Capítulo 9 - Neblina no Horizonte
1º de março de 5997 d.E. – Em algum lugar do céu, próximo à Cidade Celestial.
Era final de tarde, o sol já se escondia nas nuvens, e dava ao céu um belo tom alaranjado. O veleiro celestial deslizava suavemente pelos ventos favoráveis, e a estimativa era de que chegariam à Cidade Celestial em poucos minutos.
O transporte de heróis e trabalhadores era feito quase que exclusivamente pelos barcos celestiais, fabricados a partir da madeira dos galhos da ‘Grande Árvore Mãe de Todas as Coisas’. Essas majestosas embarcações flutuavam pelos céus de Testfeld, e conectavam quase todas as cidades do Continente do Leste.
Externamente, as embarcações lembravam imponentes veleiros, com mastros altos e velas volumosas que captavam as correntes aéreas para impulsioná-los adiante. No entanto, sua verdadeira peculiaridade residia na madeira mágica que os revestia. Extraída da Grande Árvore, essa madeira concedia aos barcos a capacidade de planar e manter-se sempre na altitude correspondente ao galho de onde foram cortados. Mesmo que uma embarcação fosse completamente destruída, seus destroços flutuariam na mesma altura, incapazes de subir ou descer. Se, por qualquer razão, fossem deslocados dessa altitude, retornariam à sua posição original, obedecendo à natureza mística de sua origem.
O deslocamento era rápido e eficiente, mas dependia da habilidade dos capitães, ou navegadores experientes que conheciam os atalhos celestes, rotas ocultas que encurtavam jornadas de dias para meras horas. No entanto, havia apenas um único caminho seguro entre a Cidade Celestial à terra abaixo; qualquer outra rota significava o risco de encontrar monstros ou vagantes, morte certa para todos a bordo.
Esse era o caso do Serpente de Cobre, um veleiro celestial do porte de uma fragata, tripulado por uma tripulação de elfos experientes. A embarcação havia partido de Embach, a capital do Império de Hunterburg, e seguia rumo à Cidade Celestial. Desde a chegada do décimo segundo grupo de heróis, essa havia se tornado a rotina diária do Serpente de Cobre: transportar heróis para as cidades humanas no Continente do Oeste e trazê-los de volta.
— Capitão… e aquelas nuvens de tempestade? — indagou um dos marinheiros na ponte de comando.
Ao longe, uma mancha negra se formava no céu, e começava a se aproximar da embarcação. Não era comum ver tempestades naquela rota.
— Contorne… Dê a volta — ordenou o capitão para a tripulação, a voz dele estava calma, porém escondia uma preocupação visível em seu rosto.
Outro marinheiro se inclinou sobre o parapeito, e observou inquieto a anomalia que se alastrava pelo horizonte.
— Já tinha visto algo assim? — questionou outro marinheiro, ao olhar a mancha aumentar no céu.
— Primeira vez… e não parece uma tempestade.
— Poderia ser um vagante? — sugeriu outro marinheiro, mais experiente que os demais.
O capitão hesitou antes de responder.
— Muito improvável. Uma rota tão movimentada como essa? Se fosse um vagante, já teríamos encontrado destroços…
— E se formos os primeiros a encontrá-lo?
Um silêncio pesado pairou sobre a ponte.
— Então temos um azar danado… — gargalhou o capitão.
A risada do capitão morreu assim que o veleiro entrou na névoa negra. A luz do sol desapareceu instantaneamente, e deixou a tripulação cega. Mal podiam enxergar além de um palmo à frente da proa do navio.
— Eu não disse pra você desviar? — gritou o capitão, ao empurrar o marinheiro no leme e assumir o controle da embarcação.
— O senhor viu! — gaguejou o marinheiro, trêmulo. — Eu tentei! Mas… a névoa… ela nos seguiu!
Uma silhueta apareceu na frente da ponte de comando. Conforme a névoa recuava ao seu redor, ela revelava um jovem de talvez vinte anos. Ele estava vestido com um bonito uniforme branco, e belos detalhes dourados nas ombreiras. O cabelo negro, um tanto desalinhado, contrastava com o uniforme arrumado. Seus olhos castanhos brilhavam com uma certa sede de sangue.
