de responder, Hermes apertou seu pescoço com uma das mãos, o fazendo engasgar.
A lâmina saiu do pescoço e caminhou rasteira até a bochecha do homem.
Parou a alguns centímetros do olho.
— Por que. O tratamento. Foi interrompido? — Hermes perguntou pausadamente, numa expressão assustadora.
O suor escorreu da testa do curandeiro, misturando-se com uma lágrima.
O aperto no pescoço afrouxou.
A voz saiu como uma lamúria.
— Foi depois que você agrediu a Lady.
“Então foi ela, afinal?” Hermes pensou. Seu remorso voltou. Ele era realmente o culpado.
— No dia seguinte ao que você foi aprisionado, o jovem Lorde apareceu e disse que eu deveria trocar as ervas do tratamento do garoto.
A expressão de Hermes se tornou obscura.
O curandeiro esperou por um momento em silêncio, como se aguardasse a ordem para prosseguir. Como ela não veio, mas a lâmina permaneceu sobre seu rosto, ele resolveu continuar.
— Ele disse que era um tratamento que ele viu em um livro que ganhou de um ateniense. Algo que ia curar o menino de vez. Nos primeiros dias, quando o garoto piorou, eu tentei avisar que seria melhor parar. — Ele engasga um pouco, seus olhos desesperados por passar o máximo de veracidade no que estava falando. — Mas ele me ameaçou. Perguntou se eu tinha coragem de dizer que sabia mais do que ele. E então, o garoto não resistiu, em apenas uma semana ele… ele-
Hermes olhou o homem seriamente.
O silêncio reinou naquele cômodo por cerca de um minuto.
Do lado de fora, o som dos calçados do guarda apareceram por uns segundos, para sumirem logo em seguida.
A lâmina se afastou aos poucos. Hermes soltou o homem em seu colchão de palha.
Sem dizer nada, ele largou a lâmina numa das mesas e subiu na janela. Antes de sair, ele olhou novamente para o curandeiro que o olhava paralisado, ainda com medo. A mensagem em seu olhar era clara.
Do lado de fora, ele voltou pela lateral da casa grande, esgueirando-se nos arbustos e árvores com uma facilidade sem tamanho.
Chegou à parede externa dos aposentos do Jovem Lorde e, percebendo onde estava, ponderou por um instante.
Então pressionou o ouvido contra a pedra fria, perto da mesma persiana empenada.
No início, ouviu apenas o farfalhar de tecidos e o som de algo sendo derramado em um copo. Então, a voz do Jovem Lorde, suave e venenosa como mel misturado com cicuta.
— Beba. Vai te aquecer.
Um silêncio, seguido por um som engasgado, como se alguém bebesse contra a vontade.
— Isso… assim está melhor — continuou o Jovem Lorde. — Você tem estado tão… apático ultimamente, meu pequeno tentilhão. Sinto falta daquela centelha de desafio que você tinha quando chegou. Era muito mais divertido.
Hermes prendeu a respiração.
Ele ouviu um soluço baixo, reprimido. A voz de Agouri, fraca e trêmula. — Por favor… meu senhor…
— Shhh. — A voz do Jovem Lorde era um falso consolo. — Não adianta implorar. Você sabe disso. Sabe, às vezes eu penso que cometi um erro.
Um silêncio tenso.
— Sim, um erro em não ter me livrado de seu amigo doente mais cedo. Ele o tornava fraco, mas também lhe dava esperança. E sua esperança era… irritante.
A voz de Agouri se ergueu, um lamento quebrado. — Ele não fez nada…
— Claro que não! — A risada do Jovem Lorde ecoou, e era a coisa mais feia que Hermes já havia ouvido, um som podre que não tinha nada da benevolência que ele projetava. — Foi por isso que foi tão eficaz.
Hermes sentiu o mundo se inclinar.
Então, veio o golpe final. A verdade, nua e monstruosa, dita com um prazer sádico.
— Na verdade… — o Jovem Lorde ponderou em voz alta, saboreando cada palavra — …valeu muito a pena matar aquele tal de Teseu. Você parece bem menos disposto ultimamente, sem ele por perto para te encorajar. E eu amo isso! Kukuku… Eu amo como você está quebrado.
O som do choro de Agouri não era mais contido. Era o som de uma alma se partindo, um lamento de pura agonia e desespero. E misturado a ele, o som de um tapa, e a voz cruel do Jovem Lorde sibilando: — Eu disse para ficar quieto.
Do lado de fora, Hermes se afastou da parede. O vento frio da noite o açoitava, mas ele não o sentiu.
A culpa que o havia esmagado, que o transformara em uma casca vazia, evaporou-se instantaneamente. Em seu lugar, não surgiu a fúria quente e explosiva que o levara a atacar a Lady. Surgiu algo muito pior. Algo frio, pesado e absoluto.
Certeza.
Teseu não morrera de uma doença ou de esperança perdida. Fora assassinado. O Jovem Lorde, o “salvador”, era um monstro que se alimentava do sofrimento alheio. A gentileza era sua arma, a esperança sua isca, e a dor de Agouri era seu banquete.
Hermes fechou os olhos, o vento uivando ao seu redor. A imagem do pássaro na gaiola, a alegoria que Teseu havia entendido e que ele só agora compreendia em sua totalidade, queimou em sua mente.
Ele abriu os olhos. O desespero se fora. A apatia se fora. Tudo o que restava era um propósito, forjado no fogo da verdade mais terrível. Ele não era mais uma vítima se escondendo nas sombras.
Ele era o eco de um deus. E ele iria libertar o pássaro da gaiola. Ou morreria incendiando a casa inteira.
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