— Escute bem, Teseu. — Ele começou com uma expressão diferente da apatia habitual. Parecia sério. — Nós estamos sendo caçados.

    Teseu parecia confuso. 

    — Pelo quê Hermes?

    — Não ‘pelo quê’. Por quem. — Hermes respondeu. Sua expressão migrando um pouco da preocupação para a raiva. — Por Ártemis.

    O queixo de Teseu caiu em choque.

    — Por… Ártemis?

    Teseu sentiu vontade de sorrir por um momento e, quando percebeu que a expressão séria de Hermes não vacilou, engoliu em seco.

    — Você quer dizer a deusa Ártemis? —  Teseu duvidou, seu tom incerto e olhar vacilante.

    Hermes assentiu, sua seriedade no olhar não permitia dúvidas acerca da gravidade da situação.

    Teseu, mesmo jovem, não acreditava nas histórias de Deuses e Heróis. 

    Talvez por ter vivido tanto tempo na miséria, crescido no amargor do labor forçado, o garoto não teve tempo de alimentar os sonhos de encontrar ninfas e seres mágicos da floresta.

    Entretanto, seu companheiro afirmava com extrema seriedade nesse momento que eles estavam sendo caçados por uma divindade. O garoto não soube dizer se havia entendido corretamente. Não era a primeira vez que Hermes falava algo como isto.

    Antes, ele disse algo sobre ‘tirar Teseu dos braços de Hades’1.

    A descrença do garoto era aparente. Hermes suspirou.

    —  Por hora, apenas preciso que tenha isso em mente. Permaneça atento durante a nossa viagem, principalmente quando estivermos próximos às matas. —  Hermes afirmou se levantando.

    O garoto acenou positivamente e, vendo o jovem se levantar, sua atenção foi atraída mais uma vez para o estado do acampamento.

    Após um momento de silêncio, Teseu pigarreou e prosseguiu.

    — O que houve aqui?

    Hermes pensou por um momento, desviou o olhar para o acampamento e depois de analisar a matança que havia feito, voltou sua atenção para o menino.

    — Eram mercadores de escravos. Pelo que entendi iam pegar um barco em Therma e seguir para o Oriente. Algo sobre aliados políticos e coisas assim.

    Teseu ouviu com atenção e com uma expressão desconfiada respondeu sem cerimônias.

    — Mas… por que todos os servos daqui parecem ter vindo das minas?

    Hermes ergueu a sobrancelha em dúvida. Realmente era curioso que eles comprassem tantos escravos de um só lugar. Mas nada mais que isso.

    — E por que isso importa, Teseu? — Ele perguntou surpreso com a perspicácia do garoto.

    A expressão do garoto mostrou confusão.

    — Ué, você não sabe?

    Hermes deu de ombros em silêncio e o garoto prosseguiu depois de um suspiro que dizia, “como é possível que ele não tenha conhecimento de algo tão básico?”. Isso irritou Hermes um pouco.

    — As minas são de propriedade da família Kratos. Isso quer dizer que mesmo como administrador, Gérion não tem autoridade para vender os servos, apenas para comprar. — Teseu explicou com uma expressão convencida.

    Tamanha era a sua propriedade e orgulho ao falar que as palavras nem pareciam vir da boca dele. Estava claro que ele havia ouvido isso de alguém anteriormente e estava reproduzindo palavra por palavra.

    Hermes não pôde deixar de sorrir um pouco com a cena. Teseu, logo depois de tê-lo esnobado como se devesse conhecer uma informação tão básica quanto a cor do céu, agir dessa forma.

    “Que ousadia desse pirralho.” Ele pensou sorrindo.

    A personalidade do menino era realmente a de uma criança, mesmo após tudo o que havia experienciado.

    A expressão de Hermes se tornou séria, e ele se pôs a pensar.

    Realmente, mais que curioso, era estranho. Gérion não era a figura mais honrada, então certamente poderia estar traficando os escravos das minas dos Kratos sem que eles soubessem. Porém, levando em conta a quantidade de pessoas que estavam aqui, era perigoso demais até mesmo para um porco ganancioso como ele.

    Caso fosse descoberto, ele com certeza seria morto pelo Lorde sem cerimônias. Isto é, se o Lorde ainda estivesse vivo, é claro.

    “Mas ele não teria como saber disso ainda. Não faz sentido.” Hermes tinha sua mão em volta do queixo, e um olhar pensativo no chão.

    — Hermes? —  Teseu o chamou, afastando-o de suas divagações.

    O garoto já havia se sentado de novo. Tinha a mão no abdômen, talvez como tentativa de conter o mínimo incômodo que ainda sentia na costela.

    Hermes se virou para ele, sua expressão um pouco mais clara.

