Capítulo 20 | Caçado.
…
Quente.
Uma brisa morna invadiu as narinas do rapaz, preenchendo seu espírito com uma paz que há muito não o encontrava. Sensação de segurança.
Estranho. Ele podia jurar que há pouco seu coração batia como que para rasgar o peito.
— Teseu? Acorde.
O menino abriu os olhos lentamente, uma voz familiar o chamava.
Um homem jovem de cabelos brancos o encarava com um olhar frio que escondia preocupação na curvatura dos lábios e sobrancelhas.
— Você está bem? — Perguntou o homem para Teseu.
— Onde eu estou? — O menino perguntou com uma voz rouca de quem dormiu por horas.
Tentou se levantar, só para ser impedido pelo braço do rapaz acima dele em seu ombro.
— Deixe-me ficar de pé, Hermes.
O jovem de cabelos brancos o encarou em silêncio, e então levou seu braço que segurava o ombro do garoto até o abdômen dele. Pressionou um pouco com o polegar, com um mínimo de força.
— Argh! — A resposta do garoto foi um gemido de dor que expulsou o ar de seus pulmões.
Ele se encolheu com a dor e caiu de costas novamente no chão, que era onde estava.
— Descanse. Você tem duas costelas quebradas e muita sorte de não ter morrido. — Hermes falou de maneira impessoal.
— Kuhak-Droga Hermes! Você podia só ter me falado isso. Não precisava pressionar meu machucado! — O garoto grasnou no momento em que sua dor permitiu, rangendo os dentes irritado.
— Você não teria me escutado. Conheço-te suficientemente bem para me acostumar com as façanhas de sua teimosia. — Hermes respondeu com um sorriso de canto, zombeteiro.
“Ele tá… sorrindo?” Teseu franziu a sobrancelha por um instante.
Foi então que finalmente se deu conta. Algumas pessoas estavam em volta dos dois. Um grupo grande, que Teseu não se deu ao trabalho de contar a princípio, mas cujas roupas denunciavam claramente o que eram.
“Escravos?” Refletiu o garoto.
Não se lembrava muito do que havia acontecido antes de ele acordar. Como ele veio parar aqui nesse lugar cheio de escravos?
Com seus sentidos se recuperando aos poucos, Teseu sentiu um odor familiar. Familiarmente pavoroso.
Morte. Morte para todos os lados.
Seus olhos finalmente encontraram os corpos jogados por todo o acampamento.
Vários homens com armaduras caídos em posições que indicavam uma luta. Claramente perdida.
A alguns metros dele, contrastando com o calor aconchegante da fogueira, jazia uma carcaça queimada de bruços. Um crânio à mostra, torrado, com o que parecia ser uma flecha crivada em seu pescoço.
Uma nova olhada nas vestes de Hermes o ajudou a entender tudo. O sangue seco que conseguia se destacar até na escuridão da túnica preta do rapaz de cabelos brancos. A espada em sua cintura.
Hermes havia feito um massacre. Outro.
— Teseu. — Hermes chamou, trazendo de volta a atenção do garoto para ele. Seu rosto estava sério de novo. — O que houve lá?
O garoto sentiu como se uma ponta de lança tentasse furar sua cabeça de dentro para fora. Os flashes dos acontecimentos da noite anterior passavam em sua mente.
Ele gemeu de dor e rangeu os dentes, as pessoas em volta olharam preocupadas.
Hermes o encarou com dúvida.
A dor passou um minuto depois e deu lugar a uma maior clareza nas lembranças. Teseu não sabia como explicar aquilo tudo sem parecer um completo lunático. Talvez devesse omitir, por agora pelo menos, a parte dos homens com cascos já que nem ele mesmo tinha certeza de que estava acordado naquele momento.
…
……
…………
— Um lobo enorme? — Uma das mulheres perguntou em um tom assustado, levando as mãos à boca.
Hermes estava pensativo, encarando o garoto como se o analisasse. Teseu tinha no rosto uma expressão tensa. Não sabia se tinha sido convincente em sua história e mesmo que ela fosse verdadeira, tinha medo de que o tirassem como mentiroso.
