Capítulo 17 — O Caminho do Sangue, Primeiro Passo
O sol se punha numa planície vazia. Vazia exceto por uma única carroça. Duas pessoas seguem seu caminho sentados. O da frente, um homem de cabelos brancos, porém de aparência jovem apesar de surrada, presta atenção nos arredores.
O outro rapaz, mais jovem, está sentado nos fundos da carroça, observando o caminho que eles vão deixando para trás. Observando talvez não fosse a melhor palavra para descrever o que ele estava fazendo. Seus olhos estavam ali, na estrada, mas a mente divagava.
A expressão vazia, o olhar cansado, e os lábios secos de ambos entregavam que a viagem estava sendo longa. O terceiro dia estava chegando ao fim, para ser mais exato, e eles mal haviam parado até então.
Viajaram muito nesse tempo. O homem à frente já estava enjoado do cheiro do mar de tantas horas que passaram na encosta.
O menino, não sentia nada. Ou, se sentia, não demonstrava. Desde que subiu na carroça, não trocou uma única palavra com o rapaz da frente. Não por aborrecimento com ele, pelo que se sabe. Parecia exausto.
Ainda estão em Calcídica. Na península. A paisagem mudou pouco até então. O principal aspecto é que agora já se via mais árvores do que água. O mar foi ficando para trás à medida que o homem guiava a carroça mais para dentro do continente.
O jovem atrás que, quieto, observava as árvores de soslaio, suspirou, finalmente produzindo algum som pela primeira vez em toda a viagem e fechou os olhos por um instante.
As olheiras não permitiam que qualquer um se enganasse. Essa não era a primeira noite que ele não dormia. Suas mãos calejadas e pés feridos apontavam para os motivos.
RIIIINCH
Seu repouso foi subitamente interrompido por um relincho e a freada brusca da carroça e ele que estava com o corpo relaxado, acostumado com a movimentação constante ao longo do dia, caiu de costas no fundo da carroça, por sorte, em cima de um saco acolchoado.
— O que foi isso Hermes? — Perguntou Teseu, o garoto, com uma expressão um pouco irritada olhando por dentro da carroça na direção da frente.
Pela fresta no pano que cobria a carroça, o homem de cabelos brancos pôs a cabeça para dentro.
— Vamos descansar. O cavalo já não aguenta mais viajar sem parar. — Ele diz à medida que entra na carroça procurando algo nos sacos que estavam jogados pelo chão. — E nem eu. Nunca demorei tanto para chegar em algum lugar.
O garoto franziu o cenho por um momento. Não teve vontade de falar, no entanto. Tinha a certeza de que ouvira Hermes falando em algum momento que gostava de viajar. Ele estava mentindo?
Hermes, vasculhando os sacos jogados, deu um suspiro de alívio, como se finalmente tivesse achado o que procurava. O pegou e jogou sobre o ombro.
— Pode dormir se quiser, vou fazer uma batida nos arredores para ter certeza de que é seguro e logo estarei de volta. — Ele disse voltando por onde veio.
O garoto suspirou e olhou novamente para a parte de trás da carroça. A noite chegava aos poucos e os últimos raios de luz solar iluminavam o interior bagunçado da carroça.
Teseu puxou os panos do lado da carroça e os amarrou, tapando a entrada para a luz e qualquer outra coisa. Se deitou, ainda reflexivo, e se preparou para descansar.
Do lado de fora, Hermes terminava de se trocar atrás de uma árvore. No chão, jogados, estavam os velhos trapos que estava acostumado a usar na antiga casa de seus senhores. Desde o episódio com a Lady Kratos, eles haviam parado de lhe dar roupas.
Além da sujeira proveniente dos dias incessantes de trabalho manual na casa, agora, olhando para as manchas de sangue e os rasgos, Hermes se lembrava daquela noite.
Aqueles que ele matou em sua fúria. O rosto desesperado de seu torturador. O de Lady Kratos, que havia queimado com seu amante entre as flores de seu tão amado jardim.
Ele sorriu. Estava afeiçoado pelo sentimento da retribuição.
Vestia agora um chlamy escuro, quase negro, que parecia feito sob medida para ele. O achou entre as coisas do filho do lorde que ele saqueou antes de sair da Villa. Aparentemente, ambos tinham medidas bem parecidas. Amarrou a alça no ombro direito, deixando o esquerdo livre.
Voltando da floresta, subiu na carroça que estava um pouco escondida entre as árvores e apanhou a xiphos que estava largada sobre o assento olhou para a frente da carroça e suspirou, como quem percebe problemas.