    — Parece que nossos antigos colegas de trabalho tem algumas coisas a nos explicar.

    ……

    …………

    A conversa foi um pouco longa. O dia já amanhecia a esse ponto e a fogueira estava prestes a se apagar.

    Um grande número de servos rodeavam o acampamento, ainda confusos e conversando sobre os próximos passos.

    Theo havia passado a maior parte do tempo respondendo às questões de Hermes com um outro rapaz.

    Aparentemente, ninguém sabia muito bem o que havia acontecido nos últimos dias.

    Eles disseram que, de um dia para o outro, Gérion passou a agir com muito mais agressividade do que o de costume. Suas visitas aos trabalhadores nas minas se tornaram frequentes, e as punições mais ainda.

    Parecia que o que quer que o freasse antes, não estava mais lá para o fazer. Ele passou a agir como se fosse o verdadeiro dono das minas e dos escravos, inclusive afirmando isso.

    Ninguém conseguia entender de onde surgira tamanha ousadia para desafiar os seus senhores.

    Essa era a parte que Theo sabia.

    O outro rapaz ouviu a conversa dos dois e se apresentou com outros pedaços de informação.

    Ele disse que tudo isso havia começado a cerca de duas semanas atrás. Em um dia como outro qualquer, Gérion ordenou que todos os servos fossem retirados de seus túneis e se apresentassem a alguém. A pessoa que o acompanhava usava uma túnica escura que a cobria dos pés à cabeça e tinha ares de nobreza.

    Ninguém conseguiu ver o rosto dela, e mais de uma pessoa relatou aos cochichos entre uma picaretada e outra que apenas Gérion parecia ouvir a sua voz.

    Na mesma noite em que chegou, a pessoa foi embora. Gérion estava diferente no dia seguinte.

    Agindo como se fosse o dono de tudo e de todos.

    Sua perversidade parecia se alastrar mais a cada dia quando, de repente, uma caravana de Therma foi avistada no horizonte por um dos escravos que transportava uma porção de ferramentas quebradas para a parte de cima da mina.

    Ela estava vazia. Apenas alguns poucos soldados e um nobre.

    — Gérion chamou vários de nós para fora, e mandou o Lorde escolher. Nos vendeu em um lote de 30, a preço de porcos. Menos de 100 dracmas2. — O rapaz terminou seu relato com o rosto retorcido de irritação.

    Theo cuspiu no chão.

    — Temo apenas pelas vidas daqueles que permaneceram lá. Qualquer destino é menos cruel do que estar sob o controle daquele cão miserável. —  Seu rosto enojado, como se a imagem do ogro viesse naturalmente a sua mente enquanto falava.

    Hermes encarava o chão com inquietação.

    Teseu fazia o mesmo.

    A respiração irregular de Hermes denunciava o seu conflito interno. Seu coração acelerava com a decisão que teria que tomar.

    A situação inteira o inquietava mais do que tudo.

    Por que Gérion mudou de comportamento de um dia para o outro?

    Quem foi a pessoa que o encontrou, e o que ela o teria dito para provocar uma mudança tão radical?

    Por que a caravana de Therma chegou até lá vazia, como se soubesse que conseguiria comprar os escravos lá?

    Tantas perguntas.

    Hermes se arrependeu por um instante de não ter deixado um dos inimigos vivos para interrogar.

    Talvez se ele pudesse perguntar algo para o Lorde, proprietário da caravana. Mas agora já era tarde demais.

    Uma tosse seca interrompeu as lamentações do rapaz propositadamente.

    Ele ergueu a cabeça e encontrou os olhos de Teseu.

    — Hermes. —  O olhar do garoto parecia amedrontado. —  Nós-nós precisamos salvá-los daquele monstro.

    — E o que você pode fazer para ajudá-las? —  Hermes questionou de pronto, seu rosto sisudo e olhar irresoluto.

    A pergunta esmagou Teseu como um coice.

    Ele tinha razão.

    “Nós? Nós precisamos salvá-los? Quem eu penso que sou para puxar o Hermes para essa batalha como se eu mesmo fosse capaz de fazer alguma coisa?” Seu olhar encontrou os pés de Hermes.

    “Eu nem sequer consegui sobreviver por mim mesmo ao último ataque. Como posso garantir que não vou ser um peso em qualquer batalha que vier pela frente?”

    Foi então que a imagem de seu irmão tomou sua mente.

    — Eu não sei…

    Hermes suspirou.

    — Então como-

    O garoto o interrompeu.

    Teseu tinha um medo claro no olhar. O medo de alguém que acabara de enfrentar a morte, acompanhado da coragem, ou ousadia, de quem já estava pronto para enfrentá-la de novo.