Os cochichos em sua volta aumentaram seu nervosismo. O olhar frígido de Hermes não ajudava. O homem de cabelos brancos desviou o olhar por um momento, como se estivesse se recordando de algo distante.
— Hermes- — O pequeno Teseu quebrou o silêncio para fugir daquela atmosfera com receio, engolindo em seco. — Quem são essas pessoas?
O rapaz de cabelos brancos dirigiu o olhar para o menino e abriu a boca, prestes a explicar. Quando um homem apareceu por trás de Hermes.
Teseu o reconheceu na hora. Sua expressão se tornou sombria, e ele paralisou por um instante, como se tivesse acabado de ver um fantasma.
O homem de cabelo curto acenou levemente com sua expressão rígida.

Percebendo a expressão alterada do garoto, Hermes decidiu mudar o rumo da conversa.
— Você o conhece? — Hermes com curiosidade cautelosa.
A tensão de Teseu era palpável. A resposta não saiu.
A atenção de Hermes não ficava para trás. Desde o momento em que eles agiram com uma familiaridade inquietante para com ele, até mesmo quando ajudaram a salvar o garoto em meio aos destroços. Hermes não abaixou a guarda por um momento sequer.
Sua mão se moveu despretensiosamente até o cabo da espada que repousava em sua cintura. Um movimento imperceptível, sagaz.
Teseu, no entanto, percebeu. Talvez não tenha visto o movimento em si, mas sim sentido o olhar de predador que Hermes tinha enquanto o encarava. Ele sabia, ou melhor, sentia o que viria a seguir.
— Sim. Eu o conheço. Ele estava nas minas com a gente. — A resposta de Teseu foi rápida e concisa.
Ele tinha que dizer algo para evitar o escalonar da situação.
Os olhos de Hermes semi-cerraram com interesse. A mão ainda no cabo de sua xiphos.
Teseu engoliu em seco, olhou em volta e, se surpreendeu ao reconhecer várias outras pessoas entre aquelas que os circundavam.
— Na verdade, acho que todos aqui estavam lá. — Ele afirmou, a tensão escapando um pouco de seu rosto.
— Entendo… — Hermes disse, sua expressão suavizando. — Todos nos deem licença por favor. Tenho algumas questões a tratar com o garoto.
As pessoas em volta olharam umas para as outras. Ainda estavam um pouco atônitas e perdidas com tudo o que havia acontecido na noite anterior. Eles viram um único homem varrer um acampamento inteiro de soldados fortemente armados e regar a grama com sangue.
Viram sua liberdade vir de um momento para o outro. Não sabiam como reagir. Não todos, pelo menos. Theo observou Hermes por alguns instantes em silêncio, antes de se virar para os outros.
— Vamos deixar nossos salvadores conversarem. Tenho certeza de que foi uma noite cansativa para eles. — Ele disse se virando e andando para longe da fogueira.
Os outros, sem ter muito o que fazer, o seguiram.
Hermes esperou que todos se afastassem para prosseguir. Teseu parecia alheio.
Sua mente viajava entre os mortos e Hermes. Ele via naquele homem ainda muito misterioso uma interrogação.
Quais suas verdadeiras intenções?
Mesmo depois de tudo o que viveram. Eles dois e seu falecido irmão. Neste momento, em meio àquela chacina, nada parecia claro.
Estaria Teseu viajando com um monstro incontrolável?
Eram muitas dúvidas que jamais seriam respondidas apenas com a observação da expressão sempre apática de Hermes.
O olhar do garoto havia abaixado. Sua expressão era serena, mas um pouco melancólica.
Sentiu certo receio em falar, mas a dúvida em sua mente e a teimosia em seu espírito não o permitiriam ficar calado sem entender plenamente a situação em que estava.
— Hermes… Onde você estava? — Ele perguntou sem levantar o olhar
A questão atingiu Hermes como um soco. Ele havia deixado o garoto para trás desprotegido. Teseu esteve à beira da morte, e ele não estava nem perto para ajudar.