Na área mais baixa da planície, vindo de uma rota lateral à de Hermes, uma caravana estava armando acampamento.
A visão de Hermes, acostumada à distância dos céus, foi capaz de captar detalhes impressionantes. Um grupo pequeno de guardas que usavam roupas que não denunciavam ligação com nenhuma cidade-estado, provavelmente mercenários, circundava uma quantidade grande de pessoas vestindo trapos surrados.
Os servos usando túnicas sujas e rasgadas trabalhavam aplainando a área para o acampamento enquanto os homens com couraças amarelas assistiam sentados em troncos.
Eram por volta de 10 guardas e uns 30 escravos. Era uma caravana de tamanho mediano.
Os guardas pareciam se divertir. Alguns tinham chicotes pendurados nas cinturas, outros os tinham nas mãos. Um homem alto, o único que vestia um elmo e uma couraça marrom, parecia coordenar e organizar a construção mais ao longe.
Uma sombra de cabelos brancos observava tudo ao longe. Quando se deu por si, estava rangendo os dentes.
Varreu mais uma vez a planície para além da floresta. O campo aberto que se seguia depois da mata em que eles ainda se encontravam, denunciava que a viagem de Hermes e Teseu teria de ser interrompida por algum tempo caso não desejassem ser avistados pela caravana.
Com uma olhada sobre o ombro, ele fitou a carroça atrás de si e suspirou.
…………
A noite havia finalmente chegado. Em volta de uma fogueira estavam alguns homens vestidos com couraças azuladas que reluziam de tão brilhantes com a luz noturna. Pareciam não ver algum uso há tempos.
Eram cinco ali sentados. Dois jogavam conversa fora, um olhava para as estrelas e outro admirava os estalos das chamas da fogueira.
Nas carroças atrás deles, alguns olhos os observavam pelas frestas das grades de madeira. Os servos amontoados nas tábuas de madeira gemiam, alguns por enfermidade, outros por dores ou ainda pelas lembranças.
A noite seguia sem problemas até então, quatro soldados haviam sido designados para a guarda na primeira parcela da noite e estavam, neste momento, nas extremidades da caravana.
Ninguém parecia preocupado nesta noite em particular e havia razão para isso. A viagem já havia chegado a um ponto em que só haviam chances de encontrar alguém na próxima cidade. Não havia bases conhecidas de bandidos na região e muito menos casas de nobres nos territórios vizinhos. Era uma zona aberta e segura.
Perfeita para uma noite de descanso antes de finalmente alcançarem Therma, a cidade portuária onde essa missão de escolta encontraria seu fim.
O acampamento estava em paz. O nobre, proprietário das “mercadorias” nas carroças, deleitava-se em seu sono numa tenda mais ao sul do acampamento, guardado por dois guardas.
Na fogueira central, soldados jogavam conversa fora.
— O que será que a gente faz depois que chegarmos em Therma? — Perguntou um deles com uma voz rouca de quem já se perdeu no tédio.
— Talvez a gente consiga outro serviço para escoltar outro riquinho idiota até Pella. — Respondeu um rapaz jovem que bebia algo em um odre velho e surrado. — Assim a gente faz o caminho todo de volta sem perigo e ainda é pago por isso.
Os dois riram um pouco, antes de serem interrompidos por um terceiro guarda que estava sentado ao pé da fogueira afiando a sua espada.
— Se eu fosse vocês teria cuidado com quem estou chamando de ‘riquinho’. O senhor Dídimo é mais que um mero nobre. Ele é um Arconte1 de Therma.
— Tanto faz se é um Arconte, Caronte, Faronte- Ele pode se chamar do que quiser desde que eu receba a minha parte do serviço. — Afirmou o rapaz que bebia do odre de maneira zombeteira.
— Você devia se importar. Dídimo está levando esses escravos para fortalecer seus laços com a família real de Tróia. — Prosseguiu o homem de antes, ainda concentrado em sua espada, erguendo-a contra a luz da fogueira para observar melhor o fio. — Ele é um excelente cliente. Aliados políticos é tudo o que gente como nós precisa.
— Calem a porra da boca e me deixem dormir! — Grasnou o quarto guarda que estava deitado do outro lado da fogueira, com um pano sobre o rosto. — Logo mais é a nossa vez de ficar de guarda e vocês ainda não me deixaram pregar o olho!
— Ha- na hora da guarda você dorme o quanto quiser, não vai acontecer nada hoje mesmo. A gente tá no meio do nada. — Respondeu o primeiro guarda com sarcasmo na voz.
— Que se fodam vocês todos, eu vou mijar. Parece que o vinho que eu roubei do seu grande Marconte aí tava estragado, me deu um aperto na bexiga danado. — O segundo guarda disse enquanto se levantava do tronco ao lado de seus colegas na fogueira.
Largou o odre no chão ainda meio aberto, deixando que parte do vinho que ainda estava ali dentro molhasse a grama seca.
— Vá e não volte. — Disse o homem deitado de maneira impaciente.
O guarda já estava indo, deixando para trás as vozes entediadas e cansadas.
— A propósito, algum de vocês viu o capitão? — Perguntou alguém ao fundo que ele não se deu ao trabalho de responder.
O guarda cambaleou até as carroças até que encontrasse alguma coisa para se escorar. Apoiou-se em uma das grades e começou a desamarrar a cinta de pano que prendia a parte de baixo da túnica em sua cintura.
E então, parou, sentindo algo estranho. Ergueu os olhos até o vão entre as grades da carroça em que ele estava se apoiando. Assustou-se.
Em meio ao emaranhado de servos que dormiam no chão da sela, um único homem estava sentado, acordado. Tinha seus braços sobre os joelhos e as costas contra um dos cantos das grades.
A iluminação não era suficiente para revelar sua feição, restando apenas uma sombra sinistra sobre seu corpo. Mas, apesar disso, o guarda do lado de fora conseguiu sentir o olhar pesado sobre si.
O susto passou aos poucos, e deu lugar a uma fagulha de raiva.
— Tá olhando o que? — Perguntou o soldado num tom irritado.
Silêncio.
Talvez fosse o vinho, mas algo no olhar daquele escravo parecia estranho para o soldado. Ele sentiu um arrepio na espinha. Sua bexiga apertou.
— Tch-
Com um estalo de língua, ele se virou, decidindo seguir um pouco mais adiante das carroças para poder urinar em paz entre as árvores. Deixou para trás a caravana e encontrou um lugar bom.
Alívio.
Começou a amarrar a cinta, até que-
Thump
Wish
Ouviu algo como uma pancada, e o chacoalhar dos galhos de uma árvore bem próximo de onde estava.
— Quem está aí? — Perguntou o soldado ainda segurando sua cinta com as duas mãos.
Olhando em volta, ele levou a mão à cintura, e então seus olhos se abriram em choque quando se deu conta. Havia deixado a espada na fogueira.
Estava sozinho e desarmado na escuridão da floresta.
Creak
Sua respiração ficou irregular por um instante enquanto ele virava, procurando em todas as direções a origem do barulho. Passos.
Ouviu alguns arbustos se mexendo ao seu redor, primeiro à direita, depois à esquerda. Depois atrás.
Virou-se num susto e recuou num pulo, dando de costas numa árvore.
Uma figura sombria estava agora à sua frente, a apenas alguns metros. Ela tinha sua mão repousada sobre o cabo da espada que jazia pendurada na cintura.
Sua espinha gelou. Como aquela pessoa havia se aproximado tanto sem ser detectada por ele ou qualquer outro guarda?
Cerrou os olhos por um instante, tentando captar algo das frestas de luz na escuridão da floresta.
A figura de um elmo familiar o fez suspirar aliviado.
— Capitão, que susto do caramba você me deu! — Ele disse, levando a mão ao peito.
O capitão se aproximou, em silêncio, com a mão sobre o punho da espada, perpassando, num segundo, por uma fresta de iluminação que varreu um metro daquela floresta. Uma visão clara por um segundo.
O soldado franziu o cenho. “Túnica… preta?”
Seu pensamento mal se completou.
Em dois longos passos, o ‘capitão’ encurtou a distância entre eles. A espada não desperdiçou mais que meio segundo entre ser sacada e atravessar a cabeça do soldado contra a árvore.
O som de sua morte não avançou mais que três metros naquele labirinto de árvores. O ‘capitão’ puxou sua espada da cabeça do rapaz, permitindo que suas costas escorregassem no tronco da árvore em que se apoiava.
Caiu sentado e sem vida.
O homem de pé o observou por um instante, antes de voltar a andar.
A morte marchava em direção ao acampamento.
A alguns poucos metros de onde tudo havia acontecido a pouco, jazia um corpo sem vida de um homem vestido numa couraça castanha.
- Alguém de grande influência política nas pólis gregas.[↩]
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