    Seus olhos recaem, desviando-se não com covardia em sua decisão, mas com uma divagação clara que a confirmava.

    — Mas eu sei que é o que meu irmão iria querer. — Ele afirma com um ar de certeza. —  Se eu quiser realizar o sonho dele e me tornar um herói de verdade, não posso fugir e deixar essas pessoas na mão.

    O menino ergueu seu olhar mais uma vez, voltando a encarar Hermes nos olhos. 

    — Você sabe porque todos os heróis morreram de maneira trágica? — Hermes o provocou, seu rosto sério, no entanto, não se alterou.

    O garoto abriu os olhos, surpreso, e então bufou com raiva. Ele o estava subestimando.

    O rapaz respondeu com um suspiro. Estava sendo mal interpretado.

    — Todos tinham o sonho de dar passos maiores do que as próprias pernas. — Hermes continuou após uma pequena pausa, seu rosto um pouco menos reprovador. — Não pense que apenas força de vontade e coragem vão te fazer alcançar os céus.

    O garoto sentiu um baque com a frase.

    Ele estava sendo descuidado, de verdade. Não podia correr o risco de entrar em um combate por conta de seu sonho apenas para atrapalhar seus aliados. 

    Seus olhos varreram o acampamento de novo. Os corpos. Ele entendeu.

    Alguém verdadeiramente forte estava dizendo aquilo. Alguém que entendia o risco que estariam correndo.

    — Mesmo assim. Mesmo fraco. Eu…- — Os olhos do garoto voltaram-se para as próprias mãos. Com elas, ele alisou o abdômen enfaixado com amargor. — Eu preciso-

    As lágrimas brotaram em seus olhos aos poucos. A dor da fraqueza o tomou. Se viu pequeno diante de um sonho tão grande. Ele seria mesmo capaz de realizá-lo?

    Hermes, por sua vez, devolveu com silêncio. Permitiu que o garoto chorasse. Ele tinha que entender seu estado. Entender que o mundo não o abraçaria só porque ele tinha boas intenções.

    Teseu já havia sentido isso na pele antes, mas ainda era muito ingênuo.

    E por alguns minutos eles ficaram assim, até que, finalmente, o canto dos pássaros ao amanhecer cortou o clima pesado que ficara entre eles.

    O rapaz de cabelos brancos olhou para o céu. Os pássaros lhe traziam uma lembrança triste. A lembrança de um garoto que queria voar. Um garoto que tinha asas curtas demais.

    Hermes suspirou.

    Ele não queria ser um monstro insensível e consequencialista. Salvar essas pessoas não era uma mera conta de somar ou subtrair. Até porque, ele tinha uma dívida com algumas delas.

    Ao mesmo tempo, não podia simplesmente permitir que os anseios de tolos de uma criança sonhadora cegasse seus sentidos para o perigo que enfrentaria.

    Mas, isso não quer dizer que não faria nada. Mesmo que não conseguisse salvá-los, deixá-los para trás, depois deles o terem salvado, não o tornava melhor que sua própria família.

    — Levante-se. Temos que seguir viagem. — Ele se virou de costas. — A viagem até a mina é curta, talvez possamos chegar antes do fim da noite.

    Teseu ergueu seus olhos cheios de lágrimas com a boca aberta em surpresa.

    — Vamos. Não me deixe pensar demais ou vou te deixar para trás de novo. — Hermes falou, esticando os braços como quem acaba de acordar. — Talvez dessa vez você encontre outra criatura e se torne um pouco mais forte.

    A última fala acompanhou um sorriso contido que o fez soltar ar pelo nariz.

    Teseu limpou as lágrimas dos olhos e o catarro do nariz.

    — Nem brinque com isso. — Ele disse em um tom de voz irritado enquanto pulava de onde estava para ficar de pé por completo.

    Theo e o outro homem que observaram a conversa dos dois todo esse tempo franziram o cenho juntos com a sugestão de Hermes. Grande e com suas correntes ainda presas em si, Theo tomou a frente de Hermes, tapando seu caminho.

    — Vocês estão planejando atacar a fortaleza de Gérion sozinhos?

    Hermes o olhou com um semblante sério. Eles tinha quase a mesma altura. Hermes poderia ser um pouco menor3.

    — Não acha que sou capaz? — Ele perguntou com um olhar vindo de baixo, uma espécie de desafio.

    Theo balançou a cabeça e suspirou.

    — Eu assisti e comprovei a sua astúcia na noite de ontem. Não tenho dúvidas de que é forte. — Ele disse, recuando um passo, como se recusasse a afrontá-lo. Medo, no entanto, não parecia encontrá-lo. — Mas, você enfrentou dez homens ontem. Gérion tem mais de trinta sob seu controle. E também tem a vantagem de terreno.