— Um herói? — murmurou um dos marinheiros, ao reconhecer o uniforme. — Ele está caçando vagantes?
O jovem não respondeu de imediato. Apenas avançou mais um passo, e se apoio na porta da ponte.
— Recebi informações de que vocês transportam um herói que sobreviveu a um ataque de um membro do Exército de Libertação… — Ele fez uma pausa dramática antes de abrir um largo sorriso. — Eu gostaria de interrogá-lo.
O capitão soltou uma risada forçada, sem acreditar no que ouvia.
— Quase nos matou de susto para isso? — bradou, a expressão irritada, a mão na bainha da espada. — Não era mais fácil esperar? O conselho já vai interrogá-lo de qualquer maneira.
— Eu não sou conhecido como paciente… — suspirou o herói. — Também não quero sujar minhas mãos com o seu sangue nojento de elfo… Mesmo assim, irei o fazer…
— Mas o qu—
Não teve tempo de terminar a frase.
Em um instante, caiu morto no chão, os olhos arregalados, a boca entreaberta num último resquício de surpresa. Uma lâmina negra havia transpassado seu coração sem que ele sequer percebesse de onde viera o golpe.
O restante da tripulação ficou paralisada.
Ali, no centro da ponte de comando, materializara-se um ser de aparência e aura sombria. Era um espadachim, vestido com uma armadura negra da cabeça aos pés. A espada longa, manchada de vermelho, ainda pingava o sangue quente do capitão.
— E então? Onde ele está? — Ele quebrou o tom de silêncio, e encarou os elfos sem reação em seus rostos, ainda tentavam entender o que havia acontecido com o capitão.
— Morra, seu traidor maldito! — gritou um dos marinheiros, ao sacar sua espada e avançar contra o herói.
O herói não se moveu. Entretanto, o espadachim sim. Em uma luz laranja que brilhou na sala, o boneco apareceu na frente do elfo, e no segundo seguinte, o marinheiro caiu morto, sua garganta aberta de um lado a outro.
— Wächter, deixo o resto com você. — disse o herói, ao ajeitar a gola do uniforme e arrumar o cabelo ao olhar pelo vidro da porta. Então, virou-se e caminhou tranquilamente para o convés.
— Sim, mestre… — respondeu a figura espectral, em um tom totalmente robótico.
O herói desceu os degraus em direção ao convés principal, e observou a luta dos outros heróis com as suas marionetes. Apesar da superioridade numérica, os heróis estavam em desvantagem. Eles eram lentos e fracos comparados aos bonecos de madeira. Cada boneco conseguia enfrentar dois, até três heróis ao mesmo tempo.
— Você! — gritou um deles, ao reconhecer o rosto do herói.
— Sim… Eu… — Ele sorriu, e conjurou uma espada de névoa negra com um pequeno estalar de dedos.
O outro herói não esperou. Avançou de imediato. As espadas se chocaram em uma explosão de faíscas. O aço encontrou a névoa, e por um instante, o ar pareceu vibrar com a colisão.
— Sabe quem eu sou? Não? — sussurrou no ouvido do adversário, a espada de névoa vibrante em seu punho.
— Vítor, o Marionetista… Um dos engomados do conselho… — respondeu o herói, ao se lançar para trás para tentar um novo ataque. — O que você faz aqui? O conselho te mandou para nos matar?
— Talvez. Mas estou sem paciência para explicar… — Vítor exibiu um sorriso entediado.
O herói adversário atacou pela segunda vez, com um corte lateral baixo com a lâmina de sua espada. Não exigiu muito esforço para Vítor jogar o corpo para o lado, e acertar um golpe na parte exposta do inimigo.
— Previsível… — murmurou Vítor, ao se afastar do corpo caído. — Agora, onde está aquele sobrevivente?
Ele desceu para os andares inferiores, enquanto o massacre no convés continuava.
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