Pensou nas inúmeras justificativas que poderia dar naquele momento, mas sabia que havia sido descuidado. Ele havia deixado Teseu para trás por receio de que ele o atrapalhasse e por conta disso o menino quase foi morto.
Não havia justificativas para isso.
— Eu sinto muito. — As palavras saíram da boca de Hermes com pureza. Arrependimento.
Teseu ergueu os olhos surpreso.
— Eu não devia ter te deixado para trás.
A expressão séria de Hermes e seu olhar não vacilavam. Teseu não sabia como uma pessoa tão apática poderia demonstrar sinceridade. Talvez fossem as palavras sem ensaio. Ou então os olhos de um dourado fosco que o encaravam sem cessar.
O garoto não tinha dúvidas.
— Quero saber mais sobre o que aconteceu com você na carroça, tudo bem? — Hermes perguntou com seriedade, quebrando o silêncio entre os dois.
Teseu pensou um pouco e então assentiu.
Sem cerimônias, Hermes iniciou seu interrogatório.
— O lobo falou algo para você? — Ele perguntou com a mesma expressão séria de antes.
Teseu franziu o cenho, que raios de pergunta era essa?
— Isto é sério? — Ele perguntou e, quando Hermes permaneceu com a mesma expressão, resolveu prosseguir, entendendo que não era uma brincadeira. — Bem… não que eu tenha escutado.
Sem muito tempo para descansar, Hermes prosseguiu.
— Você viu alguma espécie de marca nele?
Teseu desviou o olhar por um momento, tentando se lembrar. Fechou os olhos e suspirou.
— Não. Estava muito escuro e eu estava muito assustado para prestar atenção aos detalhes.
— E quem te salvou?
Teseu franziu o cenho.
“Como ele sabe? Eu não falei nada sobre ter sido salvo.”
— Não sou idiota Teseu. Você disse que a criatura devorou a cabeça do cavalo em uma mordida. E só tinha um cavalo na nossa carroça. — Hermes falou com uma expressão rígida, juntando ambas as mãos em um gesto perspicaz. — Quem puxou a carroça e te tirou de lá?
Teseu estava de boca aberta, um pouco assustado com a rapidez de Hermes. Até por que não parecia ter sido simplesmente perspicácia, parecia que ele sabia de algo antes mesmo que o contasse.
— Não sei bem como dizer isso… Eram… — Ele engoliu em seco antes de continuar. — Homens.
Teseu completou sua resposta com uma expressão incerta. Tanto do que ele falava, quanto da forma que Hermes absorveria isso.
— Homens como? — Hermes prosseguiu sem pausa.
O garoto se surpreendeu. Ele não parecia ter um pingo de dúvidas em seu testemunho.
— Bem- eles tinham barbas longas e- — O garoto falou com um rosto distante, como se estivesse se recordando, até que sua expressão se clareou por um instante. — Ah- eles tinham cascos!
O silêncio que se seguiu pareceu consumir a coragem que havia tomado conta de Teseu. O garoto se arrependeu quase que instantaneamente de ter dito aquilo.
Quem acreditaria naquela loucura?
Hermes se tornou distante, pensativo. Seus olhos se concentraram atrás de Teseu.
— E você ouviu esses homens falarem alguma coisa? — Ele prosseguiu, ainda concentrado no nada.
Teseu raciocinou um pouco. Hermes parecia prestar muita atenção no que ele falava. Mesmo que fosse uma loucura completa. Resolveu continuar.
— Eles conversaram em algum dialeto estranho. Eu não entendi muito, só uma palavra. Ángelos1. — Teseu falou olhando nos olhos de Hermes.
O rosto de Hermes mostrou surpresa.
— Escute bem, Teseu. — Ele começou com uma expressão diferente da apatia habitual. Parecia sério. — Nós estamos sendo caçados.
Teseu parecia confuso.
— Pelo quê Hermes?
— Não ‘pelo quê’. Por quem. — Hermes respondeu. Sua expressão migrando um pouco da preocupação para a raiva. — Por Ártemis.
O queixo de Teseu caiu em choque.
- Arauto em grego[↩]
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.