    Hermes pensou olhando para Theo, em silêncio. Inquieto ele divagou.

    Ele não era o tipo estrategista ou de táticas de guerrilha. Definitivamente. Esse era o papel de Ares.

    Estava acostumado a agir como já vinha agindo. Embate físico e brutal. Não dar chances de resposta.

    Mas como poderia fazer isso sozinho e com um garoto ferido contra mais de trinta homens?

    Mesmo que invadisse sozinho e sem ter que se preocupar com Teseu, o que claramente não era uma opção dados os eventos ocorridos na última noite, ele ainda teria dificuldades em encontrar um ponto para entrar nas minas sem ser avistado pelos guardas e também para matar Gérion, aquele ogro, estando cercado de inimigos.

    Sua testa ardia tentando pensar no que fazer. Talvez não tivesse jeito. Ele teria que improvisar lá mesmo.

    — Se me permite. — Theo pôs a mão pesada que tinha sobre o ombro de Hermes. — Eu gostaria de oferecer os meus serviços.

    Hermes ergueu seu rosto que de pensativo se mostrou confuso.

    — Como é?

    Theo retirou a mão de seu ombro e se afastou um pouco.

    Os outros servos à distância observavam cautelosamente o grupo que conversava, como se esperassem por algo.

    — COMPANHEIROS. — Theo começou a falar, como se quisesse alcançar a todos os presentes no acampamento. Eles se viraram e passaram a prestar atenção. — Sei que estão todos confusos. Perdidos. Com medo. Sei que pensaram ter ganho sua liberdade na noite de ontem.

    Ele seguiu falando com a entonação de um general andando para o meio do acampamento para alcançar a visão de todos os outros.

    — Mas não ganharam! — Ele gritou. As pessoas se assustaram. — Não enquanto aquele ogro das minas viver. Não enquanto aqueles que nos colocaram essas correntes- — Ele ergue os braços acorrentados para o ar — Viverem!

    Hermes sente um sorriso espreitar em seu rosto. Um sorriso de desprezo.

    “Ele me lembra Ares. Um brutamontes com discursos vazios que levam pessoas à morte.”

    — Acham mesmo que eles permitirão que vivamos em paz? Que nós viajemos para um lugar isolado e tenhamos felicidade e tranquilidade? — Theo segue perguntando a um e a outro, interagindo e gesticulando ferozmente. Uma oratória invejável. — Não! Eu vos digo- NÃO! Eles não permitirão.

    Ele para em silêncio, olhando para todos em volta. E então olha para Hermes que ainda se mostrava desconfiado.

    — Nós mesmos iremos cortar esses grilhões. NÓS! E não se deixem enganar. Não será fácil. Mas não é melhor a morte do que viver uma vida acorrentado?! — Ele gritou com todas as forças

    Os olhos de Hermes, antes os de uma raposa astuta, se abrem em surpresa. Seu sorriso adquiriu um ar um pouco mais apreciador.

    “Talvez não seja tão parecido assim…”

    As pessoas em volta que observavam atônitas o encararam em silêncio.

    Um dos homens se aproximou de Theo e acenou positivamente.

    — Eu ainda tenho pessoas que importam pra mim naquela mina. Não posso seguir sem salvá-las. — O rapaz disse.

    Outros começaram a se aproximar. Um após o outro, o grupo de recrutas crescia.

    Teseu que observou tudo com louvor, tinha seu rosto repleto de admiração. Aparentemente o discurso de Theo o havia atingido também.

    Ao fim, dos trinta, vinte decidiram seguir para as minas, enquanto dez decidiram que seguiram viagem para a cidade mais próxima.

    Theo não insistiu que ficassem.

    Eles pediram uma das carroças para que pudessem seguir viagem. Theo perguntou a Hermes, que deu a permissão.

    Quando toda a comoção acabou, o grupo grande se reuniu em volta da fogueira.

    Vendo a quantidade de pessoas que tinha à sua disposição, Hermes sorriu.

    Todos olhavam para ele com antecipação. Aguardando ordens e instruções.

    Os olhos do Deus Caído varreram o acampamento mais uma vez, olhou os corpos, as armas jogadas, as armaduras, as carroças e o brasão do Arconte em uma delas.

    — Agora, vou explicar o plano… — Ele começou, um sorriso confiante e esguio como o de um gatuno ardiloso.

    ……

    …………

    1. Vide epílogo do arco 1[]
    2. Moeda utilizada na região de Hélade[Grécia antiga], compreendia em sua unidade ao salário de um dia de um trabalhador agrícola []
    3. Lembrete: Hermes tem 185cm[]

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota